Guru de Bolsonaro é cada vez menos guru
No dia 29 de março, Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, foi demitido por ter tornado o Brasil um pária internacional. Cinco dias antes, Filipe Martins, assessor especial do Palácio do Planalto para assuntos de política externa, fez um gesto supremacista branco no Senado Federal e ficou na iminência de perder o emprego. Os dois envolvidos têm em comum a devoção pelo ex-astrólogo e filósofo autodidata Olavo de Carvalho, o guru que, com a derrocada dos dois, é cada vez menos o guru do governo de extrema-direita liderado por Jair Bolsonaro.
Emigrado desde o início da década passada nos Estados Unidos, "como reação à loucura de o Brasil eleger o Partido dos Trabalhadores", Olavo de Carvalho, conhecido pelas teorias da conspiração e ideias exóticas dos seus best-sellers "O Imbecil Coletivo" e "Tudo o Que Você Precisa Saber para não Ser Um Idiota", proclama-se "o parteiro da nova direita do Brasil".
Fumador inveterado com queda para o abuso de palavrões e colecionador apaixonado de armas - tem dezenas de revólveres expostos no escritório e mais de 30 espingardas espalhadas num quarto de brinquedos - gaba-se ainda de ter "tirado os direitistas do armário". Os direitistas que elegeram Bolsonaro, em outubro de 2018.
Após essa vitória eleitoral, entretanto, o presidente eleito viu-se obrigado a acomodar no governo todas as correntes, muito heterogéneas, que o apoiaram na campanha eleitoral: dos militares, que se ocuparam de cargos mais ligados à defesa e à segurança, aos grandes empresários, representados pelo superministro da economia Paulo Guedes, passando por latifundiários, que tomaram não apenas o ministério da agricultura como também o do meio ambiente, e evangélicos, donos da pasta dos Direitos Humanos através da pastora Damares Alves.
Os "olavetes", como o próprio Olavo chama os seus alunos, tiveram, entretanto, direito a uma fatia de leão - Relações Exteriores, Educação e Cultura. O prestígio do ex-astrólogo era tanto por essa altura que foi homenageado num jantar em Washington, em março de 2019, com as presenças de Bolsonaro e Steve Bannon, o estratega de Donald Trump.
Mas na Educação, o ministro Ricardo Vélez, indicação pessoal do guru, acumulou gafes e trapalhadas em meros dois meses. O substituto, o folclórico Abraham Weintraub, um "olavete" classificado de "desastre" pela classe política e pela imprensa e notado pelos erros ortográficos a cada dois tweets, durou, por sua vez, até junho do ano passado, quando, depois de chamar os juízes do Supremo Tribunal Federal de "vagabundos" foi escondido num cargo no Banco Mundial, nos EUA.
Dado o fracasso dos dois discípulos do guru de Richmond, no estado da Virginia, o presidente decidiu transferir a Educação do jugo dele para o de outro dos seus suportes, a Igreja Evangélica, que nomeou o pastor Milton Ribeiro.
Na Cultura, que não tem estatuto de ministério, reinou o secretário de estado Roberto Alvim, dramaturgo que mudou de vida quando conheceu, presume-se que em simultâneo, Jesus Cristo e Olavo de Carvalho. "Tive uma série de epifanias, iluminações, tornei-me cristão convicto e mergulhei de cabeça nos escritos do professor Olavo", afirmou.
Alvim, que acabaria demitido por imitar discurso de Joseph Goebbels, braço-direito de Hitler, deixou, ainda assim, a sua marca em subsecretarias e direções de fundações: entregou ao maestro e "olavete" Dante Mantovani, para quem "o Rock leva ao aborto e ao satanismo", "os Beatles implantaram o comunismo", "agentes soviéticos infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock para destruir a célula familiar" e "a UNESCO propaga a pedofilia", a Fundação Nacional das Artes.
Para a Fundação Palmares, cujo objetivo é promover as manifestações afro-brasileiras, nomeou o também "olavete" Sérgio Camargo, jornalista cujo pensamento inclui frases como "Marielle Franco jamais será heroína legítima dos negros brasileiros, exceto para os que estão nas biqueiras [local de venda de drogas] e nos presídios", "[o músico] Martinho da Vila é um vagabundo que deveria ser mandado para o Congo" e "a escravidão foi benéfica para os descendentes".
Com a queda de Alvim, entretanto, Olavo de Carvalho deixou de ter a mesma preponderância na Cultura - entraram, depois dele, a atriz Regina Duarte e a seguir o ator de novelas juvenis Mário Frias.
Sobrava, sob a alçada de "olavetes", o ministério das Relações Exteriores. Já não sobra. "A demissão de Ernesto Araújo representa novo fracasso do ideólogo Olavo de Carvalho, que o indicou para o cargo, e do Tradicionalismo, a escola filosófica que rejeita a concepção moderna de progresso e defende um projeto reacionário de destruição da ordem estabelecida", escreveu Marcos Augusto Gonçalves em ensaio no jornal Folha de S. Paulo.
"Com lugar de destaque no caixote do lixo da história nacional", conforme opinou o professor universitário Mathias Alencastro no mesmo jornal, Araújo gabou-se do estatuto de pária internacional que deu ao país - "talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas" - classificou os invasores do Capitólio de "cidadãos de bem", recusou acordos de cooperação para comprar vacinas, criticou o isolamento social na pandemia, chamou o covid-19 de "comunavírus" e desgastou as relações com a China, maior parceiro comercial do Brasil.
A demissão de Ernesto Araújo, "um diplomata que vai voltar para o anonimato de onde nunca deveria ter saído", segundo o editorial do jornal O Estado de S. Paulo, era exigida por um largo arco de interesses: pela própria classe diplomata, pelo núcleo militar, pelos latifundiários e pelo "centrão", grupo de parlamentares que troca o apoio ao presidente no legislativo por cargos no executivo e é a mais recente corrente heterogénea que Bolsonaro tem de acomodar no governo. No seu lugar, entra Carlos França, embaixador inexperiente sem ligação a Olavo.
Já o futuro de Filipe Martins depende da boa vontade do Senado: os senadores vão decidir nos próximos dias sobre um voto de censura ao assessor de Bolsonaro, apanhado pelas câmaras de televisão a fazer um gesto supremacista branco enquanto Rodrigo Pacheco, o líder do Senado, discursava. "Senado não é lugar de brincadeira, Senado é lugar de trabalho", advertiu Pacheco.
Martins é considerado pelo próprio Olavo um dos seus melhores alunos: íntimo dos filhos de Bolsonaro, é alcunhado de Sorocabannon, num jogo de palavras entre a cidade onde nasceu, Sorocaba, interior de São Paulo, e Steve Bannon, ideólogo da extrema-direita mundial.
A perda de influência de Olavo de Carvalho no mundo real reflete-se no mundo virtual - um estudo do (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do jornal Metrópoles, notou queda abrupta no seu perfil e no dos seus mais fiéis acólitos no Twitter.
Em paralelo, o ex-astrólogo sofre uma asfixia financeira: além de ter perdido uma ação em tribunal para Caetano Veloso no valor de quase três milhões de reais [perto de 500 mil euros] por ter acusado o músico de pedofilia, a plataforma de pagamentos online Paypal fechou a conta onde ele vende livros e cursos de filosofia por disseminação de notícias falsas sobre o novo coronavírus.
"É a pior fase de Olavo desde o início do governo Bolsonaro, um verdadeiro inferno astral para o guru", resumiu ao DN Heloisa de Carvalho, filha (e crítica fervorosa) de Olavo. "A queda do Ernesto foi a maior derrota dele no governo, mais do que a queda dos ministros da Educação que nunca lhe foram realmente fiéis", continua. "No fundo, ele está a perder o comando da seita que criou".