A manhã fora de aguaceiros no Rio de Janeiro, estado do tempo que não cooperava, naquele 17 de junho de 1922, para a conclusão da travessia que trazia, há perto de três meses, os pilotos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Finalmente, com a manhã a findar, houve ordem para avançar a última etapa a bordo do hidroavião Santa Cruz. Quatro horas de voo rumo à Baía de Guanabara concluíam os 8300 km da 1.ª Travessia Aérea do Atlântico Sul, a partir de Portugal..Cem anos volvidos sobre o feito, Mário Correia, antigo piloto da Força Aérea e ex-conservador do Museu do Ar, também historiador, oferece aos escaparates o livro A Grande Aventura. O relato faz a síntese de uma época em Portugal, com a jovem República a enfrentar uma crise económica e política. Viagem que também foi um feito científico, apoiada exclusivamente em navegação astronómica; mote para alegria coletiva no nosso país e uma expedição rica em atribulações ao envolver três hidroaviões, amaragens perigosas e resgates em alto-mar..Não podemos separar o feito da época em que se deu. Quer, sucintamente, dar-nos um quadro desta época pioneira na aviação? A época em que a viagem de Sacadura Cabral e Gago Coutinho decorre é, sobretudo nos países onde havia indústria aeronáutica, a de uma grande disponibilidade de aviadores, mecânicos e de material sobrante da Primeira Guerra Mundial. Ainda antes do conflito, decorreram tentativas para ligar por via aérea diferentes países, por exemplo com o transporte de correio. Os principais jornais davam grandes prémios a aviadores que respondessem a desafios. Por exemplo, em 1913, o jornal britânico Daily Mail oferecia 10 mil libras a quem voasse em menos de 72 horas entre a costa norte-americana e a Europa. Portugal entra nesta "corrida" aérea com alguns visionários, como Sacadura Cabral, que apontou à ligação entre Portugal e o Brasil, numa associação ao período da expansão marítima. Ou seja, há um contexto internacional em que a maior parte das potências desenvolve um pensamento aeronáutico, vendo a aviação como veículo de ligação. O curioso é que Portugal, sem ter uma indústria aeronáutica forte, está, até 1934, empenhado nas viagens aéreas..Nos cartazes publicados na época lemos "por ares nunca dantes navegados". Há uma analogia clara entre a travessia aérea do Atlântico Sul e a Expansão Marítima portuguesa? "Por ares nunca dantes navegados" porque, de facto, é a primeira vez que o Atlântico Sul é sobrevoado por um avião. Sacadura Cabral pensou a viagem ainda em 1919, quando fez o requerimento ao Ministério da Marinha, muito estimulado pelo êxito dos norte-americanos que ligaram os Estados Unidos à Europa. Nesse requerimento, Sacadura já faz referência ao interesse da ligação ao Brasil, de certa maneira numa memória da Expansão. Em 1919, tivemos a visita a Portugal do presidente da república brasileiro, Epitácio Pessoa, que, na altura, convidou o presidente da república português, António de José de Almeida, para estar presente nas Comemorações do Centenário da Independência do Brasil, que se realizariam em 1922..Lemos no seu livro que Portugal se uniu numa "euforia patriótica". Uma união que interessou ao poder político, a braços com problemas internos? Não temos pistas de que a expedição tenha sido muito apoiada por essa razão. Mas, uma vez em marcha a viagem, houve uma colagem política à causa. Os jornais seguiram de perto o acontecimento, tanto quanto possível na época. O governo percebeu a euforia em Portugal e também no Brasil. Por cá, tínhamos o país numa grave crise económica e social, inflação elevadíssima, com a República a dar sinais de grande divisão e a radicalização dos partidos. O próprio Presidente da República, António José de Almeida, recordou nos jornais que Sacadura e Coutinho unificaram a Nação. Uma unidade que se esboroou posteriormente..Referiu há pouco a euforia também no Brasil. Mas, na prática não houve grande entusiasmo por parte do Brasil em associar-se à travessia. O Sacadura, no seu projeto inicial, depois adaptado por não conseguir fazer a viagem em 1919, começa a aproximar-se dos interesses do Brasil, nomeadamente com a sugestão da participação de tripulações mistas e um avião português e outro brasileiro. Mas nunca houve interesse do lado brasileiro. O próprio Santos Dumont, herói da aviação brasileira, não foi favorável. Aliás, o Brasil vivia uma grave crise económica e política..Antes de ser uma viagem, a travessia foi uma realização técnico-científica. Que inovações trouxe e que papel tiveram nela os protagonistas? Sacadura Cabral pensa o projeto, inicia a sua concretização, estuda todas as condições para que isso aconteça. Quando tem o avião com a autonomia que precisa, já tinha estudado todo o processo de navegação, extremamente complexo. Nisso, teve a ajuda vital do Gago Coutinho, um geógrafo, que dominava bem o sextante. Desenvolveram um método muito interessante de navegação que permitiu viajar por etapas. Tudo o que falhou na travessia não se relacionou com a navegação, mas com os hidroaviões. Adaptaram o sextante de bolha [batizado como "astrolábio de precisão"] à navegação aérea, desenharam um corretor de rumos e Gago Coutinho fez mesmo uma coisa muito importante: os cálculos para os rumos que iriam seguir, o que simplificou o tempo de navegação. Repare, os dois pilotos partiram de manhã de Lisboa e fizeram uma viagem de oito horas rumo às Canárias sem que pudessem falhar. O meu livro chama-se A Grande Aventura, porque era assim que Gago Coutinho se referia à viagem. Em 1919, os americanos atravessam o Atlântico Norte dos Estados Unidos para a Europa, mas com navios a cada 50 milhas a darem indicações ao avião. No nosso caso, houve que encontrar as Canárias e, depois, encontrar pequenas ilhas..Inclusivamente os Penedos de São Pedro e São Paulo... Sim. Esse é o ponto alto. São minúsculos, têm dois hectares e estão a mais de 1500 Km de Cabo Verde..Como se explica que um país com pouca tecnologia e indústria aeronáutica inexistente tenha produzido um feito como este? Isso ainda releva mais o feito dos nossos pioneiros da aviação, pois Portugal não tinha, como refere, uma indústria aeronáutica. O nosso país jogava por conta própria, mas com viagens pioneiras interessantes. Em 1927, fez-se a travessia noturna do Atlântico Sul, tripulada por Sarmento de Beires, Jorge Castilho e Manuel Gouveia. Um voo notável de 17 horas entre a Guiné e a ilha de Fernando de Noronha..Havia quem se opusesse às viagens aéreas por sermos um país pobre? Sim e também houve alguma tensão entre a Aviação Naval e a Aeronáutica Militar. Aliás, Sacadura Cabral, mais tarde, acaba por se demitir da Marinha para protestar face ao apoio que o governo dava à Aeronáutica Militar face à Aviação Naval. Para mais, os aviadores estavam divididos entre os que defendiam os raides, ou seja, as grandes viagens, e aqueles que não lhes viam necessidade. Mas foi uma tensão pontual..Percebemos pela leitura do seu livro que Sacadura Cabral usou muito bem a imprensa da época para atingir os seus objetivos. Notável. Essa é uma outra história que está por aprofundar. Sacadura Cabral percebeu o peso da imprensa na opinião pública. Os jornais sempre foram um local de debate de opiniões, sobretudo antes da rádio e da televisão. Sacadura percebeu isso perfeitamente e nunca deixou de usar os jornais para se defender, para apresentar as suas ideias, para pedir apoios no financiamento de algumas das viagens..Compreender esta travessia atlântica também implica compreender os dois homens que a empreenderam. Que homens eram estes? Sendo dois homens com uma coragem física e psicológica muito forte, eram duas pessoas muito diferentes. Sacadura Cabral era pouco falador, seria tímido, não era muito social, no sentido de manter relações exuberantes. Aliás, Gago Coutinho fala disso. Quando estiveram sete horas no mar, sozinhos, com a noite a aproximar-se, tubarões em torno, Sacadura Cabral fumou, olhou para o horizonte e pouco mudou de posição. Sacadura era um homem muito organizado, foi um dos organizadores e fundadores da Aviação Naval. Morreu novo, com 43 anos, desaparecido no Mar do Norte. Tornou-se uma figura quase mítica. Por seu tuno, Gago Coutinho viveu quase até aos 90 anos, tornou-se numa figura popular, escreveu muito, deu entrevistas. Tinha um feitio diferente de Sacadura Cabral, era muito mais expansivo. Eram, verdadeiramente, dois cientistas..E tinham de confiar muito um no outro... Sim. Estamos a falar de muitas horas de pilotagem, de aviões que não tinham nenhum sistema que aliviasse a tensão de pilotagem. Sacadura pensou: "Levo comigo um piloto ou o Gago Coutinho para a navegação?". A História mostra-nos qual foi a escolha. Estamos a falar de pilotar oito a dez horas num avião difícil, o que é muito arriscado..Da semana estimada para a travessia, esta demorou perto de três meses. Tratou-se de uma viagem atribulada. Quer partilhar algumas dessas atribulações? Estamos a falar de um avião sem cabine fechada, apenas com um "vidrinho" à frente para desviar ligeiramente o fluxo de ar, como nos carros descapotáveis. Estavam sujeitos ao frio, ao calor, às vibrações e ruído do motor que babava muito óleo pelo escape. Era um avião lento, numa viagem a 130 Km/h. Juntou-se uma navegação de rigor em que é preciso estar atento a fazer os cálculos para não falhar as ilhas. Hoje, é inimaginável, algo pelo qual passaram os pioneiros da aviação. Atualmente, sabemos as condições meteorológicas com muita antecedência e rigor, como os ventos no local da chegada. Ali, saíamos de um sítio com determinadas condições, para chegarmos a outro sem sabermos o que encontraríamos..Inclusivamente, houve que utilizar três hidroaviões. O que correu mal? Em termos de voo, a travessia decorreu dentro do tempo previsto, ou seja, 60 horas de voo, sendo que 30 horas sem ver terra. Houve muitas atribulações mecânicas. O Sacadura tinha projetado a viagem para gastar x litros por hora. No primeiro percurso, até às Canárias, percebeu que o hidroavião estava a gastar mais dois litros do que o previsto. Isto, a somar a uma grande distância traz problemas de autonomia. O avião estava a gastar mais do que o planeado face às informações que recebera da fábrica. Entre as Canárias e Cabo Verde, Sacadura percebeu que não conseguia cumprir o projeto inicial, direto a Fernando de Noronha. Ou desistia, ou parava a meio caminho, nos Penedos, e pedia reabastecimento. Ora, era ali que estava o navio da armada, o cruzador República. O mar estava muito cavado e acabaram por fazer uma amaragem conturbada e foram recolhidos. O hidroavião perdeu-se, era preciso encontrar um aparelho semelhante, embarcá-lo num navio. Foi-se perdendo tempo. Já no arquipélago de Fernando de Noronha, descolam, querem sobrevoar os Penedos, para que não se diga que não fizeram todo o percurso, têm uma avaria e ficam à deriva, até serem recolhidos por um navio inglês. Sacadura Cabral reconhece que devia ter feito um reconhecimento prévio em Cabo Verde, mas temia que dissessem que andava a viajar à custa do projeto. Conseguimos ser brilhantes e, depois, há sempre alguma coisa que nos falha [risos]..Qual foi o impacto internacional desta travessia aérea? É lícito perguntarmos que viagem é esta, pensada para uma semana e que dura dois meses e meio e, no final é um grande feito. Pois bem, é-o sempre que estão a navegar no avião pois a viagem correu exatamente como planearam e trouxe dados importantes para a aviação. Também é um estímulo para outros pioneiros, nomeadamente a utilização de métodos mais seguros..Os anos subsequentes que notoriedade trouxeram aos dois aventureiros? O Sacadura, como referi, morreu dois anos depois desta travessia. Gago Coutinho foi reconhecido como um grande geógrafo e navegador aéreo e acabou por participar em vários fóruns internacionais, em Paris, em Roma, foi ao Brasil; foi muito acarinhado no bairro lisboeta onde vivia, a Madragoa. Teve a sua glória até aos 90 anos..Se ao Mário Correia fosse permitido reconstituir uma viagem dos nossos pioneiros da aviação qual escolheria? Há uma viagem muito interessante, concretizada em 1934. Um piloto e um mecânico, Humberto da Cruz e António Lobato, saem da Amadora, vão até Timor e regressam, cobrindo mais de 42000 Km. Isto na categoria de aviação de turismo. Há um livro, A Viagem do Dilly, uma obra interessantíssima, que só encontrará em alfarrabistas, com fotografias, um diário de bordo simpático. Dá para perceber o pensamento de Humberto da Cruz, que faz abordagens sociológicas dos povos que vai encontrando, numa perspetiva de época, naturalmente. Há uma literatura de viagens com estes aviadores que poderia ser editada pois são excelentes histórias..dnot@dn.pt