Isto é Fiães do Rio, uma aldeia com 70 habitantes e casas de granito - todas com uma vista de tirar o fôlego sobre a barragem da Paradela e a serra do Gerês. Vítor Barroso Afonso chegou em 2014, a poucos dias de completar 40 anos. "Os meus pais são desta aldeia mas, como todos os da sua geração, emigraram. Então eu já nasci em França, mas decidi fazer o caminho de volta e investir nesta terra." Na vida anterior era engenheiro do ambiente, isso ajudou-o a perceber o potencial económico dos lameiros..Nos terrenos onde já nenhum gado pastava montou o Nomad Planet, um projeto de ecoturismo com quatro iurtas e uma casa na árvore, mais um tipi índio que serve de espaço comunitário. Na aventura também embarcou Marie, a sua mulher, e há seis meses tiveram Gabriel, a primeira criança que a aldeia vê nascer em anos. Só que as notícias da chegada de uma mina de lítio à região deixam-nos assustados. "Há um pedido de prospeção mesmo nas traseiras dos terrenos. Com o barulho e a destruição que um projeto destes pode trazer à paisagem, restam-nos poucas alternativas senão fazer as malas e ir embora.".Vítor acredita que tem de estar na paisagem o futuro da região. "Pedimos emprestada aos nossos filhos a terra que herdámos dos nossos antepassados", atira, justificando o seu desacordo com a exploração de lítio em Montalegre. "Mesmo que uma mina destas consiga funcionar durante 30 anos, e isso já é muito, vai abrir uma ferida que nunca conseguirá sarar." O homem percebe que o minério é importante quando se fala da descarbonização do planeta, mas exaspera com a hipótese de as concessões serem abertas em qualquer localização. "Que sentido faz fazer um investimento destes aqui?".Há um ano, Montalegre, bem como o município vizinho de Boticas, foi declarado Património Agrícola Mundial pela FAO, agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Uma boa parte do concelho ocupa também a Peneda-Gerês, único Parque Nacional do país, também classificado como Reserva da Biosfera pela UNESCO. É pátria de lobos e cabras-monteses, corços e lontras, além de acolher um coberto vegetal onde sobram exemplares que não sobrevivem em nenhuma outra parte do globo. "Estamos a falar de uma zona de biodiversidade importantíssima e pôr sequer a hipótese de abrir uma mina a céu aberto, paredes-meias com o Parque Nacional, é escandaloso", diz Miguel Dantas da Gama, dirigente do FAPAS - Fundo Ambiental para a Proteção dos Animais Selvagens), o movimento que tem liderado a contestação aos investimentos na exploração de minério junto de zonas protegidas..A Liga para Proteção da Natureza (LPN) percebe a importância do lítio. É afinal ele que permite construir baterias de carros elétricos e reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. "Mas preocupa-nos como Portugal definiu uma estratégia que promove uma atividade extrativa com grande impacto sem fazer uma avaliação prévia e robusta das consequências", diz Cláudio Heitor, dirigente da organização. Ao DN, o secretário de Estado da Energia diz que cabe às empresas que recebem concessões fazer os estudos de impacto ambiental das minas, mas que a exploração só arranca com parecer positivo da Agência Portuguesa do Ambiente. "Se o impacto ambiental for negativo, não há mina de lítio", garante João Galamba. Heitor contesta: "Primeiro percebe-se os impactos, depois é que se distribui as concessões.".Em Montalegre já foi assinada uma licença de exploração de lítio, e há vários pedidos de prospeção na calha. E isso está a criar uma desavença tremenda. O Estado diz que o minério é uma aposta estratégica e cria regras para que as explorações tragam riqueza à população. A câmara municipal diz que está ao lado da população, mas que um investimento que possa trazer postos de trabalho é um balão de oxigénio para uma terra que, em 50 anos, passou de 32 mil para dez mil habitantes. A população organiza grupos de contestação, boicota eleições, recorda a herança das minas de volfrâmio ali ao lado, que prometeram desenvolvimento e afinal deixaram a terra seca. Dizem que a paisagem é a única riqueza que lhes sobra. E que dela não vão abdicar..O olho do furacão.À entrada da aldeia de Morgade há um enorme cartaz que diz "Não à mina, sim à vida". Depois, quando se percorre as ruas da freguesia, veem-se tarjas com a mesma frase, penduradas entre postes de eletricidade, beirais dos telhados, ou penduradas nas paredes. Foram afixadas no último domingo de maio, dia das eleições europeias. Aqui começou por haver promessa de boicote, com a mesa de voto da junta fechada a cadeado pelos populares. Depois de a GNR abrir as urnas, votaram apenas quatro pessoas. As outras recusaram-se, em protesto contra a exploração de lítio que avança na terra..Desde então que os ânimos estão exaltados. "As pessoas só se aperceberam do verdadeiro impacto que uma mina poderia ter depois de a empresa que já recebeu a concessão, a Lusorecursos, ter vindo explicar ao que vinha", diz José Luís Nogueira, presidente da junta. "Pelos trabalhos de prospeção, eles apontam portas a uma mina com 800 hectares e 350 metros de profundidade. E isso significa o fim das explorações agropecuárias, que são o ganha-pão de toda a gente.".A Associação Montalegre com Vida, que se formou para contestar a exploração de lítio, está bem organizada. "Neste momento não deixamos ninguém subir ao monte, nem para fazer o estudo de impacto ambiental. Aqui já fizeram dano que chegue", diz Armando Pinto, um dos elementos da organização, constituída maioritariamente pelos jovens que nunca quiseram sair ou que decidiram voltar para investir na terra. É ele quem indica o caminho para que se possa ver o lastro da prospeção - tubos espetados no chão, caminhos revolvidos na serra, três nascentes de água que secaram. Com Armando seguem várias carrinhas de populares que querem falar das suas razões. Dificilmente alguém subirá por estes dias ao monte sem ser detetado.."Em 1964 foi construída a barragem do Alto Rabagão e perdemos os nossos terrenos. Metade da população de Morgade abalou nessa altura", diz José Carlos Castro, regedor da comissão de baldios. A chegada da água revelar-se-ia particularmente dramática porque na década anterior tinha sido instalada a colónia agrícola de Criande, que trouxera dezenas de famílias da região de Amarante. "Salazar mandou-os para aqui para aproveitar os terrenos e a seguir deu-lhes um pontapé no traseiro." Sem terrenos para as vacas, o povo virou-se para o gado caprino, que pasta nas escarpas do monte. "Então há uns anos vieram aí instalar as eólicas e voltaram a perder-se muitos terrenos. Montalegre tem cinco barragens, tem centenas de eólicas. Pode dizer-se que já contribuiu com a sua parte para o país e não viu nada de volta. É que nem sequer temos um desconto na eletricidade.".Esperança interrompida.Ali ao lado, na aldeia de Rebordelo, a inquietação pertence inteirinha a Adérito Gonçalves, 58 anos, pastor de 90 cabras e ovelhas. Há 45 anos que a sua vida é esta todos os dias. "Saio com o rebanho para o monte de manhã e outra vez à tarde. Somos quatro irmãos solteiros e só vivemos disto." O problema é que os terrenos onde pastoreia o gado são precisamente aqueles onde a Lusorecursos quer abrir a mina. "E o que vai ser da nossa vida, andar a pedir de chapéu na mão à Segurança Social, tornarmo-nos um custo para os contribuintes quando somos perfeitamente capazes de garantir a nossa subsistência? Com a ganância de lítio pode ganhar-se dinheiro por um punhado de anos, mas depois fica a terra abandonada, pronta a arder nos incêndios.".Um dos pontos em que o movimento Montalegre com Vida mais bate o pé é que, quando finalmente começa a vislumbrar-se uma solução na agricultura depois de décadas de míngua, chegou um investimento que nada os fará ganhar e destruirá tudo o que se tem andado a construir. Eduarda Fernandes leva-nos a outra aldeia ali ao lado, o Barracão, para dar o seu próprio exemplo. Nasceu aqui e saiu para estudar Farmácia, mas há cinco anos, depois de passar seis anos fora, decidiu voltar. "Meti um projeto no Prodep para instalar 500 colmeias, que em média me dão quatro toneladas de mel por ano." Vende cada quilo a sete euros, um bom ano dá trabalho que se farta, mas pode render quase 30 mil euros - e isso permite-lhe viver no campo..Nos socalcos onde instalou as abelhas fazem-se por estes dias desdobramentos de colmeias. "A diversidade de plantas que temos aqui é fantástica, há urze que permite um mel mais escuro de grande qualidade." Mas o projeto da mina quase lhe faz fronteira, está a meio quilómetro do apiário. "Vai destruir uma boa parte da vegetação e encher a restante de pó. Todos os especialistas me dizem que, se avançar mesmo, o meu negócio acaba. Então lá terei de emigrar, como todos os da minha colheita. Há aqui um grupo de gente nova a esforçar-se por explorar novos nichos de mercado agrícola que podem ter sucesso, mas isto é mais uma declaração de morte ao interior.".José Carlos Castro, o regedor dos baldios, e Vítor Santos, engenheiro eletromecânico, decidiram há meses investir no castanheiro, que não só tem alta rentabilidade como assegura a preservação da floresta nativa portuguesa em regiões de altitude como esta. O primeiro plantou 350 pés nos últimos cinco anos, o segundo 400 no final do ano passado. "É um investimento sério, porque cada árvore custa em média dez euros, mas eu acredito que nos soutos se pode explorar um conceito de agricultura biológica integrada, com sistemas de regadio, produção de mel e cogumelos associada", diz Vítor. O amigo concorda, "é pela altíssima qualidade que nos podemos diferenciar e é nisso que estamos a apostar, com bons resultados"..O lítio é que é o diabo, dizem. O pó que a mina espalha e a água que seca à volta vai dar cabo de tudo, não têm dúvidas. Orlando Alves, presidente da Câmara de Montalegre, recorda que, apesar de a prospeção estar feita e o contrato de concessão assinado, falta o estudo de impacto ambiental e o plano de lavra - e esse é que dirá se a cratera avança ou não em Morgade. "Por um lado estamos ao lado do povo porque somos os seus representantes. Mas, como autarca, sou favorável a projetos que tragam riqueza, trabalho e desenvolvimento. Quando tento imaginar esta terra daqui a dez anos, pergunto-me se ainda haverá alguém. Os nichos de agricultura não são suficientes para travar este despovoamento. A paisagem também não fixa ninguém. Apoiarei os meus se eles não quiserem a mina, mas precisamos de uma indústria que traga pessoas para cá.".Em Montalegre, a Lusorecursos projeta a construção de uma fábrica de composto de lítio e outra de cerâmica. Mas, depois de uma reportagem da RTP ter revelado que os escritórios da empresa estão a funcionar em instalações cedidas gratuitamente pela autarquia, os cidadãos de Morgade desconfiam. É que o processo de prospeção foi iniciado pela australiana Novo Lítio, mas acabou nas mãos da Lusorecursos - cujo administrador Ricardo Pinheiro foi acusado num outro processo pelo Ministério Público de fraude com fundos públicos..A mina que já secou.A 38 quilómetros de Morgade, Mário Mendes, 78 anos, ri-se da discussão sobre a mina de lítio. "Então não aprendemos nada com o passado", pergunta no alto da aldeia da Borralha, onde operou uma das maiores minas de volfrâmio do país entre 1902 e 1986. "Quando eu nasci havia aqui escola, talho, duas mercearias, uma rádio, até vinha o cinema ao fim de semana. Hoje há um café, na altura existiam 15. Uma mina, quando funciona, mexe com as terras. Mas quando fecha, dá cabo delas de vez.".O homem era eletricista na mina, hoje preside à Associação de Amigos da Borralha, mostra aos turistas a estrutura colossal e abandonada daquele vale. "Toda a gente vivia disto, mas quando fechou deixou de haver terrenos de pasto para o gado e as águas da barragem de Pisões ficaram contaminadas, nenhum peixe conseguia sobreviver." Os que ficaram vivem entre os despojos de um tempo que, segundo ele, não passou de uma ilusão de prosperidade. "Ao menos esta mina ainda durou quase uma centena de anos e foi explorada em galeria. Mesmo assim, o que antes eram lameiros são hoje escombreiras. O que era pobre, mais pobre ficou. Então que dizer de uma mina a céu aberto, que será explorada durante 20 ou 30 anos? É o povo que vai ganhar com isso?".O secretário de Estado da Energia diz-se bem consciente dos problemas que uma mina pode deixar. "É por isso que obrigamos as concessões a fazer uma recuperação ecológica de forma continuada, à medida que exploram o minério." João Galamba acredita que o facto de Portugal não poder ignorar que tem a maior reserva europeia de um mineral contribui para a descarbonização do planeta. Mas Miguel Dantas da Gama, ambientalista, diz que não pode ser à custa de um tesouro natural como o de Montalegre. "Às vezes tenho a sensação de que em Portugal se navega sempre à vista, numa perspetiva de lucro imediato e fácil, mas que depois deixa lesões irreparáveis. O que o país devia fazer era traçar um plano verdadeiro de aposta no interior, em vez de aproveitar o seu abandono para implantar o inconcebível."