Servir Portugal e ser um homem feliz. Joaquim Letria Porta-voz entre 1980 e 1986.Em 1980 meti-me num avião e fui a Paris fazer uma única pergunta para regressar menos de 24 horas depois a matutar na vida. A resposta fora: "Aceita, nunca aprenderás tanto nem farás nada mais interessante." Dirigira a pergunta "Paixão pelo jornalismo ou política e comunicação dum Presidente?" a um homem extraordinário, jornalista como houve poucos, escritor e autor por quem eu nutria e nutro um enorme respeito e admiração, depois de o general Ramalho Eanes me ter convidado para ser seu assessor, com um suplemento honroso mas também de responsabilidade - ser seu porta-voz, cargo que em Portugal nunca existira nem voltou a existir nestes moldes formais. Recordo-me de ficar em silêncio naquela noite, telefonar para Londres para saber quem exercia tais funções, ou similares, em Downing Street e em Buckingham Palace. Antes de o dia nascer chegara a uma decisão: telefonar ao general Ramalho Eanes e dizer-lhe que aceitava o convite mediante condições. Estas eram: acesso permanente e direto ao Presidente, um briefing ao meio-dia e outro às 18 horas. Eanes concordou e eu disse-lhe então que sim, definitivamente, passando desta forma a trabalhar diretamente com o Presidente da República.. O homem que eu fora ouvir a Paris fora Pierre Salinger, por quem eu tinha uma velha estima desde que o conhecera em Washington. Salinger era uma figura única, filho de mãe francesa, culto e divertido, fora porta-voz de John Kennedy e de Lyndon Johnson por indicação de Robert Kennedy, de quem era amigo pessoal. Em 1980, em Paris, era uma figura admirável na televisão e na imprensa francesas ao mesmo tempo que era correspondente e chefe do escritório parisiense da televisão americana ABC..Citaçãocitacao"Aprendi a redobrar a consciência do rigor, a preocupação da verdade, a capacidade de sacrifício, a adoção do espírito de servir, a seriedade que o caracterizam", Joaquim Letria, ex-porta-voz de Ramalho Eanes. Íntimo de Khrushchev desde os mísseis de Cuba, foi Salinger quem deu um toque de cultura à Casa Branca e a Jackie Kennedy, promovendo exposições, encontros, espetáculos e culminando este perfume de qualidade levando Pablo Casals e Igor Stravinsky, de quem era amigo, a atuarem na Casa Branca para os convidados do presidente. Foi nestas andanças da política e da cultura que o conheci em Washington e o reencontrara em Nova Iorque. Por isso o procurei em Paris. Fui assessor e porta-voz de Ramalho Eanes e com ele aprendi a redobrar a consciência do rigor, a preocupação da verdade, a capacidade do sacrifício, a adoção do espírito de servir, a seriedade que o caracterizam. Em seu nome conheci presidentes, reis e rainhas, levei-lhes recados, trouxe mensagens, viajei pelo mundo, recolhi informações. Nunca foi fácil, nem sempre agradável, mas no fim recebi de Eanes e de todos eles sinais de reconhecimento que ainda hoje conservo e muito me honram. Já em 1976 Eanes me convidara para dirigir a comunicação da campanha eleitoral para o seu primeiro mandato, mas eu havia iniciado o semanário O Jornal (hoje é a revista Visão) que tinha grande impacto e era politicamente relevante e recusei o honroso convite, vendo com gosto o escritor Álvaro Guerra, um querido amigo comum, desempenhar essas funções e depois progredir durante anos até ser um notável embaixador. Mas em 1980 o tempo era outro, as dificuldades políticas maiores, e Ramalho Eanes, com quem tivera o privilégio de trabalhar na RTP, e de quem ficara amigo, precisava de mim. Assim, vendi as minhas quotas em O Jornal e no Tal & Qual e parti de corpinho bem feito para Belém aplicando tudo o que sabia na comunicação, na política, na vida, acumulando pelo mundo fora amizades de muita gente ilustre. Aprendi com Ramalho Eanes a melhor servir Portugal e a ter orgulho em ser um homem feliz.. Há batalhas a que não podemos fugir Pedro Reis Ex-assessor para Assuntos Regionais e Locais de 1986 a 1996.Com o Presidente Mário Soares aprendi quase tudo. Fui um privilegiado, porque era muito novo quando comecei a trabalhar com ele e cresci a aprender todos os dias. Posso dizer que aprendi a ser livre pelo seu próprio exemplo de amor à liberdade. Que aprendi a importância de separar sempre o essencial do acessório e a focar-me no que é, realmente, importante. Que a crítica e a oposição, ao contrário de nos amargurarem, nos devem estimular. Que devemos ter, como companheiro permanente na viagem da vida, o bom senso. Que o sentido de humor faz parte da nossa vida e nunca o devemos perder. Com Mário Soares compreendi o verdadeiro valor da amizade e que a família é, sempre, um refúgio seguro. Com ele, aprendi história, conheci novos autores e ganhei o gosto pela pintura.. Nas eleições de 1991, Mário Soares partia como vencedor antecipado. Apesar disso, disse-me que queria uma campanha simples, com pouca gente a acompanhá-lo, mas que queria ir a todo o território. Desenhei um programa de campanha duro, onde tinha, ainda, de ser "encaixada" a agenda com os compromissos que o Presidente nunca deixa de ter. Entre a pré-campanha e a campanha, fomos às ilhas e a todos os distritos. Fez centenas de discursos, apertou milhares de mãos, percorreu todo o país, de carro, de comboio, de avião. Queria que todos entendessem que não há portugueses dispensáveis e que o Presidente está ao lado de todos. Acabou a campanha completamente esgotado. Setenta por cento dos portugueses confiaram nele, eu aprendi que nada deve ser dado por adquirido e que a política, quando levada a sério, obriga a grandes sacrifícios..Citaçãocitacao"Esteve sempre de mão dada com o seu bem mais precioso: a liberdade. Ensinou-me, ensinou-nos a todos, que é sempre tempo de lhe dar a mão. E nestes dias, que agora vivemos, lembro este seu ensinamento", Pedro Reis, ex-assessor de Mário Soares. Testemunhei, muitas vezes, a sua coragem, intelectual e física, e aprendi que devemos sempre procurar o diálogo - que não é o mesmo que consenso -, mas que há batalhas a que não podemos fugir. E Mário Soares, que foi um homem e um Presidente sem medo, ousado e temerário, travou batalhas em campo aberto enquanto outros se escondiam nas trincheiras. Mário Soares, que se definia a si próprio como socialista, republicano e laico, ensinou-me também que a vida deve ser vivida a grande velocidade. E o excesso de velocidade a que viveu a sua levou-o a chegar mais longe. E nessa viagem, com bons e maus momentos, esteve sempre de mão dada com o seu bem mais precioso: a liberdade. Ensinou-me, ensinou-nos a todos, que é sempre tempo de lhe dar a mão. E nestes dias que agora vivemos, lembro-me permanentemente deste seu ensinamento e do que, enquanto homens livres, lhe devemos.. Estimular o contraditório João Bonifácio Serra Consultor e assessor para os Assuntos Parlamentares de 1996-2004 e chefe da Casa Civil de 2004-2006 Às segundas e terças de manhã, a agenda do Presidente Jorge Sampaio assinalava, por defeito, reunião de assessorias. Às segundas, os "políticos", na gíria da casa, e às terças, os "económico-sociais". Decorriam na sala do Conselho Estado, a única em que era possível sentar à mesa todos os membros de cada grupo. Com a construção do edifício do Centro de Documentação, as reuniões das terças migraram para uma sala maior, que permitia abri-las a convidados externos. O Presidente deixava o casaco no gabinete e vestia um casaco de malha. Trazia o seu caderno A4 de argolas, onde tomava notas. De vez em quando, certificava-se, com o olhar, que o seu chefe da Casa, sentado do lado direito da mesa, o fazia igualmente. Cabia-lhe no final, em despacho com cada um dos assessores, dar sequência ao que ali fora proposto..Surpreendido e fascinado com esta prática, para mim inédita, passei, como todos os outros, a preparar-me para estas sessões, tentando antecipar os pontos em discussão, reunindo informações e ensaiando análises, prevenindo controvérsias. Jorge Sampaio conduzia os trabalhos, definia os temas da pronúncia, dava a palavra, nem sempre seguindo a ordem da volta à mesa, estimulava o contraditório. Aqueles eram espaços de liberdade crítica. Se para nós, seus colaboradores regulares, absorvidos no quotidiano, pela organização das condições da atividade presidencial, aquele era o momento mais empolgante do nosso desempenho, em que julgávamos possível dar um contributo para a perspetiva da ação presidencial, também era evidente que eram momentos desejados e valorizados pelo Presidente. Confiava naquela fórmula de promover a avaliação de acontecimentos e dossiês e tinha orgulho na solidez e na dedicação das suas equipas..Citaçãocitacao"Um líder de equipas e, nessa qualidade, alguém que não considerava o debate uma perda de tempo, antes o campo da descoberta de novas hipóteses.", João Serra, ex-chefe da Casa Civil de Jorge Sampaio. Nestas sessões das segundas e terças vejo também o modus operandi de um político com um percurso singular de mediador na história da democracia portuguesa. O mediador que cria e rege normas que permitem a discussão aberta, o agente político que quer genuinamente ouvir, para tentar perceber, no decurso da tomada de decisão. Jorge Sampaio sempre, afinal, tinha sido um líder de equipas e, nessa qualidade, alguém que não considerava o debate uma perda de tempo, antes o campo da descoberta de novas hipóteses. Ele instaurou na Presidência da República as modalidades de trabalho político em que sempre acreditara e de que realmente gostava. Fora assim enquanto presidente da Câmara de Lisboa, secretário-geral do PS, presidente do grupo parlamentar do PS. E, lá mais atrás, em 1962, enquanto secretário-geral da RIA.. Missão solitária e com discrição Suzana Toscano Assessora para a Educação de 2006 a 2016. A assessoria na Presidência da República foi um exercício de liberdade e de responsabilidade. Liberdade porque, ao longo dos dez anos em que exerci essa função, tive sempre plena autonomia no meu trabalho. Responsabilidade pela exigência que tal implicava no meu critério de organização e concretização desse trabalho.. Assessorar implica estar atento e preparado a todo o tempo para prestar apoio a quem tem de decidir. Não há ritmo certo, a cadência e a pressão são fixadas pela oportunidade que a realidade imponha. A agenda presidencial é, em regra, ditada pela atividade política e legislativa do Governo e do Parlamento, pelos prazos legais ou para intervir quando considere que tem de o fazer. A capacidade de resposta da assessoria implica um trabalho permanente de informação, de estudo e de avaliação. No caso da Presidência da República, órgão unipessoal sem poderes executivos, a atividade de assessoria rege-se de forma determinante pela personalidade do Presidente e pelas linhas de orientação que decidiu imprimir ao seu magistério. A reflexão de cada um devia ser tão isenta quanto possível de opiniões pessoais ou de preferências implícitas sobre a melhor decisão a tomar. Daí a exigência de rigor e imparcialidade, para habilitar o Presidente com informação rigorosa, tecnicamente suportada e decantados todos os pontos de incerteza. Muitas vezes fiz e refiz pareceres, repisei nos argumentos e o modo como os valorizava, sobretudo senti essa enorme responsabilidade de ser objetiva, sem me escusar a manifestar os meus próprios julgamentos..Citaçãocitacao"Excelência de rigor e imparcialidade, para habilitar o Presidente com informação rigorosa, tecnicamente suportada e decantados todos os pontos de incerteza.", Suzana Toscano, ex-asessora de Cavaco Silva. A assessoria na Presidência era, por isso mesmo, bastante solitária, apesar dos debates internos. A discrição era um imperativo, por isso os contactos com a comunicação social só se faziam através da respetiva assessoria, o que era difícil de aceitar pela imprensa, que procurava saber a opinião dos assessores para "anunciar" o que seriam as decisões presidenciais. Nada mais errado. O Presidente decidia sozinho, de acordo com a sua própria avaliação. Isto significa que, em bom rigor, nenhum assessor poderia antecipar as decisões presidenciais. Havia uma regra muito importante: uma coisa é falar, debater, outra, muito diferente, é escrever e assumir as conclusões. Isso é que compromete e evita equívocos. Na Presidência a regra foi essa desde o início, cada um falava com plena liberdade, mas depois tinha de passar a escrito a sua intervenção. Essa regra, por vezes difícil de cumprir, faz toda a diferença na credibilidade dos debates e na coordenação dos diferentes contributos. Ser assessora do Presidente Aníbal Cavaco Silva foi um privilégio, uma aprendizagem permanente e, sem dúvida, um exercício de humildade perante a exigência que a liberdade e a responsabilidade tão claramente impõem.. "As misérias do nosso quotidiano político" António Araújo Consultor para os Assuntos Políticos da Casa Civil do Presidente da República Um caminho longo, longo de mais de 30 anos, de aluno de licenciatura e orientando de mestrado até hoje, seu colaborador na Presidência da República (e daí o incómodo deste testemunho, naturalmente parcial, gostosamente comprometido)..Citaçãocitacao"Com Marcelo tenho aprendido, acima de tudo, o valor da tolerância. Dele ouvi, mesmo nas horas de maior calor, que seria incapaz de se zangar com quem quer que fosse por divergências políticas.", António Araújo, consultor de Marcelo Rebelo de Sousa. Com Marcelo Rebelo de Sousa tenho aprendido, acima de tudo, o valor da tolerância. Dele ouvi várias vezes, mesmo nas horas de maior calor, que seria incapaz de se zangar com quem quer que fosse por causa de divergências políticas (ou, se quisermos, por causa daquilo a que o próprio chamou, num escrito de há vários anos, "as misérias do nosso quotidiano político"). A experiência de muitas décadas de convívio próximo com tais desastres, que conhece desde criança e sabe analisar como ninguém, leva-o a ter uma visão distanciada e complacente, a cada dia mais sábia, perante conflitos efémeros e guerrilhas conjunturais, perante as amizades ou inimizades que, em política, se fazem e desfazem num piscar de olhos, para no dia seguinte regressarem ao que sempre foram. Para os que cultivam a mágoa e o ressentimento (e o nosso tempo é bem propício a tais exercícios de autoflagelação), para os que são incapazes de se libertar de azedumes pretéritos, o transbordante ecumenismo de Marcelo Rebelo de Sousa, a um tempo laico e evangélico, será deveras insuportável, admito. Mas, nos dias agrestes que correm, de crispação e polarização radicais, de extremar violento de posições e de opiniões, talvez ainda não nos tenhamos apercebido por inteiro da importância e do valor de uma atitude como a sua, medularmente liberal, de abertura e diálogo, de respeito pelo pensamento alheio, de suma civilidade perante o que lhe é adverso e diverso, antagónico até (como ficou exemplarmente demonstrado nos debates televisivos que antecederam a sua reeleição).. A celebração festiva da convivialidade, plasmada em milhares de selfies tiradas por esse país fora, esconde, porém, uma faceta mais íntima e mais reservada, mais obscura, quase secreta. No exercício mais solitário do mandato presidencial de que há registo e memória na nossa democracia, existe uma dimensão sacrificial profunda, que a exuberância e o lúdico nem sempre conseguem dissimular. Mais do que ninguém, Marcelo Rebelo de Sousa está consciente das muitas agruras que teve de enfrentar, na solidão de si mesmo, ao longo dos últimos cinco anos - e das muitas mais que se avizinham, provavelmente ainda piores. Tal não o impediu de se recandidatar, mesmo quando a circunstância lhe é tão desfavorável. Foi, de resto, nos momentos trágicos - nos incêndios de 2017 e agora, na presente pandemia - que aquele perfil expiatório, cristãmente penitencial, mais se acentuou e cresceu, se agigantou, em entrega absoluta e incondicional ao cargo, ao país e aos outros, sobretudo aos que pressente serem mais necessitados e, logo, mais merecedores do seu compassivo afeto. Tudo isto, convenhamos, é comovente de observar.