O verão nórdico, um grupo de crianças e os seus segredos. A partir de três elementos dramáticos Eskil Vogt concebeu Os Inocentes, um filme com traços de cinema de género, mas altamente livre na sua corrente interna de estranheza. Mete gaiatos a descobrirem que têm poderes sobrenaturais, debaixo da luz suave dos dias soalheiros, e mostra como, longe do olhar dos adultos, essas habilidades estabelecem um cenário de consequências imprevisíveis... Numa entrevista em Lisboa, na última edição do LEFFEST, o realizador falou-nos da pesquisa sensorial que define esta segunda longa-metragem, meio pesadelo, meio conto moral. É o filme que assinala o regresso da distribuidora Cinema Bold, cujas estreias acontecem em simultâneo nas salas e na plataforma Filmin..Não é muito comum encontrar-se filmes que explorem a infância pelo lado menos luminoso da sua fantasia; geralmente há uma compensação nostálgica, algo a que nos podemos agarrar. A que é que se agarrou quando escreveu o argumento de Os Inocentes? No início, estava interessado naquela coisa da magia da infância. A primeira ideia foi: se algo de mágico acontece quando um grupo de crianças está a brincar, e elas chegam a casa e contam aos pais, a atitude dos adultos é sugerir que foi só a sua imaginação a trabalhar, uma fantasia, enfim, algo que não aconteceu. E eu queria fazer um filme em que essa magia acontece de verdade! Como diz, e bem, a representação da infância tem muito que ver com uma imagem soalheira, nostálgica... Mas ao fazer a minha pesquisa, e pensando na minha própria infância - colocando-me nesse estado mental -, apercebi-me também do quão desprotegidas as crianças estão, porque ainda não sabem como o mundo funciona. Está tudo em aberto para elas, ainda não têm poder sobre a sua própria vida e estão sujeitas ao poder dos adultos: um dia o pai pode chegar a casa e dizer que têm de se mudar porque arranjou um emprego noutro lugar... E essa insegurança em relação a tudo, que se mistura com aquela capacidade de imaginação que geralmente se diz ser muito "positiva" nas crianças, na minha experiência, pode virar-se contra a própria criança. Aquilo que era só imaginação torna-se real para ela. Portanto, o meu medo enquanto miúdo faz parte desta história; foi a isso que me agarrei..Há algo de crucial no facto de existir uma floresta a poucos passos do bloco de apartamentos ondem vivem as crianças. Como se logo ali ao lado estivesse um imaginário de conto de fadas em potência... Foi muito importante para mim encontrar esse lugar. Mais uma vez, inspirei-me um pouco na minha própria experiência de crescer num sítio assim. O que me fascinava particularmente era o contraste dos prédios cheios de pessoas a viver demasiado próximas umas das outras, como uma sociedade constantemente vigiada, com a floresta a 10 metros dali! Um espaço onde os miúdos se sentem longe dos olhares dos adultos. Ou seja, de um lado está o contrato social, do outro está a natureza onde a criança se pode aventurar e ter as suas experiências não supervisionadas. É algo muito norueguês, diria, porque faz parte da configuração das nossas cidades..A ideia de crianças com poderes sobrenaturais, numa versão americana, daria um filme de super-heróis... O que não deixa de ser curioso, porque me parece um ângulo errado para abordar Os Inocentes. Pensou nisso em algum momento? Não me ocorreu que estivesse a fazer um filme de super-heróis. Estava mais interessado na magia da infância, como referi, e rapidamente tornou-se uma espécie de conto moral... É sobre tentar navegar o bem e o mal, mediante os nossos impulsos. Queria explorar isso, porque não acredito que alguém nasça anjinho e que seja a sociedade a corrompê-lo; acho que nascemos egocêntricos, sociopatas (risos), e temos de aprender, ou ser incentivados na empatia, na compreensão do outro, no fundo, no encontro com a nossa moral. Agora, neste contexto, as crianças têm poderes que não era suposto terem. E os erros que cometem, ao testar os seus limites, são mais consequentes do que um conto de fadas. Daí eu dizer que nunca me passou pela cabeça a questão dos super-heróis, até começar a ouvir teorias sobre origin stories... A questão é que hoje em dia tudo tem de ser um filme de super-heróis..Ao contrário de qualquer filme de super-heróis, este é um olhar repleto de texturas, com a câmara sempre próxima da fisicalidade do mundo, tal como as crianças a experimentar o toque... Por acaso falei bastante com o diretor de fotografia sobre isso. Para mim era essencial criar no espetador a sensação de ser uma criança, mais do que fazer um filme assustador. Como consegui-lo? Precisávamos de close-ups e dessa experiência do toque refletida no ecrã. Porque as crianças, de alguma maneira, veem com a ponta dos dedos. E são gestos que podem transportar o espetador para essa fase da vida, talvez despertar memórias..Como é que foi a experiência de casting e rodagem com os miúdos? Costumam dizer que não é aconselhável trabalhar com animais e crianças, e de repente vi-me na posição de ter de o fazer... Demorámos um ano com o casting, e depois trabalhámos com os miúdos durante vários meses, inclusive para perceber se eles estavam motivados, se queriam estar ali, ou até se não seriam daqueles casos em que são os pais a querer que eles se tornem atores. Enfim, quando chegou o momento de iniciar a rodagem, foram tão profissionais e tão maravilhosos que, de facto, acabou por ser uma dádiva! Portanto, quando se diz que é difícil dirigir crianças, a verdade é que se forem as crianças certas só pode ser excelente. O meu conselho é que não se trabalhe com gatos! (risos).Não se deixam dirigir... Exato.Gosto muito de gatos, mas eles fazem o que querem..Tem sido um colaborador regular de Joachim Trier, como argumentista, e esta é a sua segunda longa-metragem como realizador. Vai dedicar-se mais à realização a partir de agora? Vou continuar a fazer ambas as coisas. A minha amizade com o Joachim é anterior à nossa parceria nos argumentos, conhecemo-nos desde adolescentes e gostamos de estar na companhia um do outro, criar coisas em conjunto... Por isso, sim, definitivamente, vou continuar com esse equilíbrio. E dada a trabalheira que é estar no papel do realizador, não me importo nada de escrever para o Joachim, porque consigo expressar-me através desse material e ficar ele com a parte mais demorada, o trabalho pesado (risos). É um luxo poder estar nas duas posições..dnot@dn.pt