Guerra na Ucrânia. "A perda do património é a perda de uma parte da humanidade"

Depois da destruição do Museu da História Local de ​​​​​​​Ivankiv, na Ucrânia a Associação Portuguesa de Museologia lançou um comunicado para apelar à defesa e à proteção da cultura.
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Os museus são centros de educação, estudo e entretenimento não só para as comunidades locais como para todo o mundo. Em situações de conflito, as vidas humanas são a prioridade, mas também é importante ter em conta e defender o património cultural.

Com a facilidade de movimentação, hoje em dia, existe uma maior aproximação deste património. Quando viajamos para o estrangeiro habitualmente, visitamos museus e monumentos. É uma forma de ver, observar e de nos sentirmos mais próximos daquela cultura. E é com essa preocupação que a Associação Portuguesa de Museologia (APOM) condenou a destruição do Museu da História Local de Ivankiv, na região de Kiev, na Ucrânia, provocado por bombardeamentos russos, causando "perdas irrecuperáveis".

"Há peças que são irrecuperáveis para todo o sempre. É uma perda única. Daí a nossa preocupação quando lançámos a nota para alertar que as perdas humanas estão em primeiro lugar, mas não podemos esquecer que, nesses ambientes de guerra, a perda para a humanidade de obras de arte e de património cultural de todos nós, muitas vezes, é irrecuperável", afirmou João Neto, diretor do Museu da Farmácia de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa de Museologia, numa conversa com o DN sobre a destruição do património cultural.

No Museu da História Local estavam expostas obras da artista Maria Prymachenko, distinguida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 2009, e também reconhecida ainda em vida, durante a existência da União Soviética.

O Ministério de Negócios Estrangeiros ucraniano confirmou na sua página oficial do Twitter que 25 trabalhos de Prymachenko foram queimados e perdidos no incêndio.

No próprio Museu da Farmácia, existe uma peça que por pouco não ficou perdida. O almofariz do século XVII foi roubado pelos nazis à família judaica Rothschild, durante a Segunda Guerra Mundial. Recuperado num leilão, está agora exposto numa vitrina em Lisboa. "Se calhar, por também ter uma peça que esteve envolvida exatamente nesse ambiente de conflito na Segunda Guerra Mundial tornaram-me ainda mais sensível a esta questão." diz João Neto.

Quando a Europa se encontrava em chamas na Segunda Guerra, parte das obras existentes em Berlim foram movidas para outras áreas menos sujeitas a bombardeamentos estratégicos. Os Estados Unidos da América, mesmo não estando imediatamente ameaçados, com a declaração de guerra, criou um conjunto de medidas para proteger determinadas obras de arte nas cidades mais importantes.

Dependendo do grau de destruição, existem diferentes estratégias para ajudar a reerguer algum do património cultural perdido. Por exemplo, no caso do incêndio da Notre Dame, foi lançada uma campanha de fundos para a reconstrução da catedral. "Estamos a falar da mesma maneira que os médicos e os enfermeiros sobretudo os farmacêuticos se lançam exatamente para salvar vidas humanas. Os museólogos têm depois de arranjar forma de também se lançarem para ajudar esses nossos colegas."

Segundo o diretor do Museu da Farmácia, está a formar-se uma rede de contactos entre vários museólogos de países próximos da Ucrânia para perceber qual a melhor forma de atuar e de ajudar colegas que estão em fuga e a tentar sobreviver com as suas famílias.

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) emitiu um comunicado sobre o conflito, pedindo um cessar-fogo e a junção de esforços coordenados para garantir a segurança dos funcionários dos museus e a proteção do património cultural da Ucrânia.

No comunicado, a ICOM convida todos os membros da sociedade civil a aproximarem-se dos seus museus para ajudá-los, se tiverem possibilidade.

O sentimento de preocupação com a vida dos colegas, dos museus e monumentos é partilhado por todos os amantes de arte e de história. João Neto admite que o que está acontecer faz que ele e também alguns dos seus colegas se deitem muitas vezes às duas ou às três da manhã "com o coração nas mãos a ver o que é que poderá acontecer à vida mas também ao património".

Nestes tempos de crise, é necessário relembrar a importância dos inventários. Estes contêm toda a informação e imagens ligadas às peças. Assim, a memória das obras consegue perdurar, se estas for irrecuperáveis. No entanto, se ainda for possível a sua recuperação, os inventários ajudam-nos a encontrar o caminho certo.

"Portanto, no meio do caos e da profunda tristeza, só peço que os meus colegas tenham tido a ajuda necessária para salvaguardar o património mas também claramente as suas vidas porque em primeiro lugar estão as suas vidas e dos seus familiares. Só espero que realmente as pessoas tenham noção de que muitas vezes há também uma perda irrecuperável do património."

mariana.goncalves@dn.pt

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