Um líder perde as eleições em novembro e não aceita o resultado, tendo alegado fraude. Este filme já era bem conhecido dos ocidentais, mas no caso dos Estados Unidos, a "democracia prevaleceu", como lembrou o presidente Joe Biden na tomada de posse. No caso da Birmânia, ou Mianmar, nome imposto pela junta militar, o resultado foi distinto. Na segunda-feira, dia em que os novos eleitos no parlamento iriam assumir funções, o exército fez uma onda de detenções, incluindo o presidente Win Myint e a chefe do governo Aung San Suu Kyi, e tomou o poder..Uma explicação simples para este quebra-cabeças asiático é dado pela ex-jornalista Aye Min Thant à BBC: "É preciso compreender como o exército vê a sua posição no país. Os meios de comunicação internacionais habituaram-se a referir-se a Aung San Suu Kyi como "mãe". O exército considera-se o "pai" da nação.".Análises freudianas à parte, os militares justificaram o golpe com base em acusações não provadas de fraude eleitoral maciça nas eleições de novembro de 2020, que foram conquistadas pela Liga Nacional para a Democracia (LND), de Aung San Suu Kyi. Declararam um estado de emergência de um ano até que novas eleições possam ser realizadas. A capital, Naipidau, foi cercada por bloqueios de estradas e veículos blindados..Na maior cidade do país, Rangum (ou Yangon) a população mobilizou-se, não para protestar, mas para acorrer às caixas multibanco para levantar dinheiro (os bancos fecharam portas), enquanto a internet esteve bloqueada durante horas, numa altura em que começou a circular nas redes sociais um apelo de Aung San Suu Kyi para o povo se manifestar..Segundo os militares, o período de emergência de um ano terá como líder o chefe das Forças Armadas Min Aung Hlaing. O homem que colheu os louros pela transição do poder para os civis deveria reformar-se nos próximos meses, ao atingir os 65 anos. Em 2019 Hlaing foi alvo de sanções por parte dos Estados Unidos, por ter cometido "graves violações dos direitos humanos" pelo seu papel enquanto comandante militar, no ataque continuado à etnia rohingya, e que levou a um êxodo de mais de 700 mil pessoas do país..Repressão dos rohingyas na Birmânia tem elementos de genocídio.O golpe deixou muitas pessoas surpreendidas, inclusive especialistas naquele país do sudeste asiático. Mas as ameaças já tinham sido proferidas em público. Na quarta-feira, o chefe das Forças Armadas disse em discurso aos oficiais superiores que a constituição poderia ser revogada se as leis não estivessem a ser devidamente aplicadas. "A constituição é a legislação mãe de todas as leis. Por isso, todos temos de respeitar a constituição. Se não se seguir a lei, tal lei deve ser revogada. Se é a constituição, é necessário revogar a constituição", afirmou Min Aung Hlaing..A pressão dos militares não colheu junto da comissão nacional de eleições, que na sexta-feira rejeitou as queixas do Partido da Solidariedade e Desenvolvimento da União (PSDU), o partido ligado aos militares. Estes alegavam a existência de 8,6 milhões de irregularidades nas listas dos eleitores, e como tal não reconheciam os resultados que davam 396 lugares no parlamento à LND e apenas 33 para o PSDU. Graças à constituição de 2008, o exército goza ainda de 25% dos lugares no parlamento e do controlo de três ministérios: defesa, administração interna e fronteiras..As sirenes de alarme dispararam na sexta-feira. Nas Nações Unidas, Stéphane Dujarric, o porta-voz do secretário-geral António Guterres, disse que o português exortou todos os envolvidos a "respeitar o resultado das eleições gerais de 8 de novembro", enquanto na capital birmanesa as missões diplomáticas, entre outros, da União Europeia, dos EUA e da Austrália instavam "os militares, e todos os outros partidos do país, a aderir às normas democráticas", tendo declarado oposição "a qualquer tentativa de alterar o resultado das eleições ou impedir a transição democrática de Mianmar"..Perante o adensar das nuvens, um antigo preso político antevia a tempestade. "O programa de ação dos militares é agora muito mais claro. Por mais ilógico que pareça, o argumento do chefe militar Min Aung Hlaing pretende suavizar o golpe de revogação da constituição de 2008", comentou à Associated Press o analista político Khin Zaw Wine. "Ao fazê-lo, pretende eliminar os resultados eleitorais e o iminente governo da LND. Ao mesmo tempo, quer ganhar o apoio popular para acabar com a Constituição impopular.".Após uma década de democracia sob vigilância, o golpe militar apanhou de surpresa os analistas. "É uma surpresa porque as tensões só vieram realmente à superfície na última semana", comentou Renaud Égreteau, professor universitário em Hong Kong . "Tinha havido fricção entre a LND e o exército durante vários meses, mas só na semana passada é que se transformou num conflito aberto", disse ao Le Point..Autor de um livro sobre a transição política birmanesa, Égreteau rejeita falar em golpe de Estado: "Prefiro usar o termo golpe de força do que golpe de Estado. A constituição ainda está em vigor. É através da constituição que o exército está a interromper o processo político normal, precisamente no dia em que o novo parlamento deveria reunir-se. Mas não é um golpe de Estado enquanto tal, que aboliria as instituições existentes", diz, embora reconheça uma "escala sem precedentes" no número de detenções de políticos e ativistas..Para este analista, as detenções são a prova de que havia diferenças muito profundas sobre as conversações de paz e a reforma constitucional, uma prioridade para a LND, e à qual o exército se opõe. As motivações do golpe também deixaram outros analistas perplexos. "A tomada do poder durante um ano, tal como anunciado, isolará parceiros internacionais não chineses, prejudicará os interesses comerciais dos militares e provocará uma resistência crescente de milhões de pessoas que colocaram Suu Kyi e a LND no poder por mais um mandato", disse à BBC Gerard McCarthy, investigador na Universidade Nacional de Singapura.."Agora que assumiu o comando, é provável que o general avance rapidamente e encene uma nova votação que "vire o jogo a seu favor", comenta o analista Hervé Lemahieu, do think tank Lowy Institute. Um jogo no qual "os principais jogadores, incluindo Aung San Suu Kyi, serão impedidos de concorrer", prevê..Impedida pelos militares de receber o Prémio Nobel da Paz em 1991, bem como de sair do país para visitar o marido doente e os filhos, presa durante mais de 15 anos e bloqueada pela constituição de concorrer à presidência (por ter casado com um estrangeiro), Suu Kyi enfenta aos 75 anos mais uma provação..O seu governo foi marcado por uma relação tensa com os militares, mas durante e depois da repressão aos rohingya, em 2017, governo e forças armadas apareceram em sintonia, e inclusive Suu Kyi fez a defesa do país no Tribunal Penal Internacional. Suu Kyi e o seu governo negam as alegações de que aquele povo maioritariamente muçulmano tinha sofrido violações, execuções extrajudiciais e ataques às suas casas pelas tropas do país..De tal forma que mal se soube da prisão, os refugiados rohingya celebraram a notícia. Mas a maioria do povo birmanês vê na líder deposta a grande figura do país, ao lado do pai, um herói da libertação e da independência da Birmânia. "O povo de Mianmar continuará a apoiá-la", disse o analista político Min Zaw Oo, embora o seu futuro seja igual ao do país, ou seja,"incerto", disse à AFP..Min Aung Hlaing .O chefe das Forças Armadas comandou o golpe que interrompe a democracia parcial que os birmaneses viviam e instalou-se no topo do poder. Aos 64 anos, o general iria reformar-se dentro de meses, mas preferiu a via da força militar, a mesma que é responsável, segundo um relatório da ONU, dos crimes de genocídio e crimes contra a humanidade em relação à etnia rohingya. Aung San Suu Kyi.A estrela da líder birmanesa e Prémio Nobel da Paz em 1991 perdeu brilho fora do seu país por nada ter feito em prol dos rohingya - inclusive defendeu o país no Tribunal Internacional de Justiça -, mas manteve a popularidade intacta em casa. Aos 75 anos viu o seu partido renovar a maioria parlamentar nas eleições de novembro, mas os militares voltam a privá-la da liberdade..Independência.Aung San, o militar que, em conjunto com os britânicos, comandou os esforços da Liga Antifascista pela Liberdade do Povo em libertar a Birmânia da ocupação japonesa, chefia um governo de transição até ao seu assassínio, junto com outros seis ministros, em 1947. Após décadas sob jugo britânico, a Birmânia torna-se independente em 1948. U Nu, que fora ministro da Birmânia ocupada pelos japoneses, lidera o país, enfrentando insurreições de grupos comunistas e étnicos..Golpe militar.Em 1962, um golpe militar liderado pelo general Ne Win impõe "o caminho birmanês para o socialismo", que se traduziu na nacionalização da economia, num Estado de partido único (Partido do Programa Socialista) e consequente extinção da Liga Antifascista, e o fim da imprensa livre. Um caminho marcado pelo isolamento em relação ao mundo exterior e um empobrecimento do país..Abertura e novo fecho.A partir de 1987 o regime enfrenta manifestações, que são brutalmente reprimidas. Enquanto a junta militar muda o nome do país e da capital e declara a lei marcial, a filha de Aung San, Aung San Suu Kyi, lidera a oposição. Apesar de mantida em prisão domiciliária, o seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND), vence as eleições de 1990, um resultado ignorado pelo poder..Governo civil.Vinte anos depois, novas eleições, já sob um novo quadro constitucional, que prevê um governo civil, mas impede Suu Kyi de concorrer. O novo presidente, o ex-militar Thein Sein, alcança tréguas com grupos rebeldes e autoriza manifestações, enquanto normaliza relações com EUA e UE. Nas eleições parlamentares de 2012 Suu Kyi (que nas duas décadas anteriores passou 15 anos presas) é eleita deputada..Suu Kyi lidera.Em 2015, a LND obtém maioria parlamentar para formar governo e Suu Kyi assume a sua chefia, mas a sua aura é manchada pela violência sectária contra os rohingya. O mandato é renovado nas urnas, mas militares não aceitam o resultado.