Histórias
A minha mãe trouxe-me um saco em que guardara aquilo a que chamou as minhas relíquias da adolescência. Havia caixas de fósforos, um boletim do Museu da Graciosa e uma Bíblia Sagrada. Havia crachás sem utilidade, medalhas do futebol e um caderninho de autógrafos com assinaturas de jogadores do Sporting, que eu fora ver em Lisboa.
O futebol estava em todo o lado. Numa pasta encontravam-se arquivadas dezenas de folhas escritas à máquina, nas quais eu fazia os relatos dos nossos jogos. Avaliava os desempenhos, compunha classificações, biografava os jogadores - o Rúben e o Ismael, o Zé Manel e eu próprio, que ia à baliza.
Mas foi o caderno do liceu que maior impressão me causou. As aulas estavam todas ao monte - de História, de Inglês, de Técnicas de Tradução. Numas eu tomava alguns apontamentos antes de me aborrecer, noutras nem isso. Nesta fazia a apologia da Alemanha e na seguinte desenhava foices e martelos. Em boa parte delas, limitava-me a assentar palpites para a próxima jornada. Nas de Português, punha-me a tirar notas sobre a sátira social em Camilo e em breve estava a reescrever a história do próprio Camilo, sentado na cadeia, no instante em que decidia poupar Simão e Teresa.
Na capa estavam coladas várias fotos, entre as quais uma em que eu me sentava à máquina, escrevendo com dois dedos. Tudo o mais era o retrato da minha adolescência: arrogância, confusão ideológica e a concentração de uma barata. Nem sei como acabei o liceu.
Podemos aprender muita coisa com os cadernos da escola. A mais importante é que mudámos pouco. No essencial, eu continuo aquele rapaz de 15 anos a quem só interessava jogar à bola e escrever histórias. Sem jeito para o futebol, é um milagre que me tenham deixado viver de escrever histórias. Talvez nunca descubram que continuo a escrever com dois dedos.