Guerra, olimpismo e desporto

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"Serious sport has nothing to do with fair play (...) in other words it is war minus the shooting".

George Orwell, "The Sporting Spirit", Tribune, Dezembro de 1945

Na introdução da Ox-ford Illustrated History of the First World War, o historiador britânico Hew Strachan afirma serem habitualmente utilizadas três palavras para explicar a Grande Guerra: global, total e moderna. Lidos no seu conjunto, estes adjectivos remetem, de imediato, o leitor menos familiarizado com o tema, para a dimensão alcançada pela conflagração. O termo global acaba por ser geograficamente preciso; apesar de nem todos os países terem sido beligerantes, os impactos da conflagração sentiram-se no mundo inteiro, transformando a guerra de 1914--1918 num acontecimento verdadeiramente transnacional, que, na hierarquia das potências, colocou um ponto final ao domínio da Europa e contribuiu para a consolidação da hegemonia económica dos Estados Unidos da América.

1916 foi um ano particularmente central para esta história, nele confluíram de forma marcante os impactos globais e locais da I Guerra Mundial: Verdun, a batalha onde a Alemanha procurou ferir a França de morte, Isonzo, o combate marcado pelo confronto entre os exércitos italiano e Habsburgo, a revolta da Páscoa, em Dublin, onde a violência organizada foi utilizada como arma para atingir objectivos políticos nacionais, ou o Somme, uma das batalhas mais mortíferas da I Guerra Mundial - " the last love battle", como Scott Fitzgerald a definiu - que ensombrou de negro o mês de Julho, o mês escolhido, precisamente, quatro anos antes, pelo Comité Olímpico Internacional para a realização, em Berlim, dos Jogos da VI Olimpíada.

A associação entre olimpismo e guerra está presente na génese do Movimento Olímpico Moderno, o seu principal impulsionador, Pierre de Coubertin, pretendia, através do desporto e da promoção do vigor físico, recuperar o poder e o estatuto internacional perdidos pela França na sequência da derrota que lhe fora infligida durante a guerra franco-prussiana de 1870. A relação entre militarismo, socialização e desporto é por isso indissociável. Imagens de perda, dor e heroísmo são símbolos de unidade em momentos de sofrimento; tanto o campo de batalha como os estádios onde são realizadas as competições desportivas são, do ponto de vista simbólico, locais onde a demonstração de agressões, patrióticas, é legitimada e em que tanto os heróis militares como os ídolos desportivos são elementos cruciais à construção de uma nação moderna e poderosa. Em 1914, ano em que o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco Fernando, e a sua mulher, a duquesa de Hohenburg, foram assassinados na capital da Bósnia, cinco anéis interligados, representando os cinco principais continentes, foram adoptados como símbolo da bandeira olímpica.

Talvez não seja por isso estranho que a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, a 9 de Março de 1916, tenha servido de mote para o desporto nacional ter sido chamado a contribuir para o esforço de guerra. No final do mês, o ministro da Guerra, Norton de Matos, por intermédio da Federação Portuguese de Sports, solicitou que "cada sociedade desportiva intensifique a sua acção, chamando um maior número de adeptos à causa que defende, ministrando-lhes, ao mesmo tempo, a instrução dos conhecimentos que a guerra de hoje veio indicar serem imprescindíveis ao homem, para a sua defesa e para a consecução do seu fim".

Quando o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português (CEP) partiu de Lisboa para a Flandres, alguns atletas como o então campeão de pesos e halteres, Álvaro Costa, e o atirador António Augusto Martins integraram-no. Os jornais desportivos passaram então a acompanhar os seus desempenhos na frente de batalha, como se de uma competição se tratasse.

Os Jogos da VI Olimpíada nunca chegariam a realizar-se, ficando para a história como os primeiros a serem cancelados, desde o relançamento do Movimento Olímpico Moderno, por Coubertin. Os combates que se travaram em solo francês tinham já obrigado à transferência, em 1915, da sede do Comité Olímpico Internacional, para um país neutro, a Suíça, local onde permanece até hoje.

São por isso vários os legados, impactos e inter-relações entre guerra, desporto e olimpismo. Num artigo publicado recentemente na revista Time, John S. Baick, professor na universidade de Western New England, afirmou que os anéis olímpicos simbolizam as principais ameaças do século XXI: populismo, nacionalismo, xenofobia, terrorismo e guerra. A 5 de Agosto de 2016 quando entrar no estádio do Maracanã, desfilando atrás da bandeira do Comité Olímpico Internacional a primeira equipa composta inteiramente por refugiados, a competir em Jogos Olímpicos, representará cada um destes problemas da contemporaneidade, mas transportará, também, em si o sonho e os valores olímpicos idealizados por Pierre de Coubertin: Excelência, Amizade e Respeito, valores que para estes atletas os Jogos do Rio de Janeiro já ajudaram a cumprir.

Diretora do Gabinete de Estudos e Projetos do COP e investigadora do Instituto de História Contemporânea da UNL; Investigadora do Instituto de História Contemporânea da UNL

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