Hoje começa a 80.ª Volta a Portugal em bicicleta. Há 75 anos (7 de abril de 1943 - Brejenjas, Torres Vedras - morreu há quase 35 anos, a 10 de maio de 1984, em Lisboa), nasceu o homem comum que ganhou como nenhum outro, e que há 50 anos passou de um invisível triunfante amador para um profissional arrasador e popular. A segunda vedeta planetária do desporto português (depois de Eusébio, no Mundial 1966), Joaquim foi um campeão de viscondes: no Sporting e em França (e no mundo) pela mão do visconde de Besançon (um título ainda hoje olhado com alguma desconfiança no meio ciclístico). Jean de Gribaldy ficou rendido ao "Tinô" com o triunfo do "Quim Cambalhotas" na Volta ao Estado de São Paulo 68, no Brasil. Foi há 50 anos, e Portugal entrou no mapa internacional do ciclismo.."Agarrou-o logo ali. E tornou-o um emigrante de luxo, porque ganhava mais dinheiro em cima da bicicleta do que os milhares de emigrantes que sobreviviam nas fábricas e nas obras", conta ao DN Artur Moreira Marques, presidente honorário da Federação Portuguesa de Ciclismo (teve o mandato presidencial mais longo: 1992-2012) e que foi o dirigente do Sporting que contou nas suas fileiras com Joaquim Agostinho (1968, 1973, 1976, 1977 e 1984). Um Sporting que foi fundado em 1906 com o inestimável patrocínio do primeiro visconde Alvalade e primeiro presidente honorário desde o dia 1, avô do fundador José de Alvalade (José Alfredo Holtreman Roquette, tio-avô de José Maria Ricciardi), a quem ofereceu uma soma astronómica em dinheiro e a interminável Quinta das Mouras (abarcava zonas hoje conhecidas como Lumiar, Campo Grande e Alvalade)..A vitória em São Paulo (seis etapas ganhas por portugueses, duas por Joaquim) - José Manuel Marques ganhara a prova em 1960; e João Roque, relevantíssimo para esta história, em 1966; depois de Agostinho em 68, só em 2009 voltou a haver vencedor luso: Sérgio Ribeiro) aconteceu em novembro. Recuemos uns meses. Agostinho ainda não cumprira os 25 anos e pedalava entre a casa e o trabalho, entrara "por brincadeira numa prova para populares [amadores]". E ganhara, claro. Mal tinha chegado a Portugal da Guerra Colonial em África..Entre os espectadores estava João Roque (o tal da Volta a São Paulo em 1966, natural de Casalinhos de Alfaiata, vizinha de Brejenjas), ciclista do Sporting que tinha ganho a Volta em 1963 e o convenceu a ir para Alvalade. Estávamos em fevereiro de 1968. Em abril, já de verde e branco, ganhou o Campeonato Nacional de Fundo para Amadores e no verão já estava no elenco leonino que disputou a Volta a Portugal 1968. Foi "apenas" segundo, com meia dúzia de meses de profissionalismo (bem, o possível há 50 anos). "Há uns oito ou nove meses, ainda andava lá na minha terra, ocupado com o trabalho de hortelão e nem sonhava vir a ser ciclista", diria Agostinho depois da Volta e de ter andado três dias de amarela antes de a ceder ao companheiro de equipa Leonel Miranda (luziu oito dias o símbolo da liderança, mas no fim ganhou Américo Silva, do rival Benfica).."De um momento para o outro...", como quem diz, sem contar - e jurava que não se via vencedor da prova rainha portuguesa -, limpa seis campeonatos nacionais de estrada consecutivos (1969 a 1974) e outras tantas Voltas entre 1969 e 1974 (só reteria três, de 1970 a 1972, tendo-lhe sido retiradas as vitórias em 69, 73 e 74 por acusar doping). Ímpar durante quase 20 anos, até Marco Chagas também ganhar seis seguidas (entre 1982 e 1987), depois de vencer em 1979. Mas também o futuro companheiro de equipa em França pela Puch-Campagnolo (no Tour, Chagas fez 44.º em 1980 e 77.º em 1984 em duas participações) perdeu três para o antidoping (1979, 1984 e 1987). Ainda assim, passou a ser o maior da Volta até 2012. O espanhol David Blanco chegou nesse ano ao quinto título, liderando a tabela (2006, 2008, 2009, 2010 e 2012), e igualando os três triunfos consecutivos de Agostinho. Oficialmente, portanto, Blanco na frente (cinco), Chagas em segundo (quatro - 1982, 1983, 1985 e 1986) e duas lendas, uma nacional - Alves Barbosa (1951, 1956 e 1958) - e outra mundial - Tinô -, a fechar o pódio (três)..O cantinho Tinô num supermercado.Voltemos ao 1968, há 50 anos, meio século, do hortelão de Brejenjas, que hoje teria 75 anos, não fosse o estúpido acidente na Volta ao Algarve 1984, quando perdeu o equilíbrio (mais uma vez...) a desviar-se de um cão e embateu com a cabeça desprotegida (o capacete não era obrigatório) no chão, ainda terminou a etapa com um coágulo no cérebro, vindo a morrer dez dias depois. Entre fevereiro e o fim do ano, faltava a Volta a São Paulo, que se realizou em novembro até ao 1.º de dezembro..Jean de Gribaldy (também conhecido por ter ido tirar Sean Kelly da agricultura para uma bela carreira do irlandês...) dirigia uma equipa amadora francesa e põe os olhos no fenómeno. Pensa como o grande empresário que foi: com Joaquim Agostinho as minhas equipas (que mudavam quase anualmente de nome consoante o patrocinador que fosse subindo a parada) vão destacar-se. E se bem o pensou, melhor o fez. Levou Tinô para Besançon, onde o ciclista viveu num quarto na propriedade do visconde. E que até tinha direito a um "cantinho Tinô" no supermercado de Gribaldy, dirigido pela cunhada, com um altar de memorablia (posters, camisolas, chapéus...), bem maior do que o de Sean Kelly..Não por acaso, uma vez que, em 13 participações no Tour, Agostinho ficou oito vezes nos dez primeiros, destacando-se os dois terceiros lugares e o respeito de imortais como Eddi Merckx e outros que tais (só da organização teria recebido 80 mil euros, pela tabela dos prémios monetários de hoje, com oito classificações entre os dez primeiros e quatro etapas). Além de que, entre as vitórias em etapas, uma culminou no mítico Alpe d'Huez a 15 de julho de 1979, o que lhe valeu um busto em bronze e o batismo com o seu nome de uma das 21 curvas da tortuosa subida.."Na altura, foi criada a dupla partenence, que permitia a um ciclista correr por duas equipas. Acho até que foi criada por causa do Agostinho, que vinha dar uma perninha ao Sporting enquanto corria por Jean de Gribaldy", rememora Artur Moreira Marques, atualmente o diretor com a ligação mais longa à União Ciclista Internacional (UCI) - colabora desde 2001, já foi vice-presidente, agora coordena cinco comissões. "Até me recordo de um jantar em Paris com ele e o Johnny Hallyday [a grande rock star francesa do tempo dos Beatles que morreu no ano passado]. O Gribaldy tinha muitos conhecimentos em todas as áreas, movia-se bem entre os patrocinadores e era um grande detetor de talentos", acrescenta o médico-cirurgião agora inteiramente dedicado ao ciclismo.."Em 1984, recuperámos o ciclismo para o Sporting e o Joaquim Agostinho veio para a equipa. O Jean de Gribaldy veio cá à apresentação da equipa", revela Artur Moreira Marques. E terá estado no funeral de Joaquim Agostinho entre os milhares de pessoas que acompanharam o féretro.O vicomte era um bon vivant, divertia-se para lá do ciclismo. Fazia uso frequente do brevet de piloto dirigindo aviões em aventuras particulares, e fazia-se rodear em faustosos restaurantes de estrelas como Sylvie Vartan, Jean-Paul Belmondo ou Jacques Brel, entre muitos outros. Mas não durou muito mais do que a sua grande descoberta mundial, Joaquim Agostinho. Se este morreu há quase 35 anos, em 1984, Jean de Gribaldy morreria três anos depois, em 1987, com 61 anos e como um dos melhores diretores desportivos da modalidade. "Ele ia de carro de Besançon para a Suíça para fazer fisioterapia às costas e teve um acidente de carro fatal", relata Artur Moreira Marques. E, em três anos e dois acidentes viários (um de bicicleta numa prova de ciclismo, outro de automóvel), perderam-se dois dos maiores do ciclismo. Um ciclista sem formação e que até partia bicicletas com o excesso de força; e um diretor desportivo que foi sagaz para perceber como atrair patrocinadores para sustentar as equipas e que sabia que o "ciclismo é um desporto romântico", como o classifica Moreira Marques.