É um dos mais persistentes autores de literatura de viagens português e só mesmo uma pandemia como a que estamos a viver faria Gonçalo Cadilhe interromper as suas andanças pelo mundo. Em tempo de comemorações da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, está a reeditar o livro Nos Passos de Magalhães, um périplo que mostra como está o mundo que o navegador português percorreu há cinco séculos.. O que sente um autor de livro de viagens neste momento em que sair de casa é desaconselhado? Na ótica do viajante, sinto um certo alívio por já ter viajado tanto e já ter escrito tanto sobre viagens. Estes 30 anos de errância por tantos lugares do mundo são agora um tesouro muito mais valioso do que há umas semanas. Na ótica do escritor, espero que os meus livros sejam janelas abertas para os leitores sonharem novas viagens quando esta pandemia esvanecer..Estava com algum projeto de viagem que teve de cancelar? Sim, muitos. Itália, Indonésia, Namíbia. Vamos ver quantos ficarão cancelados. Ainda a procissão vai no adro [risos]..Nos Passos de Magalhães foi um projeto ambicioso, afinal o navegador deu a volta ao mundo. Até que ponto o imitou? No itinerário, imitei-o bastante bem. Na valentia e na audácia, nem de longe... [risos].Realizou todo o projeto ou houve situações dessa viagem impossíveis de reviver? Na parte da minha viagem que diz respeito à circum-navegação de Magalhães, foi relativamente fácil chegar a todos os lugares que o navegador tocou, pois o itinerário da epopeia está muito bem documentado. Na parte que diz respeito ao percurso dele enquanto oficial português, ou seja, os anos que passou no Oriente ao serviço de Afonso de Albuquerque, aí eu tinha poucas certezas dos passos de Magalhães. Está acertado que viveu em Malaca e Cochim, assim como Mazagão em Marrocos; provavelmente terá estado em Goa; e depois assumi que Magalhães fez o mesmo que fizeram os homens dos navios onde ele se encontrava: desceu a terra. Por exemplo, em Mombaça ou na ilha de Moçambique..A sua narrativa parte do presente. Que problemas técnicos lhe causou o intervalo de cinco séculos entre a viagem de Magalhães e a sua? Eu não chamaria "problemas técnicos" mas sim desafios, os desafios de encontrar pontes, ligações, entre uma viagem moderna e as grandes aventuras de exploração, conquista e descoberta em que Magalhães participou. Naturalmente, em termos de deslocação propriamente dita, tudo era imensamente mais fácil para mim, avião, comboio, hotel, mapas, google, etc.; mas em termos de pasmo e recriação histórica consegui colocar-me muito aproximadamente na perspetiva de Magalhães: quer pela imponência inalterada das paisagens, quer pela estranheza dos costumes alheios, quer pelo choque cultural e religioso. Afinal, os mesmos fatores que também hoje constituem a melhor e mais genuína razão para viajar. Essa foi a grande beleza do meu projeto..Relata a estranheza sobre a notícia de que a monção começará na Índia 24 horas depois de ler a notícia num jornal indiano. Essa "revelação" de como o interesse dos povos são diferentes fê-lo pensar nas estranhezas que Magalhães terá encontrando? Na Índia o início da monção, da época das chuvas, é previsto e anunciado nos jornais. E começa num dado dia e prolonga-se por uns meses. Depois acaba a chuva e só voltará a chover dali a quase um ano. Os portugueses da geração de Magalhães, a primeira geração de europeus a viver na Índia, habituados às quatro estações e a uma distribuição bastante mais homogénea da pluviosidade, chegam ao Oriente e são confrontados com esta "estranheza". E são confrontados com a identidade cultural que ela, a monção, formatou na cabeça dos indianos ao longo de milhares de anos... tal como o encontro com os "patagões", na Patagónia; e a própria dimensão do Pacífico, que Magalhães atravessou sem encontrar qualquer ilha das inúmeras que esse oceano contém. O meu livro vai revisitando essas descobertas e reflete sobre a perplexidade que elas teriam causado na cabeça dos homens dos Descobrimentos..A sua perspetiva sobre este "feito" da navegação mundial mudou ao fim da investigação? Claro que mudou. Atirei-me a este projeto em 2007 depois de ter viajado, em 2005, na Patagónia e ter reparado na consideração que era atribuída a Magalhães na Argentina e no Chile. Apercebi-me de duas coisas: uma, que eu sabia muito pouco de Magalhães; duas, que em Portugal ainda se sabia menos. Foi uma revelação para mim a dimensão mundial da figura do navegador. Lembro-me do efeito das palavras (textuais) do grande académico professor Luís Filipe Thomaz, quando o entrevistei durante a pesquisa para este projeto: "A viagem de Magalhães é o maior rasgo de audácia da história da navegação mundial.".No fim do seu périplo nunca duvidou de que a viagem de circum-navegação tivesse acontecido como está fixada na história ou podem ainda existir histórias por revelar? A grande incógnita não reside na viagem em si, mas na figura, nas motivações, na mente de Magalhães. O que pensava, o que sentia? Em que é que realmente acreditava? E depois, o maior mistério de todos: por que razão Magalhães se deixou matar nas Filipinas? Um erro de estratégia? Uma questão pessoal? Um suicídio de honra?.Existem várias biografias de Magalhães. Até que ponto existem discrepâncias entre elas? Essa situação fê-lo questionar-se sobre dados que tinha como de confiança? As biografias sérias, de historiadores como o já referido professor Thomaz ou do capitão Tim Joyner, ou ainda as atas presentes no volume A Viagem de Magalhães e a Questão das Molucas, não apresentam discrepâncias. Por um lado, a viagem de circum-navegação ficou documentada por vários cronistas, logo não há grandes dúvidas sobre como decorreu. Por outro, o período em que viveu no Oriente português também não deixa grandes dúvidas: sabe-se pouco, mas o que se sabe está bem documentado. Claro que alguns pontos estão por esclarecer, como por exemplo a cidade de nascimento do navegador, mas são enigmas e assim permanecerão até surgirem novos dados..Encontrou lugares onde nada mudou desde a passagem das naus de Magalhães? Sim, é o caso do estreito de Magalhães, que se mantém selvagem e intimidante e escassamente povoado, tal como o litoral da Patagónia. Pouco terá mudado desde que a Armada das Molucas por ali passou e o efeito que teve em mim foi de imenso respeito pela sua exploração há quinhentos anos. Depois, a ilha de Limasawa nas Filipinas, onde foi celebrada a primeira missa da história desse país tão católico, também foi um lugar excecional para mim: muito isolada e difícil de alcançar, surpreendeu-me pelo atraso e o despojamento material em que viviam os seus habitantes, mas transmitindo uma serenidade quotidiana que nos parece a nós, ocidentais, um paradoxo inexplicável. Também as Molucas, as ilhas das Especiarias, a grande quimera da existência de Magalhães, a nível de paisagem e da transcendência da sua geografia, da sua luminosidade, do seu clima equatorial, será necessariamente igual ao que Magalhães sonhava encontrar se lá tivesse chegado..Qual foi o ponto alto das suas descobertas? Creio que foi mesmo perceber que Magalhães é um dos maiores exploradores da história, venerado em todo o mundo, com a NASA a homenageá-lo atribuindo o seu nome à sonda que explorou Vénus, com uma galáxia que foi batizada Nuvens de Magalhães, uma cratera na Lua que leva o seu nome, e sentir esse grande orgulho por saber que é um português, ainda que mal-amado na sua terra durante séculos..A maior polémica nas comemorações dos 500 anos foi a questão da nacionalidade de Magalhães. Era desnecessária essa disputa entre Portugal e Espanha? Não acompanhei essa telenovela. Digamos que uma retórica ultranacionalista alimentada pelo Estado Novo achou que Magalhães fora um traidor ao mudar-se para Espanha. Logo Espanha! Imagino que se ele tivesse ido servir o rei da Hungria ou da Finlândia ninguém se teria lembrado de chamá-lo traidor..Este é um livro português ou ibérico? Em termos de público, claro que é português porque se destinou, quando foi escrito, em 2007, a chamar a atenção do leitor português para a grave falha de memória da história de Portugal ensinada aos portugueses, desprezando o maior navegador português de todos os tempos. Agora, com as comemorações dos 500 anos da circum-navegação a serem celebradas em todo o mundo, a questão já não se coloca. Magalhães foi recuperado pela historiografia institucional. Mas em termos de itinerário, de ambição e de fôlego não é português nem ibérico, é mundial..Este momento de epidemia já o fez pensar em mudar os planos para o futuro e escrever um outro género de livro ou mudar o tema daquele que estava a ponderar? Bem, curiosamente o meu novo livro, que está já pronto e será editado dentro de poucas semanas, é uma redescoberta de Portugal, trata-se de uma viagem aos territórios do início da nacionalidade, uma caminhada a pé em busca do passado e do presente do país. Chama-se Por este Reino Acima. Demorei mais de um ano a escrevê-lo e afinal parece que foi uma intuição profética. O que quero dizer com isto é que o Por este Reino Acima pode vir a abrir portas para novos projetos de escrita e de viagens mais ligados à portugalidade, em busca de uma identidade, de uma razão de ser deste país a partir das suas estradas. Tal como escrevo a uma certa altura: "Alvorge, Rabaçal, Alvaiázere, Tomar, Ansião,... Todos estes nomes que durante décadas para mim foram apenas nomes, topónimos, localidades espalhadas pelo território nacional, agora adquirem uma ressonância diferente, familiar, biográfica. Através dos nomes dos lugares que atravessei, a minha caminhada conecta-se a um passado mítico de construção e consolidação de uma pátria. O meu esforço físico, as privações, as inquietudes com as distâncias, a impaciência com os desníveis, a indecisão com a salubridade da água nas fontes, a preocupação com o cair da noite e com a chegada a uma hospedaria, todos os meus medos e as minhas alegrias passam a integrar uma linhagem de mobilidade e errância que produziu a nossa identidade comum. O alargamento para sul, a Reconquista, a itinerância dos reis e das cortes, os interesses económicos, culturais ou religiosos de grupos e de privados, e também e sobretudo as relações entre cada cidade, entre as aldeias e o campo, entre a fronteira do reino e a sala do trono, entre a catedral e o mosteiro, entre o castelo no monte e o cais na foz do rio, ou seja, as viagens de um lugar para outro, foram a base do crescimento desta nação. Foram o corpo que produziu um sangue único, o nosso. As estradas são os ossos da história de Portugal.".Nos Passos de Magalhães.Gonçalo Cadilhe.Editora Clube do Autor