Português ganha prémio de 1,5 milhões: "Vamos explorar uma nova fronteira na biomedicina"
No verão do ano passado Henrique Veiga-Fernandes recebeu um e-mail do Paul Allen Frontier Group, uma organização criada pelo cofundador da Microsoft, Paul Allen (falecido em 15 de outubro), que pretendia ouvi-lo sobre o seu trabalho pioneiro, e saber como essa área poderia evoluir. Em 2014, o cientista português, que então liderava um grupo de investigação no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, fez uma descoberta sensacional: a de que há um diálogo permanente entre as células do sistema nervoso e as do sistema imunitário. Com isso abriu caminho a uma nova área de investigação: a neuroimunologia, que não tem parado de crescer. "Está em plena explosão", reconhece o agora cientista da Fundação Champalimaud. Convidado pelo grupo de Paul Allen a expor a sua visão sobre o futuro nesta área, Henrique Veiga-Fernandes avançou a hipótese de uma nova pesquisa: estabelecer a arquitetura das vias de comunicação que sustentam a comunicação entre os dois sistemas, o nervoso e o imunitário. A ideia ganhou o prémio Allen Distinguished Investigator, hoje anunciado pela instituição. Ao DN, o cientista conta como foi esse percurso. Das perguntas iniciais, à surpresa da descoberta, e de como o seu trabalho pioneiro serve agora de base à caminhada científica de muitos outros grupos de investigação no mundo.
Qual é a importância deste prémio?
É um prestígio enorme. É um prémio atribuído a um número muito restrito de investigadores, que são convidados a participar num workshop promovido pela fundação do Paul Allen [o Allen Frontier Group, nos Estados Unidos] sobre uma temática na fronteira da ciência, de potencial grande impacto no conhecimento em biomedicina, e que são convidados a submeter propostas. É um processo muito seletivo. Há apenas dois prémios atribuídos neste ano, e nós tivemos a felicidade de ganhar um deles. É uma honra imensa. E é uma enorme excitação, por ver um trabalho de fronteira ser financiado de forma tão generosa, no valor de 1,5 milhões de euros para três anos. Estamos a falar de meio milhão de euros por ano, o que é equivalente aos financiamentos milionários do Conselho Europeu de Investigação [ERC, na sigla de língua inglesa]. Sobretudo, permite financiar investigação de alto risco, porque cada vez mais temos um certo conservadorismo na atribuição de prémios deste montante. Isso dá-nos uma liberdade extraordinária que a maior parte dos atuais mecanismos de financiamento da ciência não conseguem dar.
É a primeira vez que este prémio é atribuído em Portugal. Isso também conta?
A ciência é internacional, não penso que isso seja o mais importante. Haverá outros portugueses que foram pioneiros com outros prémios. É importante porque me vai permitir fazer investigação nova.
Descobriu um conhecimento novo para a ciência, que é o diálogo entre os sistemas nervoso e imunitário, até então desconhecido. Essa descoberta surpreendeu-o?
Há sete anos verificámos que havia células do sistema imunitário, as que nos ajudam a combater infeções por vírus ou bactérias, que tinham na sua superfície umas moléculas que são características de neurónios, e que são quase como antenas. E estas eram as mesmas antenas, ou seja, as mesmas moléculas que vemos nos neurónios. Inicialmente isso foi uma enorme surpresa. Então perguntámo-nos: mas o que é que isto está aqui a fazer? E o que descobrimos foi que não só as células do sistema imunitário exprimem essa antena, ou molécula, mas utilizam-na para comunicar diretamente com as células do sistema nervoso. Essa primeira grande descoberta foi feita nas células da medula óssea, onde todas as células do sistema imunitário são formadas. Depois conseguimos estender esses resultados a outros órgãos, nomeadamente aos intestinos e ao pulmão. Sabemos atualmente que, desde a formação inicial de todas as células dos sistema imunitário até à sua ação na proteção contra doenças, este diálogo entre os neurónios do sistema nervoso e as células do sistema imunitário está sempre presentes e é extraordinariamente importante.
O que se seguiu depois dessa descoberta inicial?
Depois passámos a olhar para a questão de uma forma ligeiramente diferente. Pensámos: se temos antenas neuronais que são expressas pelo sistema imunitário, e que controlam a formação de todas as células do sistema imunitário, então é possível que esse diálogo entre os dois sistemas, o nervoso e o imunitário, também aconteça em contextos de doença. E passámos a explorar esse tipo de comunicação na doença inflamatória crónica do intestino. Com isso demonstrámos que os neurónios conseguem fornecer uma informação ao sistema imunitário que permite que este funcione como um guardião da imunidade no intestino de forma eficiente. Isso deu-nos pistas terapêuticas para uma possível nova abordagem das doenças inflamatórias crónicas do intestino.
Já têm resultados concretos disso?
Criámos há pouco uma startup e conseguimos investimento muito importante que nos vai permitir explorar esse eixo terapêutico num contexto empresarial e pré-clínico. Neste momento já temos dois princípios ativos que gostaríamos de desenvolver como prova de conceito para tratamento de patologias inflamatórias. Na base dessas abordagens está este diálogo entre as células do sistema imunitário e nervoso. O que estamos a utilizar são compostos que conseguem alterar a comunicação entre os dois sistemas.
Quando é que isso pode chegar à clínica?
Estamos na fase pré-clínica, em que já temos validação e resultados muito promissores em modelos de várias doenças. Penso que estaremos em condições de fazer os primeiros ensaios clínicos dentro de três anos. Chegarmos ou não à clínica dependerá dos resultados dos ensaios clínicos. Estarmos a explorar uma nova família de moléculas que até agora não foram exploradas nestas doenças deixa-nos uma enorme esperança.
É um caminho novo?
Absolutamente. É uma nova área, a neuroimunologia. Há muito tempo que se suspeitava da existência deste diálogo entre o sistema nervoso e o sistema imunitário. Num contexto de inflamação ou de doença infecciosa, e todos passamos por isso, temos alterações da cognição, ficamos mais em baixo, não conseguimos pensar da mesma forma. Isso tem que ver com o impacto que substâncias produzidas pelo sistema imunitário têm no sistema nervoso. O que é agora novo, e veio abrir uma nova disciplina, e os nossos trabalhos foram em grande medida pioneiros nisso, é o facto de continuarmos a observar comunicação do sistema nervoso com o imunitário, numa comunicação bidirecional, não apenas no contexto de doença, mas também no da saúde. Essa comunicação é essencial para preservar a saúde a todos os níveis. Para manter o intestino saudável, a função respiratória correta, o metabolismo eficiente. Portanto, o que pensávamos inicialmente que poderia estar restrito a um determinado órgão parece ser mais generalizado.
Os vossos trabalhos foram pioneiros em que medida?
Mostrámos pela primeira vez não apenas o fenómeno, mas a sua caracterização extensiva do ponto de vista molecular, identificando as proteínas e as moléculas que estes dois tipos de células usam para interagir. Conseguimos determinar todos os intervenientes deste processo. Só poderemos criar novas terapêuticas quando percebemos quais são as moléculas, só assim é possível desenhar fármacos que aumentem ou reduzam esta sinalização entre as células dos dois sistemas. Nalguns casos poderemos querer aumentar este diálogo, e noutros reduzi-la, dependendo do quadro clínico. Mas para isso é preciso conhecer as moléculas que são produzidas de um lado e de outro.
Como é que se interessou por esta questão?
O meu interesse nesta área surgiu quase desde que comecei a trabalhar em ciência. Ainda estava a estudar na universidade, Medicina Veterinária. No último ano tínhamos de fazer um estágio e eu, logo na altura, quis fazer investigação. Estudei o efeito que uma infeção, a doença do sono, tinha no sistema nervoso, e apercebi-me logo de que o sistema imunitário tinha grande impacto no sistema nervoso. Isto foi em 1997, no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Foi a primeira vez que me confrontei com uma pergunta científica. Mas na altura não tínhamos as ferramentas nem as tecnologias para abordar a questão de uma forma molecular, isso veio a acontecer quase 20 anos depois. Na época já era uma questão de fronteira, mas ainda não podíamos colocar as perguntas certas nem responder-lhes de forma satisfatória. Nesse momento não me questionei se haveria uma comunicação entre os dois sistemas. O que era óbvio, ao olhar pelo microscópio, é que havia células do sistema imunitário que num contexto de doença invadiam o sistema nervoso, e isso sugeria que havia produtos das células imunitárias que tinham impacto nas células nervosas. Mas estava longe de pensar que isto poderia estar na base de uma comunicação bidirecional entre os dois sistemas, e que isso era tão relevante no contexto de doença, mas também para o bom funcionamento do organismo. Isso só surgiu mais tarde, quando tive a formação necessária para conseguir fazer as perguntas certas.
Quando lhe surgiu a pergunta: mas afinal o que é que estas moléculas estão aqui fazer?
Foi ao ver um padrão de expressão de moléculas que estava presente nas células imunitárias mesmo sem doença aparente e em múltiplos órgãos. Isso fez-nos pensar: isto está aqui a fazer qualquer coisa. Esse foi o ponto de partida para começarmos a explorar a questão de forma mais sistemática. Isso só foi possível porque tínhamos conhecimentos muito aprofundados destes dois sistemas. Estamos aqui na fronteira da neurociência com a imunologia. Nesses momentos é preciso também não ter medo de abordar o desconhecido, porque quando isso acontece erramos muitas vezes, não tenho problema em dizê-lo. Mas faz parte, quando se salta para o desconhecido, muitas das hipóteses em que pensamos estão erradas. Por isso, fazemos experiências, e se não é por ali, temos de pensar noutro caminho.
Foi difícil convencer a comunidade científica daqueles primeiros resultados?
Foi. Para esse primeiro artigo científico, que enviámos para Nature e que saiu em 2014, estivemos dois anos a fazer as revisões que nos foram pedidas. Mas é sempre assim quando há ideias de rutura ou novas: há alguma apreensão. E as revisões que nos foram pedidas estavam corretas, mas talvez por ser terreno virgem foram-nos pedidas mais do que normalmente seriam.
Este prémio vai servir para aprofundar esta área?
Este prémio é para o passo que se segue a estas grandes descobertas. Vai permitir explorar uma nova área de fronteira. Havendo comunicação entre estes dois sistemas, então é razoável pensar que existem vias de comunicação, ou seja, circuitos estabelecidos entre os dois sistemas, e em múltiplos órgãos, para que isso aconteça. Nos músculos, no intestino, no tecido adiposo, na pele, etc. Provavelmente temos circuitos muito bem estruturados que permitem essa comunicação eficiente das células imunitárias com as células nervosas. E se conhecermos essas vias de comunicação podemos interferir nos fenómenos biológicos coordenados por elas de forma muito mais eficaz, e podemos começar a tratar doenças, não apenas do ponto de vista molecular, mas também do ponto de vista das vias de comunicação, numa abordagem mais global. O prémio torna possível este estudo porque permite o desenvolvimento de uma tecnologia totalmente nova, que até agora não estava disponível.
Qual é essa tecnologia?
No laboratório, na tradução literal, chamamos-lhe "o beijo e o batom". Com essa tecnologia, quando uma célula imunitária interage com um neurónio, este fica marcado com uma cor fluorescente. Isso é feito com engenharia genética e vai permitir saber, numa situação de doença e de saúde, quais os neurónios, num determinado órgão, que tiveram interação com as células imunitárias e verificar as suas consequências. A isto chamamos o beijo: a célula imune beija o neurónio. A outra abordagem, a do batom, permite-nos olhar para a mesma comunicação, mas na perspetiva do que acontece às células imunitárias, que receberam informação dos neurónios. Mais uma vez com engenharia genética conseguimos alterar os neurónios de forma que, ao interagirem com células do sistema imunitário, colam-lhes um pouco de batom. Assim vamos poder seguir as células imunitárias que contactaram com os neurónios, observar o seu percurso e o que vão fazer. E assim estudaremos as interações entre os dois sistemas, para perceber as tais vias de comunicação e a arquitetura do sistema neuroimune.
Que doenças estão aqui em causa?
São múltiplas. Estamos a falar de doenças inflamatórias crónicas, particularmente no intestino, como a doença de Crohn. Isto é muito importante porque está na base de grande parte dos cancros gastrointestinais. E há as doenças do foro respiratório, como a asma e as alergias, já temos dados pré-clínicos nesse sentido. Outra área é a obesidade, um dos flagelos atuais, que causa a diabetes.
Disse que houve um processo que levou ao prémio. Foi contactado por eles?
Sim. Um dia, no verão do ano passado, estava em vésperas de ir de férias com a família, e recebi um e-mail de alguém que não conhecia, da Paul Allen Foundation Frontiers, que queria falar comigo. Conversámos ao telefone logo no dia seguinte e, para minha grande surpresa, estavam muito interessados no meu trabalho, e queriam saber a minha opinião sobre como esta área iria evoluir. Passados uns meses fui convidado para um workshop com mais dez ou 12 colegas de outros centros internacionais para debater os tópicos emergentes nesta área. Cada participante expôs a sua ideia e no final houve uma votação. De forma surpreendente, a nossa ideia de estudar a arquitetura do sistema neuroimune foi a que teve mais votos. A partir daí abriram um concurso para propostas, nós apresentámos a nossa e fomos os felizes contemplados. Ganhámos o prémio. Estas são áreas muito dinâmicas, e é extraordinário ver os outros colegas, noutras instituições, e noutros países, a seguirem o seu caminho com base nos nossos passos iniciais. O mais gratificante é que esta área que começou com algumas das nossas observações está agora em grande expansão, já não apenas graças ao nosso esforço, mas ao esforço da comunidade científica internacional.
Perfil
Henrique Veiga-Fernandes formou-se em Medicina Veterinária na Universidade de Lisboa. Em 2002 doutorou-se em imunologia em Paris, onde estudou o funcionamento dos linfócitos. Em seguida foi para Londres fazer um pós-doutoramento. Continuou a estudar as células do sistema imunitário, mas nessa altura visualizando a sua ação. Foi aí que se apercebeu pela primeira vez da existência de moléculas específicas de neurónios nas células do sistema imunitário. Em 2009, depois de ter ganho uma bolsa do ERC, regressou a Portugal e foi para o IMM, onde acabou por fazer a sua primeira grande descoberta. Desde 2016 é investigador principal da Fundação Champalimaud. Além do prémio Paul Allen, já ganhou até agora quatro bolsas do Conselho Europeu de investigação.