Gil y Gil: documentário sobre o presidente que deu um Porsche amarelo a Futre

Vai estrear em Portugal o documentário <em>O Pioneiro</em>. Uma minissérie que escrutina a mitologia do polémico empresário Gil y Gil, político e dirigente desportivo que levou Paulo Futre para os colchoneros.
Publicado a
Atualizado a

"Vejo um homem enorme, forte e cheio de ouro ao pescoço." Assim descreve Paulo Futre a figura de Jesús Gil y Gil, que no ano de 1987 surgia diante dos seus olhos, com duas horas de pré-aviso, num hotel em Milão. O então extremo-esquerdo do Porto, que era o recente campeão europeu, andava em reuniões, acompanhado por Pinto da Costa, para negociar com as grandes equipas. Uma delas, o Inter de Milão: "Fomos jantar a casa do Pellegrini, o presidente do Inter, que naquela altura era uma equipa top, e chegámos a acordo. Saí de lá às duas da manhã como jogador do Inter... No dia seguinte, quando carrego no botão do elevador para ir dormir a sesta depois do almoço, aparece-me o Pinto da Costa a dizer "vem aí um homem que é candidato à presidência do Atlético de Madrid e vai fazer-nos uma proposta tremenda."" O que não se esperava era a receção picaresca que Futre relata: "Quando ele vem, olha para os meus chinelos - eu estava de fato de treino e chinelos do Porto, que tinham o meu nome escrito - e diz "então tu é que és o Futre"... Veja-se o que ele sabia de futebol! Foi assim o nosso primeiro encontro. O primeiro de 17 anos de amor e ódio."

A história da ida de Paulo Futre para os colchoneros é uma das mais emblemáticas do trajeto rocambolesco de Gil y Gil. E como tal, a minissérie O Pioneiro, que estreou ontem na HBO Espanha, dá-lhe a devida importância, somando a depoimentos do próprio Futre arquivos da RTP em que vemos o futuro presidente do Atlético de Madrid a contar como se meteu num avião privado para ir ter ao hotel em Milão onde assinaria um contrato milionário com o "verdadeiro craque de 21 anos" (impossível não comparar com a atualíssima transferência mais cara do futebol em Portugal, a de João Félix, precisamente para o Atlético...). Como diz um dos três filhos de Jesús Gil, que participam no documentário, terá sido essa contratação audaciosa - a qual quebrou todos os protocolos e procedimentos comuns - que fez com que Espanha se apaixonasse pelo seu pai. Era uma forma de populismo.

No primeiro episódio (que chega à HBO Portugal no dia 14), há quem diga que o que movia Gil y Gil era, muito mais do que o espírito de adepto, o de empresário. Algo com que Futre, na conversa com o DN, diz não concordar muito: "Era uma pessoa que não tinha paciência nenhuma, nem perante os media, nem com os resultados da equipa. Depois de uma segunda derrota mandava logo o treinador para a rua! Era um defeito terrível, que não dava estabilidade... Faltou-lhe essa virtude da paciência que têm os grandes presidentes, como o Pinto da Costa, que não vão atrás dos assobios dos adeptos. Aliás, ele comportava-se como um adepto! Incutia uma grande pressão à equipa. Estava sempre a dizer "vamos ganhar isto, vamos ganhar aquilo". Para ele, depois de um jogo menos bom em setembro já estava o caldo entornado. Ora ninguém é campeão em setembro..."

Numa coisa todas as vozes se unem: Jesús Gil nasceu para ganhar. E a prova disso é que a candidatura à presidência do Atlético de Madrid foi a oportunidade perfeita para restabelecer e reinventar a sua persona mediática, na altura ainda maculada com uma grande tragédia ligada ao seu passado de promotor imobiliário, na era franquista - o colapso, em 1969, de um restaurante cujo projeto não fora licenciado, causando 58 mortes. Condenado a cinco anos de cadeia, em 1971, Gil y Gil foi preso em Segóvia, mas as suas boas relações com os guardas e outros presos, para além da mãe que intercedeu por ele, reduziu-lhe a pena para um ano. Tinha conseguido o perdão de Franco.

Vender a felicidade em barras de ouro

Foi sempre desta maneira desembaraçada e controversa que o vimos vingar, ainda mais como mayor de Marbella, cidade que reabilitou através de construções de luxo, com muita obscuridade financeira e jurídica pelo meio, tornando-a uma espécie de nova Montecarlo... De facto, a maior iluminação de Jesús Gil foi ter percebido que combinar futebol ("o ópio do povo") e política dá um cocktail explosivo. E se fosse acompanhado de uma dose avultada de atenção mediática, sobretudo televisiva, então não havia constrangimentos legais que lhe fizessem frente. Eis o golpe de génio do pioneiro, também chamado de "visionário".

Daí que o aspeto da sua amoralidade, sublinhada por alguns dos entrevistados para a série, seja algo que deixa marcas em quem esteve mais perto dele e das suas ações, como é o caso de Futre: "Tínhamos guerras muito fortes a nível de imprensa por ele atacar publicamente algum dos meus companheiros ou o treinador, que eu fazia questão de defender. Eu não achava bem que as críticas de balneário saíssem para os media... Mesmo nas vitórias ele às vezes não ficava contente, dava-lhe para mandar alguém para a rua ou dizer que não pagava a quem não tivesse dado tudo no campo."

Esta é a autêntica figura de Hollywood, plena de desfaçatez e extravagância, que alimenta os quatro episódios de O Pioneiro, assinados por Enric Bach e Justin Webster. Aqui escrutina-se a personalidade e sua mitologia, quer por via de depoimentos de familiares, pessoas próximas ou jornalistas, quer através de materiais de arquivo que deixam vislumbrar o carisma daquele que usava a riqueza para sugerir a capacidade de fazer as coisas acontecerem. Para as massas que o seguiam, a sua monumental ambição era sinónimo imediato de felicidade. Um pouco como se o sonho americano tivesse uma versão espanhola.

Para Futre, começou por ser esse fascínio das mãos largas de Gil y Gil que definiu a relação fraternal entre o presidente e o jogador - o famoso Porsche amarelo será o traço emblemático desses primeiros tempos. À medida que a realidade se abateu sobre eles, ao longo do tempo, criou as suas nuances: "Havia alturas em que não nos falávamos de todo, mas chegava ao Natal e acabávamos sempre por ligar um ao outro - ou eu a ele ou ele a mim. Conseguíamos separar os problemas profissionais da vida pessoal. Quando eu saí do clube, como diretor desportivo, saí muito mal com ele. Já levávamos uma guerra de um ano e tal... Quando a equipa perdia, ligava para mim a insultar-me. Portanto, saí em 2003. Ele morre em 2004 e não tínhamos feito as pazes", conta.

Esta memória deixa Futre particularmente emocionado: "Na véspera de ele falecer liga-me o médico do clube a dizer "Paulo, venha para Madrid, ele vai apagar-se." Arranquei logo. Quando cheguei, às sete ou oito da manhã, fui dormir um pouco e segui logo para o hospital... Veja-se o destino: quando o elevador pára no andar, nesse mesmo momento estão em frente à porta do elevador o médico com os familiares dele a receberem a notícia fatal. A imprensa escreveu depois que estava à minha espera para se apagar. Ao longo destes 15 anos, tenho sentido muitas vezes saudades dele."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt