Quando há um ano a ministra da Saúde foi a Alcobaça inaugurar a Unidade de Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de Leiria (adaptando assim uma ala do hospital local para esta função), a jovem médica Catarina Faria estava certa de que era um passo de gigante no acompanhamento de muitos doentes, uma lacuna imensa ainda por preencher no país. Em toda a região centro há apenas dois serviços como este (o outro está no IPO de Coimbra) e no resto do país também bastam os dedos de uma mão para contar as unidades do serviço público..Na verdade, este é um desafio que começou em 2018, quando foi criada a primeira equipa intra-hospitalar. "Como tínhamos cada vez mais doentes criou-se a necessidade do internamento. Foi uma oferta que a nosso conselho de administração fez à nossa equipa. É dos poucos do país", conta ao DN a diretora. "Com a criação da unidade de internamento, aí damos os cuidados todos ao doente, desde o momento em que entra na nossa consulta, até morrer..Quando olha para trás, para o primeiro ano da unidade de internamento, a médica não sente que a pandemia tenha afetado aquele serviço. "Os nossos números não diminuíram, bem pelo contrário. Continuamos a ter mais referenciações e mais doentes. Eventualmente só na medida em que há pessoas que têm um diagnóstico tardio, e como nós tempos uma boa relação com a oncologia e os serviços que a fazem, no nosso hospital, este encaminhamento é-nos feito muito precocemente. E temos sempre doentes a quem damos apoio no internamento. Por isso, o nosso trabalho não abrandou perante a pandemia. A dificuldade foi não ter recursos humanos. Mas há pedidos à tutela e projetos em curso para resolver isso..Não é fácil assimilar que se vai entrar pela porta daquele serviço. Catarina Faria já perdeu a conta aos doentes que marcam consulta e depois não aparecem, aos que entram em negação, porque sabem que pode ser o fim da linha. "O que nós temos feito é o encaminhamento precoce, quando os doentes estão controlados, a nível sintomático, e vêm conhecer-nos, numa primeira fase. Muitos vêm com medo. Ou vêm só por curiosidade, dizem que não precisam, e que se um dia precisarem vêm cá bater-nos à porta...".A primeira consulta é sempre um momento que reúne médico, enfermeiro e assistente social. "É aí que nós desconstruímos o que são os cuidados paliativos. Porque o doente pode ter ainda um ano ou mais de vida, e termos de ter em atenção a parte mais social, ou mais psicológica. O que deixamos de ver é a doença, e passamos a ver a pessoa". Naquela manhã, antes da conversa com o DN, a médica reunira com uma doente de 80 anos, enviada pela Fundação Champalimaud, a partir de Lisboa (por ser aquela a área de residência). Maria, chamemos-lhe assim, estava renitente. O ponto de contacto entre ambas acabou por ser Coimbra, os tempos de estudante de ambas, as diferenças, a crise académica de 60 que a doente (engenheira biológica) atravessou e viveu intensamente. "Nós falamos sobre tudo. E cria-se uma empatia e uma confiança. Estivemos a falar sobre a guerra, perguntei-lhe se tinha Netflix, ela disse que sim, então recomendei-lhe um documentário, e na próxima consulta, em diário clínico, é um ponto que vamos pegar. É um tema que não tem nada a ver com a doença dela - é uma neoplasia das mais agressivas - mas vai ser muito importante. A única queixa que ela tinha era uma dor no ombro, estava renitente à medicação, e eu sugeri-lhe um colega fisiatra que a vai acompanhar aqui também. Caso contrário, quando ela voltasse, daqui por três meses, estaria muito degradada"..A maioria das pessoas, quando ali chega, já tem consciência do seu estado. No entanto, há casos, nomeadamente entre os idosos, em que "os filhos sabem e eles não". "Então, na primeira consulta, é um pouco diferente: nós começamos por perceber o que é que o doente sabe sobre a consulta, e depois o que é que quer saber. Porque nem todos querem saber o que têm". No caso dos mais jovens, todos chegam ali informados. Aí, a dificuldade é outra: "desconstruir o que fazemos". E aceitar pode ser um processo tão ou mais doloroso quanto o de receber a notícia do diagnóstico, porque nesse ainda há esperança de cura. Ali não. "Nós tivemos uma senhora de 40 e poucos anos, na semana passada, que nos rasgou o cartão. Quando as colegas foram ao internamento, ela riscou as palavras "cuidados paliativos" e perguntou o que é que nós fazíamos. Quando chegou a casa rasgou-o e disse que não queria ter nada a ver com isto. Entretanto, ontem, já recebi uma chamada de um enfermeiro do Centro de Saúde que a acompanha, a dizer que ela já sabe que precisa de nós, que vamos ter que antecipar a nossa consulta. E já vamos marcar uma conferência familiar, com a mãe e o irmão (as pessoas que estão mais próximas), para explicar o que podemos dar"..Catarina Faria é - paradoxalmente - a mais jovem diretora de todos os serviços no Centro Hospitalar de Leiria. Natural da ilha da Madeira, Chegou à cidade há 10 anos, depois de ter feito o curso em Coimbra. Escolheu esta área durante o internato, quando só havia outro médico a fazê-lo [José Leite, que foi seu orientador de medicina interna]. Terá sido um doente, ainda jovem, com um linfoma, que lhe despoletou - sem saber - esta escolha. "O dr. José Leite dizia-me muitas vezes "sabes, Catarina, o senhor vai morrer em breve, por isso temos que lhe dar alguma qualidade de vida". Mas eu, tão jovem, achava sempre que ia correr bem...e o senhor foi operado e tudo...mas morreu dois anos depois. Depois houve outro caso, de um senhor que tinha acabado de se reformar, e caiu também nas nossas camas, com um diagnóstico semelhante. E eu com a mesma ânsia de o salvar, e o dr. José Leite a dizer-me que não valia a pena o sofrimento todo a que o iríamos submeter na operação. Passado um ano, estava a fazer estágio na neurologia dos Covões, em Coimbra, e apareceu-me a família. Olhei para para o senhor e vi-o triste. Só vi sofrimento na cara dele. Então percebi que alguma coisa andávamos a fazer mal".."Os conselhos de administração ainda não perceberam o dinheiro que poupam. E o nosso percebeu. Nós estamos muito voltados para a cura e para os tratamentos. Mas por vezes, é importante parar e explicar à família o que vai acontecer, em vez de irem tantas vezes ao serviço de urgência e estarem tantas vezes internados. Em média, os doentes estão uma semana nos Paliativos. Atualmente os colegas já me chamam a perguntar se vale a pena estarem a fazer mais um tratamento invasivo. Por vezes vale. Outras não. E a verdade é que ainda há um estigma de alguns colegas perante esta área. Alguns já nos aceitaram, e já perceberam que não estamos ali só para dar a mão a quem está a morrer; já perceberam que os doentes melhoram da dor, muitos ficam autónomos. Mas ainda há colegas que não nos aceitam, simplesmente, e não pedem ajuda. É preciso um interno vir pedir..Traz ao peito um pin do Sindicato Independente dos Médicos, onde se pode ler "sou médico e sou resiliente", mas é de esperança que fala, consecutivamente. "O que nós fazemos sempre é manter a esperança. Trabalhamos lado a lado com a oncologia. Quando a minha colega está a tentar um tratamento novo, nós não vamos aqui dizer ao doente para parar. Mesmo que saibamos que o mais provável é não resultar". Ainda assim, os "milagres" da cura podem acontecer. Catarina já os viu, ao longo do seu percurso profissional nos Paliativos: "Uma senhora que estava connosco, cancro hepático, com metástases, fez a quimioterapia e efetivamente curou-se. A oncologista nunca conseguiu explicar aquilo...tivemos também aqui logo no início uma senhora que tinha intuito curativo, mas não estava a conseguir comer, porque tinha umas lesões na boca, então vinha aqui, fazia tratamento e comia aqui connosco. O marido era polícia, e vinha aqui acompanhá-la. Ela começou a comer, melhorou, e ficou curada. E ainda temos um outro...que era uma doença hepática crónica, conseguiu fazer um transplante e curou-se. São situações raras, mas acontecem"..Neste momento, a maior pecha do serviço é a falta de recursos. No serviço trabalham cinco médicos (duas médicas estão em Alcobaça, sendo que uma delas vai a Leiria dar consultas) e em Leiria três médicos. Além disso trabalham cinco enfermeiros, mais 13 em Alcobaça. Uma psicóloga, duas assistentes sociais..Apesar do serviço estar desenhado para 12 camas, apenas oito estão ocupadas. Por falta de recursos, nomeadamente enfermeiros.."O que nos começa aqui a faltar e que é já uma necessidade levantada pelas próprias famílias e utentes é uma equipa domiciliária. Uma parte das pessoas quer morrer em casa. E essas sentem falta desse acompanhamento. Gostávamos de abrir ainda este ano. Isso implica ter mais recursos e uma viatura", afirma ao DN Catarina Faria..Ao longo deste primeiro ano a Unidade de Alcobaça recebeu 250 pessoas no internamento, para apenas oito camas. Em Leiria, o serviço - que funciona dentro do Hospital de Santo André - atendeu mais de 600 pessoas..A equipa recebe pessoas de todas as idades, a partir dos 18 anos. "Nós temos uma equipa pediátrica, além da nossa, e depois recebemos desde os 18 até aos 100. Temos crianças que fazem a transição desde o pediátrico para a idade adulta. Já são outro tipo de necessidades -- doenças (deficiências, na maioria) que requerem outro tipo de cuidados -- é uma variedade muito grande. Diria que a nossa média de idades está ali nos 60 anos", afirma..Mas Catarina nota que ali chegam cada vez pessoas mais novas com diagnóstico de doença. Dias antes, chegara-lhe um rapaz de 38 anos, com cancro de pulmão em estado avançado. Foi preciso um enorme "jogo de cintura" das várias equipas (oncologia e paliativos) para lhe fazer chegar a importância do serviço, no tempo de vida que ainda lhe resta. Porém, a diretora recorda que nem só de doenças oncológicas se faz o dia-a-dia do serviço. Aponta, por exemplo, o caso de um paciente na casa dos 50 anos, com uma doença cardíaca em estado avançado, terminal, sem indicação para transplante. Outros utentes que o serviço acompanha com frequência são os portadores de doenças degenerativas, "como as ELA"s (Esclerose Lateral Amiotrófica), que surgem também em idades mais jovens". Porém, os doentes entre os 30 e 40 anos que passam por ali, são, na sua maioria, doentes com cancro..dnot@dn.pt