Filomena Silva tinha o namoro perfeito, no início. Engravidou e acusaram-na de ter dado "o golpe de baú". Não percebe porquê, nunca lhe viu dinheiro. Separaram-se, estava grávida. Ele declarou não ter rendimentos para pagar a pensão de alimentos do filho. Mãe solteira, sem família de apoio, não consegue um salário certo. É uma entre os milhares que recebem o rendimento social de inserção (RSI). As mulheres estão em maioria e ter uma família monoparental ou estar doente agrava a situação. E são fatores de risco para o desemprego..Tem 41 anos, vive no Porto e já teve como profissão "auxiliar de ação educativa", mas o que mais faz ultimamente são limpezas. É mãe de um menino de 5 anos, "uma criança tímida e que precisa de terapias para o ajudar a desenvolver", diz. Tem o horário semanal de todas as atividades no frigorífico.."Vim para o Porto por paixão, com o pai do meu filho, e fiquei sozinha estava grávida de quatro meses, a minha família vive na Amadora e em Almada. Mas gosto de viver no Porto, as pessoas são mais acessíveis, têm a preocupação do 'bom dia'", conta a mulher..Filomena Silva é uma das 112 971 pessoas do sexo feminino que recebem o RSI (dados de janeiro deste ano) e que constituem 51,5 % do total de beneficiários. Leva para casa 150,40 euros mensais, por ela e pelo filho, porque lhes descontam 131 euros da pensão de alimentos e que é paga pelo Estado, uma vez que o pai declara não ter rendimentos. Isto com os valores de 2018..Em 2019, o RSI passou para 189,66 pelo primeiro adulto do agregado familiar, recebendo o segundo 132,76 euros. Cada filho tem direito a 50% da prestação máxima, ou seja, 94,83 euros. A estes montantes são descontadas outras prestações ou receitas que tenham, nomeadamente a pensão de alimentos..O beneficiário-tipo do RSI é mulher, com idades entre os 55 e os 59 anos, seguindo-se o grupo etário dos 50 aos 54, vive no Porto (55,5% ), e recebe uma média de 91,75 euros mensais. Um perfil praticamente idêntico ao de há dez anos, com uma diferença importante: aumentou a idade destas mulheres. Em 2009, a maioria das beneficiárias estavam no grupo etário dos 35 aos 39, seguido dos 40 aos 44 anos. E havia 337 075 pessoas com RSI, mais 120 mil do que atualmente.Elas estão mais vulneráveis."As mulheres são mais vulneráveis à carência económica e ao risco de pobreza, em todas as idades e ao longo de todo o ciclo de vida", começa por dizer Sara Falcão Casaca, socióloga e investigadora das questões de género e ex-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Acrescenta: "O facto de as beneficiárias serem mais velhas pode ter que ver com percursos precários e de baixos rendimentos, agravados pelo fator idade (dificuldades acrescidas de integração no mercado de trabalho), períodos de desemprego e perda de elegibilidade para o respetivo subsídio." .A percentagem de famílias monoparentais do sexo feminino é de 87,1% (2018)..Filomena sente na pele o que é ser mãe solteira e sem família de retaguarda: "Há mais mulheres com RSI porque os homens não têm filhos a cargo ou pelo menos a maior deles não têm essa responsabilidade. Quando o casal se separa, regra geral, é a mãe que fica com a criança. As mulheres ainda estão muito desprotegidas, embora estejam mais independentes. No tempo da minha mãe, por exemplo, uma mulher não ficava só com três ou quatro filhos sozinha, até porque a sociedade não aceitava isso, hoje já acontece. Mas deviam ser dadas mais oportunidades às mães, nomeadamente a possibilidade de terem horários mais flexíveis.".O agregado familiar de Filomena recebe 411,90 euros mensais: 131 euros da pensão de alimentos, 150,40 euros de RSI e 134 euros de abono. Tem de fazer uma gestão criteriosa para não sentir que está sempre com a corda ao pescoço. "Não temos uma vida folgada, mas consigo satisfazer uma ou outra vontade do meu filho.".Como é que faz? "Em primeiro lugar, pago tudo o que são contas, as mais importantes são a renda de casa - é o nosso teto, a nossa segurança -, e a escola do meu filho. Depois, pago a água e a luz.".Paga uma renda social. 28,49 euros, mais 45 euros da escola do filho, a que se juntam 36 euros de luz e gás, 17 euros de água, contas feitas são 126,49 euros. Fica com cerca de 65 euros por semana. Uma ou outra vez vai a Lisboa, onde tem a família, mas não muitas vezes "porque as viagens são caras"..E extravagâncias? "Não há. O que sai das minhas contas e me deixa nervosa são os 60 euros que pago para ele ir à praia, não é uma extravagância mas é um exagero na minha gestão diária. Ele está na Florinhas do Lar, é muito boa e fica ao lado de casa, faz todas as atividades, o que é muito importante." A escola é uma instituição particular de solidariedade social..Alimentação, roupa, sapatos, um ou outro extra a pagar na escola, ficam difíceis de suportar com 285 euros mensais. É aqui que entra a Cáritas do Porto. "Fiquei sozinha aos quatro meses de gravidez, mas não estou sozinha, tenho uma equipa a ajudar-me. Fui à Cáritas, tive logo apoio alimentar, deram o enxoval ao meu filho ainda sem saber se era um menino. Dão-me um cabaz de roupa bimensal, vestem o meu menino e a mim", explica Filomena, elogiando as assistentes sociais que mais diretamente a apoiam. E tem o cabaz alimentar da AMI (Assistência Médica Internacional)..Vive na ilha da Belavista, uma vila no centro do Porto que foi recuperada para dar lugar a 43 casas, T1 e T2. duplex construídos com gosto e bons materiais, o que prova que a habitação social não tem de ser feia e de má qualidade..São casas térreas, em linha, com os arruamentos impecáveis, tanque à porta e roupa no estendal, cheira a limpeza. Um ambiente completamente diferente de outros bairros sociais e a prova provada de que as pessoas tendem a conservar as coisas quando estas são boas, como defendem muitos técnicos da área da assistência social..A habitação de Filomena é um T2, a que acrescentou um quarto no sótão, continua como nova. "Esperei dois anos por esta casa, mas valeu a pena." Vai fazer em setembro dois anos que lá mora..Margarida Gomes, 58 anos, está no grupo etário com mais mulheres a receber RSI, um total de 9731. Está doente, tem uma depressão, o que é mais um degrau em direção à pobreza.."Tive uma grande depressão devido à separação do meu marido, separação que ainda hoje não aceito." Aconteceu há 12 anos quando ele foi viver com uma amiga e ela ficou sem casa e quaisquer bens comuns. Mas Margarida repete: "É o homem da minha vida", lamentando ter assinado papéis sem os ler..Os problemas de saúde foram-se acumulando até ficar desempregada, teve de recorrer ao RSI e à assistência social. É acompanhada na Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade (UDIP) da Alameda, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.."Sou muito doente, estou muito medicada, tentei por três vezes suicidar-me, mas isso já passou, Pensei que não conhecia netos e já vi o meu bisneto." Foi mãe aos 18 anos, tem duas filhas, quatro netos e um bisneto, ao sábado vai a casa de uma, ao domingo de outra, às vezes toma conta dos netos..Menos de 60 euros para o mês.Recebe o valor máximo do RSI, 189,66 euros, Cem vão para a renda do quarto, em Marvila, a Santa Casa da Misericórdia apoia com o restante, 120 euros, habitação que visitam regulamente para avaliar as condições. "É um bom quarto, digno, vivo com um casal de polícias, fazem tudo por mim, quase que poderei dizer que são família. Estive a morrer e quem deu conta foi dona da casa, nunca se deita sem ver como estou.".Além dos cem euros para o quarto, gasta 30 euros em medicamentos, não chegando a ficar com 60 para todo o mês. Recorre ao banco alimentar da Misericórdia, um projeto do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas. "A minha assistente social conseguiu-me um bom banco alimentar, vou lá uma vez por mês. Dão carne, peixe, legumes frescos, toda a qualidade de congelados, manteiga e queijo de marca, leite, feijão, tudo bom, de marca e com prazos grandes de validade", explica Margarida..Os irmãos dão-lhe roupa quando vai à terra, a Castelo Rodrigo, também a senhoria, que veste o mesmo tamanho. Vive no centro de Lisboa e não gasta dinheiro em transportes, anda sempre a pé, a família e tudo o que precisa são próximos de casa,.Tem uma regra. "Não peço nada que não possa pagar, às vezes peço uma ajuda aos meus irmãos, porque não posso viver sem a medicação.".É uma mulher alta, cuidada, cabelo pintado e unhas de gel, que ela própria faz. Já chegou a fazer manicura e pedicure num centro social como voluntária, mas deixou de ter "clientes" quando a instituição passou a cobrar o serviço, 2,50 euros pelas unhas. "Andavam todos contentes, deixaram de o poder fazer, é muito dinheiro para aquelas pessoas.".Esmerou-se para a entrevista, diz que está num dia bom. "Se estiver bem-disposta, levanto-me, tomo o meu pequeno-almoço, pego na minha garrafa de água e vou à missa à Igreja de São Domingos [na Baixa]. Depois, vou a pé até ao Cais de Sodré - o meu cardiologista diz que tenho de emagrecer 20 quilos - estou ali, sentada, a olhar para o rio, e regresso a casa para almoçar. Antes de voltar a sair, arrumo a casa, porque as pessoas com quem estou são amigas, preocupadas. Sabem que recebo pouco e, quando percebem que tenho pouca coisa no armário, dizem que têm sopa a mais, que fizeram comida a mais para o jantar. A forma que tenho de retribuir é limpar a casa.".Quando vai passear para mais longe de onde mora para a Expo, por exemplo, além da garrafa de água, mete na mala uma sandes e dois euros para o café..Nos dias maus, não sai de casa. "É uma escuridão.".Margarida cruza-se com mais mulheres do que homem nas instituições onde é apoiada. "Têm mais dificuldade em arranjar trabalho. Fui a um restaurante e disseram-me que só aceitavam até aos 35 anos de idade e eu quero voltar a trabalhar, mas primeiro tenho de me tratar"..Sublinha que só tem elogios a fazer à assistência que tem recebido: "A Santa Casa, os hospitais, os centros de saúde. todos os sítios onde tenho sido seguida, só tenho a dizer bem. Sempre fui bem atendida, só tenho de agradecer.".A UDIP da Alameda é uma das dez unidades que a Santa Casa da Misericórdia tem na cidade de Lisboa. Filipa Dias, a diretora, explica que dão assistência a "uma população isolada, com baixa escolaridade e baixas competências, com histórias de consumos [mais homens], também vítimas de violência doméstica [mais mulheres]"..Dos 789 titulares de RSI que acompanham, 66% são do género feminino e 34% do género masculino. Beneficiários há anos, desempregados de longa duração, com as doenças psiquiátricas a fazer sombra..Justifica que há mais mulheres porque os homens têm mais vergonha de pedir. "Quando é um agregado familiar, é a mulher que toma a iniciativa de vir, se são isolados vem o homem, se são famílias, vêm as mulheres."