Há 75 anos voava «O Papagaio»

Amanhã, passam 75 anos sobre o lançamento de O Papagaio, revista que, juntamente com O Mosquito, Mundo de Aventuras, Diabrete, ou Cavaleiro Andante, formou e fez sonhar muitas gerações portuguesas ao longo de décadas.
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FOI A 18 DE ABRIL de 1935 que O Papagaio abriu pela primeira vez, se não as suas asas, pelo menos as suas páginas às mãos e olhos ávidos dos miúdos a quem a revista se destinava, como se lia por baixo do seu cabeçalho, ao lado do qual também estava o preço, elevado para a época, de um escudo. No interior desse número inaugural – como durante o resto da sua vida, onde nunca ocupou mais de um terço das páginas – a banda desenhada – então chamada histórias aos quadradinhos pois o francesismo só entraria em uso décadas depois – era pouca, limitada a uma prancha de Tom (Thomaz de Melo, um dos responsáveis pela capa e pelo grafismo atraente da novel publicação), intitulada «Sabichão em Calças Pardas», e meia prancha de Stuart Carvalhais, com os seus Quim e Manecas.

Nas suas páginas, a preto e branco, uma ou várias cores, a prioridade era dada a contos, curiosidades, passatempos e concursos, tudo com forte pendor didáctico e formativo, algo perfeitamente normal na época.

Publicação católica, semanal, com saída às quintas-feiras, propriedade da Renascença, tinha como director um dos maiores nomes que o jornalismo infanto-juvenil português conheceu, Adolfo Simões Müller [ver caixa].

A revista viria a durar 722 números, com altos e baixos, e dela ficou como principal imagem de marca ter servido de modelo a muitos títulos infanto-juvenis lançados nos anos seguintes e o ter publicado – como estreia fora da francofonia e pela primeira vez a cores em todo o mundo – as aventuras de um certo Tintin [ver texto «Tim-Tim repórter  de O Papagaio»]. Hergé, o seu autor, no entanto, seria um dos poucos estrangeiros publicados em O Papagaio, juntamente com Jacobson, Urátegui, Gordillo, Walter Booth e poucos mais, uma vez que a aposta principal de Müller foi sempre para os autores nacionais, alguns dos quais começaram ainda adolescentes nas suas páginas. Foi o caso de José Ruy, hoje um veterano, especialista em temas históricos, e o autor português com mais álbuns editados, que lá publicou as suas primeiras histórias aos quadradinhos quando contava apenas 14 anos, curiosamente todas no domínio da ficção.

OUTROS NOMES nacionais que desempenharam um papel significativo no sucesso de O Papagaio, para além do já citado Tom, foram José de Lemos (responsável por toda a parte gráfica, após a saída daquele), Arcindo Moreira, Meco ou Rodrigues Neves. Mas, afirmam João Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro em A Banda Desenhada Portuguesa 1914-1945 [Fundação Calouste Gulbenkian, 1997], deve-se aos irmãos Sérgio Luiz e Guy Manuel, precocemente desaparecidos, «a mais imorredoura criação de O Papagaio», o Boneco Rebelde, protagonista de quatro aventuras.

Como casos peculiares há que citar ainda o conhecido actor e humorista José Viana (1922-2003), autor de diversas bandas desenhadas de crítica de costumes, e Júlio Resende, hoje pintor de renome, então animador das festas e das emissões radiofónicas e criador do «emblemático Fagundes Arrepiado» que, escrevem Boléo e Pinheiro, revelava «um humor subtil e desconcertante, inteligente e invulgar, com uma originalidade que lhe vem de uma ironia natural», e que também engrossaram, com engenho e mérito, o número de colaboradores da publicação. Por ela passariam ainda, embora de forma breve, nomes depois consagrados da nona arte nacional como Artur Correia, Vítor Péon ou José Garcês.

Com o modelo consolidado, apoiado também em separatas com banda desenhada ou construções de armar, concursos variados, no incentivo à correspondência por parte dos leitores e num programa radiofónico que alcançou grande sucesso, Simões Müller sairia no número 302, para dirigir o novo «concorrente» Diabrete, sendo o cargo de director assumido sucessivamente por Artur Bívar, José Rosa Ferreira e Laurinda Borges Magalhães.

Se, consensualmente, os primeiros cinco anos foram os melhores, os últimos foram de natural declínio, provocado também pelo aparecimento de novas propostas de uma concorrência forte (O Mosquito e Diabrete), tendo O Papagaio, enquanto publicação autónoma, calado a sua voz a 10 de Fevereiro de 1949, 14 anos mais tarde, no n.º 722. Teria ainda uma segunda vida, como secção da revista Flama, durante 96 números, até 9 de Fevereiro de 1951, mas já sem grande relevância.

«No período final», escreve António Dias de Deus em Os Comics em Portugal – Uma História da Banda Desenhada [Livros Cotovia, 1997], O Papagaio «era um semanário que (…) chegava pontualmente a casa dos paizinhos assinantes, que pretendiam uma sólida formação moral para os seus rebentos. Às escondidas os miúdos iam ler O Mosquito emprestado…»
Eram sinais d(e nov)os tempos que O Papagaio tinha ajudado a preparar.

Tim-Tim repórter de O Papagaio

Dos nomes das personagens ao sexo do cão: a vida atribulada da primeira versão portuguesa das aventuras do herói.

Se a publicação de Tintin, a criação máxima de Hergé, ficou como o grande feito de O Papagaio, os seus leitores tiveram de esperar quase um ano, até ao n.º 49, de 19 de Março de 1936, para o herói ser anunciado na revista, como seu repórter na «América do Norte, país civilizadíssimo, donde nos chegam as maiores invenções e belas afirmações de espírito artístico» mas que é também, «infelizmente, um território onde o banditismo impera, no qual indivíduos da pior espécie e de todas as nacionalidades estabeleceram de há muito arraiais».

Milu, seu companheiro de sempre, na revista trocava o nome e o sexo, anunciando-o(a) como «a cadelinha Pom-Pom» porque, explica José Azevedo e Menezes em O Papagaio – Um Estudo do Que Foi Uma Grande Revista Infantil Portuguesa [2.ª edição, do autor, 2007], citando Dias de Deus: « Em O Papagaio já havia uma Milu, Maria de Lurdes Norberto, que recitava e cantava aos microfones das emissões infantis; Simões Müller entendeu que não ficaria bem dar o nome de uma menina conhecida a uma cadela»…

Dois números depois, em novo anúncio, já na capa, o seu nome passava a Rom-Rom mas o sexo trocado manter-se-ia até ao fim da revista. Também o capitão Haddock e o professor Tournesol foram rebaptizados, passando, respectivamente, a capitão Rosa e a professor Pintadinho…

Finalmente, no n.º 53, logo na capa, com cores vivas (e hoje exageradas) começavam as Aventuras de Tim-Tim na América do Norte, pela primeira vez em policromia em todo o mundo. Sinal de outros tempos, o respeito pelos originais de Hergé era pouco ou mesmo nenhum, sendo normal as pranchas serem retalhadas e remontadas em função do espaço disponível ou a ocupar.

Artur Correia, autor português de BD, ainda em actividade, numa entrevista publicada em Mundo de Aventuras 248 [5.ª série, de 1978], lembra que em O Papagaio «alargava, juntamente com um talentoso moço chamado Soares, os desenhos das histórias do Tim-Tim para virem publicados na página central. Nós é que fazíamos os acrescentos para transformar uma página única numa dupla»...

Além disso, Tintin surgiu em muitas capas de O Papagaio (cujas revistas correspondentes são hoje avidamente disputadas pelos coleccionadores), em desenhos originais ou feitos por autores portugueses, como boneco articulado de montar e mesmo noutras histórias, como é o caso da primeira aventura do Boneco Rebelde, de Sérgio Luiz e Guy Manuel, em que contracena com o protagonista nas páginas iniciais, e como impulsionador da acção em Na Pista de Tim-Tim, de Diniz de Oliveira e Rodrigues Neves.
Pelo meio ficaram também as tentativas goradas de Simões Müller de o levar consigo para o Diabrete (o que só conseguiu após o fim de O Papagaio), onde teve de se contentar com Trovão e Relâmpago (aliás Quick et Flupke), inicialmente publicados sem conhecimento de Hergé, e o facto de parte dos direitos de Tintin terem sido pagos em géneros, mais exactamente em latas de sardinhas, enviados para a Alemanha onde estava preso o irmão do desenhador belga.

Adolfo Simões Müller, um homem dos (setenta e) sete instrumentos

Lisboeta, nascido a 18 de Agosto de 1909 – o centenário passou de forma discreta há menos de um ano… – Adolfo Simões Müller, depois de ter frequentado o curso de Medicina, foi jornalista, pedagogo, dramaturgo, produtor de programas radiofónicos e director do gabinete de estudos da Emissora Nacional. E também tradutor, adaptador, poeta e prosador, autor de mais de sete dezenas de obras infanto-juvenis (como Caixinha de Brinquedos e O Feiticeiro da Cabana Azul, galardoadas com o Prémio Nacional de Literatura Infantil em 1937 e 1942, respectivamente), folhetins radiofónicos, inúmeras adaptações de clássicos da literatura, romanceador de biografias de figuras de referência da nossa História, assim como de vultos da humanidade.

Além disso, foi também argumentista de banda desenhada, colaborando com muitos autores que passaram pelas revistas que dirigiu, merecendo lugar de destaque as suas parcerias com Fernando Bento. Também por isso, é um dos nomes fundamentais do jornalismo infanto-juvenil em Portugal das décadas de 1930 a 1970, onde deixou marcas profundas como director de O Papagaio (1935), onde estreou Tintin, Diabrete (1941), Cavaleiro Andante (1952), Falcão (1958), Foguetão (1961), onde publicou Tintin au Tibet na versão original francesa, com a tradução em rodapé (!), e apresentou Astérix pela primeira vez (a preto e branco) aos leitores portugueses, ou Zorro (1962).
Recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra, em 1982, e viria a falecer a 17 de Abril de 1989 tendo, um ano depois, a Editorial Verbo instituído um prémio com o seu nome, para homenagear a sua memória e estimular a revelação de novos autores.

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