Na tomada de posse de Jair Bolsonaro, no dia 1 de janeiro, em Brasília, sempre que um dos (muitos) repórteres da TV Globo, líder absoluta de audiências, ou da Globo News, o seu braço exclusivamente noticioso, se aproximava da área reservada ao público ouvia gritos do outro lado "WhatsApp, WhatsApp, WhatsApp!". No terreno, a guerra já está em marcha..Aliás, começou logo na pré-campanha, no início do ano passado, quando o "povo bolsonarista" preferiu informar-se pelo aplicativo de telemóvel, muitas vezes via fake news, a consumir os media tradicionais, que acusava de perseguição ao seu candidato..Mas no topo da hierarquia a guerra está a começar só agora. E dada a força do grupo de comunicação e o poder intrínseco de qualquer governo chamam-lhe já "a terceira guerra mundial". A presidência da República usa as suas armas: projetos de lei e cortes de verbas. A Globo responde com ataques, mais e menos subtis, de estrelas da estação..No fogo cruzado, Bolsonaro disparou o último e mais ruidoso tiro: preparou um projeto de lei que prevê a proibição da "bonificação por volume", um instrumento que inclina o tabuleiro publicitário para o lado da líder de audiências, segundo os seus concorrentes. O projeto, que será apresentado pelo deputado do PSL Alexandre Frota, logo que se reiniciem os trabalhos parlamentares, foi elaborado com a ajuda de integrantes de agências de publicidade e de executivos de todas as emissoras, excetuando, claro, a Globo..A "bonificação por volume", criada, como explica o jornal Folha de S. Paulo, nos anos 60 do século passado, consiste no pagamento de determinadas quantias, por parte das televisões, às agências de publicidade para que estas as escolham como veículo de divulgação das campanhas dos anunciantes. Mais rica e poderosa - é o segundo grupo comercial do mundo, atrás apenas da norte-americana ABC -, a Globo ganha, invariavelmente, esse leilão.."A 'bonificação por volume' tem de deixar de existir, eu aprendi há pouco o que é isso e fiquei assustado", disse Bolsonaro..Por outro lado, sob o argumento de que o grupo liderado pela família Marinho concentra metade do bolo publicitário estatal mas só tem, hoje em dia, um pouco mais de um terço da audiência, o Palácio do Planalto quer cortar verbas publicitárias governamentais destinadas à estação. Uma promessa, aliás, feita pelo presidente ainda em campanha, incluindo na lista de proscritos, além da Globo, o jornal Folha de S. Paulo e outros veículos do grupo Folha que considera hostis..Comunicação direta e entrevistas à concorrência.Finalmente, Bolsonaro, apesar de preferir a "comunicação direta" para dialogar com os seus apoiantes em campanha e com os brasileiros em geral depois de eleito - na sua primeira semana de governo usou o Twitter quase o dobro das vezes do seu homólogo norte-americano e referência política Donald Trump -, vem optando por conceder entrevistas às concorrentes da Globo..Ainda durante a campanha eleitoral, ficou célebre a conversa com jornalistas da Record, cujo dono, o bispo Edir Macedo, lhe endossou apoio, à mesma hora em que decorria um debate com os outros candidatos... na Globo. Já eleito, deu duas entrevistas ao especialista em crime da TV Bandeirantes e, depois da posse, escolheu o SBT para falar, um canal onde já participara, ao vivo por telefone, num programa de solidariedade..E qual é a origem dos ataques à Globo? A maioria dos observadores de imprensa considera desproporcional a hostilidade de Bolsonaro e seus apoiantes - quando foi entrevistado pela dupla de apresentadores do noticiário mais influente do país, o Jornal Nacional, o tom, por tradição agressivo, dos entrevistadores não destoou do usado com os outros candidatos..O jornal digital Brasil247, conotado com o PT, queixou-se desse mesmo tom: "A entrevista a Fernando Haddad foi em atitude de interrogatório muito longe do equilíbrio e isenção jornalísticas.".Aliás, o histórico da emissora é de confronto com o maior "inimigo" do atual presidente, precisamente o PT, cujos militantes repetem sempre que podem o slogan "abaixo a Globo, o povo não é bobo", além de recordarem um infame debate entre Lula da Silva e Collor de Mello, antes das eleições de 1989, assumidamente editado pela televisão dos Marinho para prejudicar o então sindicalista..Ainda assim, há quem considere que a Globo se sentiria, de facto, mais confortável se a presidência do Brasil fosse ocupada por alguém do eixo tradicional do poder, ou seja, PSDB, MDB e até PT, do que por um outsider imprevisível, como Bolsonaro. Por outro lado, a estação optou por ser liberal no campo dos costumes, como provam os beijos gay e outros temas "fraturantes" abordados na sua ficção, por contraste com a vice-líder de audiências Record, ligada à IURD, que aposta em telenovelas bíblicas e que, por isso, está mais sintonizada com a proposta de Bolsonaro..A maior parte dos artistas vinculados à Globo - Regina Duarte é uma raríssima exceção - participou na campanha #elenão, contra Bolsonaro, e apoiou candidatos à esquerda, como Haddad, Marina Silva, Ciro Gomes ou Guilherme Boulos..Vieram dos rostos mais conhecidos da Globo, a propósito, as retaliações às referidas iniciativas do Palácio do Planalto. Instantes após a controversa declaração da ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, de que "menino vai voltar a vestir azul e menina rosa", o apresentador Luciano Huck, que chegou a ser pré-candidato presidencial, e a sua mulher e também estrela da Globo Angélica publicaram uma fotografia nas redes sociais, ele de rosa, ela de azul..Fausto Silva, responsável pelo Domingão do Faustão, falava de política no seu programa quando soltou a frase "aquele imbecil que está lá", entendida como crítica a Bolsonaro. Dada a controvérsia gerada, o apresentador sublinhou que em nenhum momento citou o nome do presidente..A forma como a TV Globo tratou dois escândalos da gestão Bolsonaro, entretanto, suscitou interpretações de que a emissora está a preparar-se para um contra-ataque pela via jornalística. O colunista do jornal O Globo e da Globo News Merval Pereira, considerado próximo da família Marinho, usou as redes sociais para considerar "ainda mais grave do que parece" o "bolsonarogate", escândalo de suposto desvio de verbas de assessores de Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente, para o motorista e amigo pessoal da família.."O Supremo proíbe a contratação de parentes de funcionários públicos e, no caso, há o motorista, a mulher dele, as duas filhas, o ex-marido da mulher e a filha dele, muitos sem prestarem qualquer serviço", escreveu. E acrescentou: "E se completa com a indisfarçável cumplicidade do futuro presidente, ao contratar uma das filhas, exonerada ao mesmo tempo que o motorista, quando o escândalo veio à tona, numa provável tentativa de encobrimento.".Renato Rovai, colunista da revista Fórum, achou, entretanto, branda a cobertura dada pela Globo ao caso do filho do vice-presidente Hamilton Mourão promovido no Banco do Brasil e para ganhar o triplo nos dias seguintes à posse - leu, no Jornal Nacional, a nota na íntegra de Mourão. "A Globo pode estar vendo mais longe do que os brasileiros mortais e apostando no mercado futuro: Mourão pode ser o investimento para o que ela imagina ser uma possível derrocada rápida de Bolsonaro", escreveu Rovai, indo ao encontro de declarações de amigos do atual "vice", que o veem capaz de assumir o governo mesmo antes do fim da legislatura.