Um académico, o doutor Carlos Martins, defendeu esta semana, aqui no DN, que não se pode apelidar de fascistas os regimes de Salazar e Franco sem, na sua opinião, falhar ao rigor da definição de fascismo. Ele secunda, assim, uma opinião de outros académicos que têm vindo a insistir com essa redefinição..Não é fácil discutir este tema porque, em primeiro lugar, ele não é exclusivamente histórico, não é académico, ele é, antes de mais nada, político e a conclusão, para um lado ou para o outro, da definição académica do fascismo ou do não-fascismo de Salazar tem um efeito político muito concreto no Portugal do presente..Se a sociedade atual aceitar que o regime do Estado Novo era fascista, está apenas a confirmar a definição que lhe deram inúmeras pessoas que viveram esses tempos, nomeadamente as vítimas da ditadura salazarista: os mais de 30 mil presos políticos, os cerca de 200 assassinados por motivação política, os presos e mortos do campo de concentração do Tarrafal, os milhares de torturados em interrogatório, os vários políticos de vários quadrantes que tentaram a oposição à ditadura, os que nas colónias lutaram pela independência dos seus países, os soldados que foram fazer a guerra colonial e inúmeros cidadãos anónimos, ainda vivos, que se lembram bem do que aquilo era..Como é que se pode, a quem sofreu as consequências da violência política de Salazar, a quem se mobilizou e mobilizou outros para combater o fascismo português (ou a quem, mesmo sem nada ter feito por isso, acabou também por ser vítima da arbitrariedade do regime), explicar agora que, afinal, não foi contra o fascismo que lutaram, não foi o fascismo que os oprimiu, foi apenas um "um regime católico-conservador autoritário", como esta corrente académica lhe pretende chamar?.E aos filhos dessas pessoas (muitos deles privados, durante anos, de contacto com os progenitores), aos netos, aos familiares dessas vítimas? Quem tem coragem para lhes dizer que não, o fascismo português que vitimou os seus ascendentes e que marcou indelevelmente as suas histórias familiares e pessoais, afinal não existiu...?.O efeito político da negação do fascismo português terá, para estas pessoas, a consequência da descredibilização e denegação da própria democracia portuguesa, cujo nascimento partiu de um assumido golpe contra o fascismo - como logo no dia 25 de Abril de 1974 foi gritado entusiasmadamente por uma multidão nas ruas de Lisboa..Em contrapartida, a negação do fascismo português encherá de alegria quem atualmente procura modificar ou, mesmo, liquidar a democracia nascida em 1974 e encontrará aí um instrumento precioso, com um embrulho académico, para, do lado populista de direita, pôr em causa o atual funcionamento das instituições democráticas e, do lado da direita liberal, para diminuir o, ainda, pendor esquerdista da Constituição e, em alguns casos, enevoar cumplicidades pessoais ou familiares com a ditadura que ainda podem ensombrar o presente democrático..Mesmo do ponto de vista estritamente académico, o raciocínio dos que defendem a tese de que não houve fascismo nas ditaduras de Portugal e Espanha parte de uma comparação direta, em espelho, com o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler. É uma base de raciocínio que me parece profundamente errada..Se formos, por exemplo, comparar as várias democracias existentes no mundo, dos Estados Unidos à Suécia, da Inglaterra à Índia, do Brasil a Portugal, da França à Alemanha, encontramos inúmeras diferenças na forma como elas foram erguidas, na forma como as suas instituições funcionam, na forma como o Estado lida com a oposição política, na forma como os partidos funcionam, na forma como a autoridade é exercida... Se pode haver tantas diferenças entre tantos regimes democráticos - e o mundo académico aceita isso sem discussão - porque é que os fascismos todos que existiram, para o serem, têm de replicar exatamente os modelos de Mussolini e Hitler?.Vou ter de voltar ao tema, que o espaço me está a faltar, mas deixo esta pergunta: A eugenia social dos nazis não diferencia mais Hitler de Mussolini do que a alegada falta de radicalidade de Salazar, se comparada com a de Mussolini, o fundador do fascismo? E então? Hitler, tal como dizem sobre Salazar, afinal não era fascista? O nazismo não é uma forma diferente do fascismo italiano?.Jornalista