Khalifa Haftar, o homem que regressou à Líbia em 2011 para combater os islamistas num cenário pós-Kadhafi, e que tem tentado pela via da força militar tomar a capital, chamou a si a responsabilidade de liderar o país..Num discurso televisivo, Haftar declarou na segunda-feira que o seu exército se orgulhava de ter sido "mandatado com a tarefa histórica" de liderar a Líbia. "Anunciamos a nossa aceitação da vontade e do mandato do povo e o fim do Acordo de Skhirat", referindo-se ao acordo mediado pelas Nações Unidas e assinado em 2015 em Marrocos que desembocou no governo de Trípoli e que deveria ser de unidade nacional (GNA na sigla inglesa)..Afirmou ainda que as suas forças vão trabalhar "para criar as condições necessárias à construção das instituições permanentes de um Estado civil". Uma fonte próxima de Haftar disse à AFP que se preparava para anunciar um novo governo no leste da Líbia..Haftar já tinha anunciou em 2017 o fim do Acordo de Skhirat e, três anos antes, disse também na televisão que iria tomar o poder na Líbia..O militar de 76 anos não deixou claro se o Parlamento apoiava a sua iniciativa, ou qual seria o seu papel. Em 2014, a assembleia mudou-se para o leste do país devido à violência na capital, signatária do acordo. Até agora, a legitimidade de Haftar tem emanado da administração sediada em Tobruk.."Haftar exige agora (ao Parlamento) que se submeta inteiramente ao exército, quer de comum acordo, quer por força unilateral", comentou Jalel Harchaoui, investigador do Instituto Clingendael, em Haia. Na terça-feira, o GNA convidou os deputados que permanecem no leste a juntarem-se aos seus colegas em Trípoli. Mas Harchaoui não crê que o convite tenha grande adesão..Há um ano, o homem que participou no golpe que levou Kadhafi ao poder, em 1969, com o controlo da maior parte do território, lançou um ataque com o seu Exércitio Nacional Líbio (LNA) para tomar a capital ao GNA, liderado por Fayez el-Sarraj..O governo reconhecido pela ONU acusou no dia seguinte Khalifa Haftar de tentar encenar um golpe de Estado e de querer instalar uma nova ditadura militar. Numa declaração, o governo de Sarraj denunciou o anúncio de Haftar como "uma farsa e o último de uma longa série de golpes de Estado"..O GNA disse ainda que a declaração de Haftar foi uma tentativa de "esconder a derrota das suas milícias e mercenários" e "o fracasso do seu projecto ditatorial"..Os analistas, por sua vez, afirmam que a sua iniciativa foi um sinal de que pretende consolidar o seu poder após uma série de desaires no início deste mês, quando as forças do GNA capturaram uma série de cidades estratégicas a oeste de Trípoli..E horas depois do discurso de segunda-feira, dois bastiões militares e logísticos de Haftar na campanha de Trípoli foram atingidos: a base aérea de Wattiyah, 130 km a sudoeste da capital, e Beni Walid, a 180 km a sudeste de Trípoli, a principal linha de abastecimento do LNA ao principal centro de operações, em Tarhouna..Ao jornal egípcio Mada Masr , um residente de Bani Walid disse ter avistado um drone sobre a cidade meia hora antes dos ataques aéreos de segunda-feira à noite, do qual resultaram três civis mortos e dois outros feridos no ataque aéreo a um camião que transportava mercadorias..Ao órgão de informação egípcio, fontes na Líbia, no Egito e na Europa falam em "erosão do apoio internacional e interno ao LNA, uma erosão que só se acelerará se Haftar continuar a perder terreno"..Apoio turco desequilibra.Ninguém arriscaria esse cenário há meia dúzia de meses, quando o LNA fazia progressos em direção a Trípoli. Mas o GNA recebeu um reforço de meios oriundo da Turquia que desequilibrou os pratos da balança: os drones (Bayraktar TB2) adquiridos pelo Qatar, os bloqueadores de radar (KORAL), ambos de fabrico turco..Além disso estão no terreno combatentes sírios patrocinados por Ancara. E até uma fragata turca que, no dia 1 de abril, disparou mísseis contra drones do LNA, no que foi a primeira intervenção direta da Turquia no conflito..Depois de terem tomado duas cidades costeiras a oeste de Trípoli, as forças do GNA, com o apoio da Turquia, estão agora a começar o cerco à principal base da retaguarda de Haftar, em Tarhunah, a 60 quilómetros da capital..Tudo somado, o apoio dado pelo líder turco Tayyip Erdogan revelou-se determinante, enquanto do outro lado desta guerra por procuração, os apoios parecem mais incertos, em especial os de Paris, Washington e Moscovo..Os Emirados Árabes Unidos e o Egito são os países que declaram apoio público a Haftar com o objetivo de combater a Irmandade Muçulmana. Os primeiros têm dado apoio a nível aéreo, os egípcios com conselheiros militares..O país mergulhou no caos desde a queda e assassínio do ditador Muammar Kadhafi, em 2011, com governos rivais a disputar o poder na Cirenaica (leste) e Tripolitânia (oeste) e a ameaça de grupos islamistas tomarem o poder..Até as Nações Unidas simbolizam o fracasso de todo este emaranhado. O chefe da missão de apoio da ONU, Ghassan Salamé demitiu-se em março, frustrado com as interferências externas..O porta-voz do secretário-geral António Guterres manifestou a sua preocupação com a iniciativa da Haftar e renovou o apoio ao GNA. "Para nós, o acordo (de Skhirat), as instituições que saem deste acordo, continuam a ser o único quadro de governo internacionalmente reconhecido na Líbia", reafirmou Stephane Dujarric.."Ao pôr de lado a autoridade do (Parlamento) e ao eleger-se a si próprio como líder indiscutível no leste, Haftar está a afirmar-se como fulcral para qualquer solução negociada", disse Hamish Kinnear, analista da Verisk Maplecroft, à AFP, que vê também no discurso "um sinal do seu desespero crescente".Potências pedem diálogo.Na terça-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou que Moscovo "continua convencido de que a única solução possível na Líbia depende dos contactos políticos e diplomáticos entre as partes em conflito", sinalizando um aparente afastamento em relação a Haftar..Também Washington apelou ao diálogo entre as duas partes e também a uma trégua "humanitária" à luz da pandemia. A embaixada norte-americana na Líbia tuitou que "os Estados Unidos da América lamentam a sugestão de Haftar de que as mudanças na estrutura política da Líbia podem ser impostas por declaração unilateral"..Peter Stano, o porta-voz do chefe da diplomacia da União Europeia Josep Borrell, afirmou que "qualquer tentativa de avançar com soluções unilaterais - ainda mais pela força - nunca proporcionará uma solução sustentável" para a Líbia..União Europeia que deverá pôr em andamento nos próximos dias uma missão naval há muito adiada. Na segunda-feira, os estados-membros da UE concordaram em equipar a nova operação, denominada Irini, com navios, aviões e satélites..O objetivo é travar o fluxo de armas para a Líbia. "A missão Irini tem os recursos necessários para iniciar", afirmou Stano.