O Mediterrâneo Oriental está transformado num tabuleiro de batalha naval, com gregos e turcos a realizar demonstrações de força com manobras militares na região. Os dois velhos rivais prometem defender a sua posição na disputa sobre fronteiras marítimas, que a descoberta de gás natural só veio incendiar.."Nunca iremos comprometer o que nos pertence. Estamos determinados a fazer o que for necessário em termos políticos, económicos e militares", disse o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, reiterando que a Turquia terá o que é seu por direito no Mediterrâneo, no mar Egeu e no mar Negro..Do outro lado, o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, anunciou que Atenas vai abandonar décadas de política externa "passiva" e vai alargar as suas águas territoriais de seis para 12 milhas náuticas na costa que dá para Itália - não atinge diretamente o território em disputa com os turcos, mas envia-lhes uma mensagem..A tensão na região tem vindo a intensificar-se, com a Alemanha a tentar servir de mediadora entre os dois países, aliados da NATO. Tanto gregos como turcos dizem estar dispostos ao diálogo, acusando-se mutuamente da responsabilidade pelo impasse. "Qualquer fagulha, por mais pequena que seja, pode resultar num desastre", avisou o chefe da diplomacia alemão, Heiko Maas, após viajar entre Atenas e Ancara, na terça-feira..Nesta quarta-feira, a Grécia pôs em marcha exercícios navais e aéreos conjuntos com Chipre, França e Itália (os italianos tinham estado na véspera em manobras com os turcos, segundo o Twitter da Marinha). De acordo com o Ministério da Defesa grego, os exercícios que duram até sexta-feira mostram que os quatro aliados da União Europeia estão comprometidos em defender a lei marítima e internacional.."O Mediterrâneo Oriental não vai transformar-se num espaço de tensão. O respeito pelo direito internacional deve ser a regra, não a exceção. Com os nossos parceiros cipriotas, gregos e italianos, começamos hoje um exercício militar com meios aéreos e marítimos", escreveu a ministra da Defesa francesa, Florence Parly, no Twitter..A ministra disse que a "mensagem é simples: prioridade ao diálogo, à cooperação e à diplomacia para que o Mediterrâneo Oriental seja um espaço de estabilidade e de respeito do direito internacional. Não deve ser um terreno de jogo para as ambições de alguns; é um bem comum". A França, que é a maior potência militar da União Europeia depois da saída do Reino Unido, participa com três aviões Rafale, uma fragata e um helicóptero..Ao mesmo tempo, a Turquia anunciava que estava também a fazer exercícios militares, nos quais participa pelo menos um navio norte-americano, o destroyer USS Winston S. Churchill. Dois dias antes, os EUA tinham estado em manobras com os gregos..As posições de Itália e EUA - que tradicionalmente servia como garante da paz entre os dois países - mostram o desejo de não antagonizar Erdogan, tendo em conta o papel da Turquia nos conflitos da região, nomeadamente na Líbia e na Síria. Já a França não esconde com a sua posição o antagonismo para com o presidente turco..Mas como é que se chegou aqui?.Chipre, uma ilha dividida.A tensão entre os dois países no Mediterrâneo não é de agora - em 1830 os gregos conquistaram a independência do Império Otomano e desde então já disputaram quatro guerras - e a relação tem tido altos e baixos. Num dos pontos altos, os dois países aderiram à NATO, em 1952. Mas, num dos pontos baixos, estiveram à beira de uma nova guerra, em 1974, por causa de Chipre..A Turquia invadiu a ilha nesse ano, em resposta ao golpe desenhado a partir de Atenas que tinha como objetivo final uma união à Grécia. Desde então, a ilha continua dividida entre a República do Chipre, no sul, que fala grego, é reconhecida internacionalmente e pertence à União Europeia, e a autoproclamada República Turca do Norte do Chipre, que só é reconhecida por Ancara..A atual tensão que se vive na região tem sido comparada a esse momento no tempo e a um outro, em 1996. Na altura, o foco de desentendimento eram as ilhas desabitadas de Kardak (como são conhecidas na Turquia) ou Imia (como os gregos as conhecem), no mar Egeu, tendo os EUA atuado para pôr um travão à situação. Em 1999, a "diplomacia do terramoto", quando os vizinhos correram em auxílio um do outro quando um forte abalo atingiu primeiro a Turquia e depois a Grécia com menos de um mês de diferença, serviu para melhorar as relações..Uma fronteira por desenhar.Mas os diferendos em relação às delimitações marítimas sempre existiram. A Turquia acusa a Grécia de considerar todo o mar Egeu como seu, enquanto Atenas defende que a disputa se prende com a delimitação da plataforma continental - a parte do continente que está submersa junto à costa..A Grécia adota até agora a regra das seis milhas náuticas para estabelecer o seu mar territorial e dez milhas náuticas para o espaço aéreo, a partir das suas ilhas (até das mais pequenas e desabitadas) - Atenas já disse que vai passar até às 12 na costa virada para Itália, tendo já vários países feito o mesmo e tal estando previsto nas leis internacionais..O problema para a Turquia é que há várias ilhas gregas que estão a poucos quilómetros da sua costa sul (incluindo a de Kastellorizo a apenas dois quilómetros) e Ancara alega que perde o acesso à plataforma continental. As ilhas do Dodecaneso foram apreendidas por Itália aos turcos em 1911 e entregues aos gregos após a II Guerra Mundial - sem que a Turquia pudesse dizer nada, pois tinha mantido a neutralidade..A Turquia reclama o direito a explorar a sua plataforma continental, mas a Grécia defende que todas as suas ilhas estão rodeadas da sua zona económica exclusiva de 200 milhas, ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que a Turquia não assinou já que isso a deixaria com direitos de exploração apenas numa pequena zona em redor do golfo de Antália..As reservas de gás natural.O problema das delimitações marinhas ganhou outra força quando, há uma década, foram descobertas reservas de gás natural no Mediterrâneo Oriental - a Turquia também já anunciou uma grande descoberta no mar Negro..Tudo começou com a descoberta dos campos de gás natural Tamar e Leviathan, na zona económica exclusiva de Israel. Ambas terão gás suficiente para responder às necessidades internas israelitas para os próximos 40 anos..A descoberta deste último (cerca de 15 biliões de pés cúbicos de gás natural) desencadeou uma "caça ao ouro" na região, com várias reservas ainda maiores a serem descobertas entretanto - os norte-americanos estimavam em 2010 que houvesse 1,7 milhões de barris de petróleo sob o Mediterrâneo Oriental e 122 biliões de pés cúbicos de gás natural..Foram encontradas reservas incluindo ao largo de Chipre. Os cipriotas, os gregos, os israelitas e os egípcios resolveram então trabalhar em conjunto para explorar melhor as reservas de energia (junto com empresas energéticas francesas e italianas) planeando até a construção de um gasoduto de dois mil quilómetros que poderia levar o gás até à Europa - desejosa de encontrar alternativas ao gás russo..A Turquia, que ficou de fora destas negociações, começou a intensificar as pesquisas a norte de Chipre - numa zona disputada, já que a República Turca do Norte do Chipre não é reconhecida internacionalmente..Acordo com a Líbia vs. acordo com o Egito.A gota de água foi a assinatura, em novembro do ano passado, de um acordo entre o governo de Ancara e o governo de Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas. Na prática, a Líbia é um país em guerra civil dividido entre o governo de Trípoli e o de Tobruk, apoiado pelo comandante Khalifa Haftar do Exército Nacional Líbio (LNA)..O acordo criava uma zona económica exclusiva entre os dois países, com a comunidade internacional a contestar a legalidade, visto, por exemplo, parecer ignorar a ilha grega de Creta. A zona económica exclusiva seria um golpe nos planos de construir um gasoduto para a Europa, via Itália, já que este a atravessaria. Em troca do acordo, a Turquia aumentou o apoio militar ao governo de Trípoli..Em resposta, a Grécia assinou a 6 de agosto deste ano o seu próprio acordo de criação de uma zona económica exclusiva com o Egito, que entrecruza a de turcos e líbios. A Turquia respondeu, considerando o acordo "nulo"..O navio de exploração Oruç Reis .Em julho, a Turquia avisou que iria enviar o seu navio de exploração MTA Oruç Reis para procurar gás natural em águas próximas da ilha grega de Kastellorizo, mas incluía também uma área entre Chipre e Creta, fazendo soar os alarmes. Contudo, manobras diplomáticas mantiveram o navio no porto..O acordo assinado entre a Grécia e o Egito mudou tudo, com o Oruç Reis a içar âncora e a seguir escoltado por dois navios da marinha turca - que por sua vez eram vigiados de perto por navios da marinha grega. A França também enviou os seus navios para ajudar os gregos..A 12 de agosto, a fragata grega Limnos estaria a navegar junto ao Oruç Reis quando ficou no caminho de uma das fragatas turcas que estão a fazer a escolta, a Kemal Reis. A fragata grega terá feito uma manobra para evitar uma colisão de frente, mas a proa embateu contra a retaguarda da fragata turca..Erdogan prometeu então não ceder diante de "piratas" e continuar com a missão do Oruç Reis. Dias depois, indicou que iria reforçar as explorações, prevendo destacar o navio de perfuração Kanuni (que está em manutenção) até ao final do ano..A missão do Oruç Reis - batizado em nome do almirante otomano, irmão do famoso Barbarossa - devia ter acabado há uns dias, mas a realização das manobras militares gregas levaram Ancara a prolongar a missão até pelo menos ao final desta semana - está atualmente a oeste da ilha de Chipre. .Divisão europeia.O escalar da tensão entre Turquia e Grécia, que envolveu também condenações por parte de Atenas à decisão de Ancara de abrir a antiga catedral ortodoxa Hagia Sophia às orações muçulmanas, pode prejudicar os interesses europeus na exploração dos recursos do Mediterrâneo Oriental e envolver outros países, como o Egito ou a Líbia, já devastada pela guerra civil..Mas deixa também novamente a nu a divisão europeia. A Grécia irá continuar a pressionar a União Europeia para aumentar as sanções contra a Turquia, que até agora só aprovou sanções contra dois responsáveis por empresas energéticas turcas pelo trabalho de prospeção perto de Chipre..O presidente turco tem ameaçado repetidamente a União Europeia com a hipótese de voltar a abrir as fronteiras e deixar que milhões de refugiados, muitos deles sírios, passem. Foi o acordo com Ancara que travou a crise de refugiados, diminuindo o fluxo com que iam chegando à Europa..A ministra da Defesa alemã, Annegret Kramp-Karrenbauer, apelou entretanto à negociação política para acalmar a tensão. "As manobras que tiveram lugar hoje não ajudam", afirmou. A Alemanha está atualmente à frente da presidência rotativa da União Europeia.