Dificilmente teria mais de um metro e 60 centímentos mas movia-se com grande dignidade. A sua cabeça tinha a forma exata de um ovo e era inclinada para um dos lados. O seu bigode era muito rígido e militar. Mesmo que todo o seu rosto estivesse coberto, as pontas do bigode e o nariz rosado seriam visíveis. A sua roupa estava sempre incrivelmente impecável. Acredito que um grão de pó lhe teria causado mais dor do que a ferida de uma bala. No entanto, esse homenzinho pitoresco e dandy que, infelizmente, agora coxeava bastante, fora na sua época um dos membros mais célebres da polícia belga." É assim Hercule Poirot, tal como o descreve Hastings no segundo capítulo de O Misterioso Caso de Styles, de Agatha Christie, o livro que comemora este ano o 100.º aniversário - foi publicado primeiro nos Estados Unidos, em outubro de 1920, e só em janeiro do ano seguinte no Reino Unido..No entanto, Poirot já existia desde 1916. Tudo aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial. Como tantas outras raparigas, em 1914 a inglesa Agatha Christie, que tinha na altura 24 anos, voluntariou-se para trabalhar num hospital. Primeiro como enfermeira, depois foi colocada no dispensário, onde ficou durante dois anos. "Foi enquanto trabalhava no dispensário que pensei pela primeira vez em escrever uma história policial", conta a autora na sua autobiogradia (publicada em Portugal pela Asa). "Comecei a pensar no tipo de história policial que poderia escrever. Uma vez que estava rodeada de venenos, talvez fosse natural que o método de eleição fosse morte por envenenamento." Agatha sabia exatamente as quantidades de estricnina, arsénio ou cianeto que deveria usar nos seus homicídios, os efeitos provocados por cada um deles e como é que eles seriam (ou não) descobertos pela polícia.."Quem poderia ter como detetive?", perguntou-se. Ela era fã de Sherlock Holmes e claro que foi influenciada pelo detetive criado por Arthur Conan Doyle no final do século XIX. Também havia Arsène Lupin, de que Christie não gostava muito. Ela queria alguém diferente. Foi então que se lembrou dos refugiados belgas, que tinham vindo para o país durante a guerra. "E se fosse um agente da polícia refugiado? Um polícia aposentado. Não muito novo.".Foi assim que surgiu Hercule Poirot. "Devia ter sido um inspetor, para ter algum conhecimento sobre o crime. Seria meticuloso, muito organizado. (...) Conseguia vê-lo como um homenzinho metódico, sempre a arranjar as coisas, a gostar das coisas aos pares, a gostar mais de coisas quadradas do que redondas. E seria muito inteligente - teria celulazinhas cinzentas - era uma boa expressão." Escreveu nos tempos livres. "Depois mandei datilografar o livro como deve ser e, tendo decidido finalmente que não podia fazer mais nada, enviei-o para uma editora - a Hodder & Stoughton - que o devolveu. Foi uma recusa direta, sem paninhos quentes. Não fiquei surpreendida - não estava à espera de um sucesso mas voltei a enviá-lo para outra editora.".O sucesso inesperado.Entretanto, a guerra acabou, Agatha Christie mudou-se para Londres com o marido Archie, ela teve uma filha, no meio disto tudo, nunca mais pensou no seu livro. Até que um dia recebeu uma carta de John Lade, da editora The Bodley Head, a quem ela tinha enviado o manuscrito uns dois anos antes, pedindo-lhe para falarem n"O Misterioso Caso de Styles. O editor propôs-lhe algumas correções. Uma delas era que substituísse o tribunal, onde Poirot revela a solução do caso, pela sala de estar de Styles Court - o tipo de cena que haveria Fde se tornar comum nas futuras histórias de Agatha Christie..O livro acabou por, finalmente, ser editado e vendeu perto de dois mil exemplares, o que não era mau, na altura, para um livro policial de uma autora desconhecida. O marido incentivou-a a continuar a escrever. Ao terceiro livro, ainda sem ter muita certeza de que essa seria a sua carreira, voltou ao seu detetive belga. Os leitores tinham gostado.Bruce Ingram, na altura editor do The Sketch, encomendou-lhe uma série de contos com o detetive. "Finalmente estava a tornar-me um sucesso.".Tal como Sherlock Holmes, Poirot tem um amigo que é seu companheiro em muitas aventuras, o capitão Hastings. Mas ao contrário dos detetives tradicionais, obcecados com provas, pegadas e impressões digitais, Poirot usa as suas "celulazinhas cinzenta" para perceber os motivos, os métodos e os objetivos dos criminosos. Para ele, mais importante do que analisar a cena do crime, é perceber a natureza do crime e a psicologia do seu responsável."O verdadeiro segredo para uma boa história policial é que tem de ser alguém óbvio, mas que ao mesmo tempo, por qualquer razão, se descubra que afinal não é nada óbvio, que não pode ter sido aquela pessoa. Embora, na realidade, claro, tenha de facto sido ela", explica Agatha Christie na sua autobiografia..Poirot não é propriamente um figura muito simpática, pelo menos na maioria dos livros. Obsessivo-cumpulsivo, arrogante e egocêntrico, é extremamente pontual e está sempre acompanhado pelo seu relógio de bolso, sofre do estomago e enjoa no mar. E, apesar de todas as manias, é um homem justo e que sabe, em algumas ocasiões, mostrar alguma compaixão. O público adorava-o..Os muitos rostos de Poirot.O primeiro ator a interpretar Hercule Poirot foi Charles Laughton, em Alibi, uma adaptação do romance O Assassinato de Roger Ackroyd que esteve num palco do West End londrino em 1928. Austin Trevor estreou-se no papel de Poirot no filme feito a partir dessa peça, em 1931. Sem bigode (o que não deixa de ser um pouco estranho), Trevor faria mais dois filmes como Poirot..Entre as várias interpretações do detetive, no cinema e na televisão, destaca-se a de Albert Finney no Crime no Expresso do Oriente, de 1974. Dirigido por Sidney Lumet, o filme é uma autêntica galeria de estrelas, com Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Jacqueline Bisset, Sean Connery, John Guilgud, Vanessa Redgrave, Anthony Perkins, entre outros. Teve seis nomeações para os Óscares, incluindo para melhor ator (Finney) mas só Bergman ganhou a estatueta para melhor atriz secundária. Apesar disso, Finney é, até agora, o único ator a ser nomeado para um Óscar com uma interpretação de Poirot..Peter Ustinov interpetou o papel de Poirot em Morte no Nilo em 1978. Desde a aparência pouco cuidada, com o bigode em desalinho, até aos gestos expansivos, Ustinov foi bastante criticado. No entanto, ele foi convidado a repetir o papel, tendo-o interpretado seis vezes no total. Diz-se que a filha de Agatha, Rosalind Hicks, comentou: "Esse não é Poirot! Ele não é nada assim!" Ustinov respondeu: "Agora é"..Mas não era. O Poirot de Ustinov é facilmente apagado por aquele criado por David Suchet na série da ITV que se estendeu por 70 episódios e 25 anos (1989-2013). Para se preparar para o papel, Suchet leu todos os livros e anotou num caderno todas as características de Poirot: as roupas, os relógios, o facto de ele se recusar a comer dois ovos cozidos que não fossem do mesmo tamanho. Antes de começar a gravar cada série, pegava na bengala e passeava pela casa e pelo jardim, falava como Poirot e tentar "ver o mundo através dos seus olhos"..Provavelmente, este é o rosto que a maioria das pessoas continua a ver como sendo o de Poirot. Não o de Alfred Molina, que interpretou em 2001 o Crime no Expresso do Oriente; nem mesmo o de Kenneth Branagh que fez, em 2017, uma nova versão cinematográfica do mesmo livro. Branagh terá, no entanto, pelo menos mais uma oportunidade para nos convencer: a sua Morte no Nilo tem estreia marcada nos cinemas portugueses (em princípio) para 1 de outubro..Até lá, talvez o único rival que esteja à altura de Suchet seja John Malkovich que em 2018 protagonizou a minissérie Os Crimes do ABC onde, mantendo todos os traços da personalidade e todas as manias que já lhe conhecíamos, nos traz um Poirot mais humano, vulnerável, assombrado pelo passado na Bélgica e atormentado pela incontornável decadência provocada pelo tempo..Atormentada também se sentiu Agatha Christie, dividida entre o amor e o ódio pela sua criatura. A autora sentiu, algumas vezes, vontade de o abandonar mas só teve coragem de o fazer em 1975. Hercule Poirot "morreu" no livro Cai o Pano - O Último Caso de Poirot . Foi até hoje a única personagem de ficção a ter direito a um obituário nas páginas do jornal The New York Times.