No Carnaval da Graciosa, nos bailes regionais que acontecem quase todas as semanas em São Jorge, na Chamarrita do Pico, nas festas do Espírito Santo ou um pouco por todos os pontos do arquipélago, a viola da terra é uma das sonoridades mais características dos Açores. Ao som daquela viola de arame, peculiar, junta-se a imagem, com dois corações que lhe dão um nome alternativo..Durante muito tempo faltaram construtores, agora veem-se alguns na casa dos 30 anos a interessarem-se pelo instrumento, ensinado no Conservatório Regional de Ponta Delgada e em cada vez mais escolas do arquipélago. Cada vez mais a viola da terra é também mais escutada a solo. Rafael Carvalho é um dos principais responsáveis por isso. Em 2018 lançou 9 Ilhas, 2 Corações, o seu quarto disco, muito diferente dos outros. Aqui só se ouve a viola da terra, numa espécie de arquivo sonoro do reportório tradicional açoriano..Voltamos ao começo da história. Sem saber bem o que era aquilo, o músico lembra-se de ouvir no Natal o instrumento a que viria a dedicar a maior parte das horas do seu dia. "Nós temos uma tradição que é o grupo do menino Jesus, um grupo que vai cantando e tocando e levando o menino Jesus pela freguesia. Lembro-me de ver os tocadores de viola da terra quando tinha 7, 8 anos.".Depois de Rafael Carvalho aprender com o pai "uns acordes no violão", apareceu na freguesia Carlos Quental, mestre de viola dos dois corações, outro nome para aquele instrumento. E aí abriu-se um novo mundo. "Ele vivia para aquilo. E a viola da terra era o confidente dos açorianos, que animava os serões. O som é uma coisa para se ficar apaixonado." Hoje, bem longe daquele tempo, o compositor, instrumentista e professor de 38 anos tenta falar aos seus alunos com a paixão que lhe veio do mestre..Conta-nos as histórias por detrás daquela viola de arame da mesma maneira. "A nossa viola, que era tocada pelo povo, proporcionava o convívio em dias de trabalho duro. Estamos a falar de camponeses e pescadores, vinha daí a principal fonte de rendimento no passado. As pessoas todo o dia trabalhavam, chegavam ao final do dia e tocavam a viola e bailavam para esquecer o cansaço. E o cansaço esquecia-se. O grande papel da viola era esse de congregar as pessoas e elas esqueciam que o jantar até nem foi muito bom e que no dia seguinte se calhar nem haveria comida na mesa. Era o momento - e acredito que continua a ser - em que as pessoas esquecem tudo o resto. Sem a viola o serão ia ser muito triste.".Porquê dois corações e um espelho.Da viola da terra atual ainda faz parte o espelho onde os tocadores se arranjavam de forma condigna ao que iriam fazer de seguida: tocar. "A minha também tem para eu me pentear", diz, a rir-se, Rafael Carvalho. "As pessoas primeiro lavavam-se, vestiam a camisa fina, a melhor, e só depois é que vinham para a soleira da porta tocar. Como os velhotes que chegam à igreja e tiram o chapéu em sinal de respeito. Não se tocava viola de qualquer maneira, não se tocava viola com as calças sujas. O espelho era para isso, para o tocador fazer a barba e para se pentear.".Em relação aos dois corações, o elemento visual mais característico da viola, que pertence à mesma família, por exemplo, da viola campaniça, Rafael Carvalho explica que "os dois corações representam o coração que partiu e o coração que ficou. Nos Açores somos muito marcados pela emigração para os Estados Unidos, Canadá, Brasil... Em qualquer parte do mundo há um açoriano"..Outra das interpretações - e aqui o músico explica que estamos "na parte mais mística, de que nem toda a gente gosta" - tem que ver com a evocação do "amor, o amor proibido, o amor por outra pessoa, o amor do dia-a-dia. Outra ligação é a saudade"..Rafael Carvalho diz que este é um "momento de redescoberta da viola da terra. Agora tem havido um novo interesse dos mais novos, há escolas de viola a aparecer". Professor no Conservatório Regional de Ponta Delgada, onde a viola da terra é ensinada há 35 anos, até recentemente apenas até ao curso básico e agora até ao secundário, explica que "mais nenhum dos conservatórios do país tem a viola de arame oficializada, só ensinam como curso livre. Nos Açores demos esse passo"..Além do conservatório, dá aulas em várias escolas, entre elas a Escola de Viola da Fajã de Baixo, onde tem alunos dos 11 aos 83 anos. "São pessoas que tiveram contacto com a viola, alguns sabem tocar, quiseram aprofundar. Eu digo que é uma parceria. Tenho muito respeito por eles. Partilhamos conhecimento.".Além de poder explicar a origem dos dois corações na viola, a emigração também explica a ausência de construtores do instrumento que a certa altura se verificou. "As gerações mais novas não se dedicaram a aprender porque não havia futuro. A tradição da construção perdeu-se muito. No entanto, nas últimas década têm surgido novos construtores na maior parte das ilhas. Já está a surgir uma nova construção, há construtores na casa dos 30 anos. Também são pessoas que não o fazem a tempo inteiro, mas com a diferença que hoje temos outras tecnologias, outras madeiras. Têm conseguido também a amplificação da viola."