No convento de Santa Catarina, a torcer por Ronaldo

Gargalhadas, aplausos, comentários incisivos, muitos nervos. Houve cornetas e pipocas. Recorreu-se a Nossa Senhora e a Irmã Rosinha, 89 anos, serviu de amuleto. Foi o Uruguai-Portugal no convento das Dominicanas de Santa Catarina de Sena, num dia mau para Portugal. Mas nem a derrota alterou a palavra que melhor descreve estas freiras: alegria
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Duas horas depois de o Papa Francisco ver a sua Argentina sair de cena no Mundial 2018 [derrota por 4-3 com a França], a Irmã Nélia contorce-se no sofá amarelo torrado, à nossa frente. Do sul de Moçambique (Gaza), tem 28 anos, fez parte da seleção regional de andebol e jogou futebol na equipa da escola. É, portanto, uma entendida. Vive em Portugal há um ano. Escolheu a vida religiosa porque "é uma coisa muito bonita". Tudo começou pela mão da avó, com as visitas ao convento das Irmãs dominicanas. "Gostava muito de brincar nos jardins", conta mas já com o pensamento em Sochi, na Rússia.

Na quinta da Infanta, ou Palácio Devisme, em Lisboa, sede da Curia Geral e do Secretariado das Dominicanas de Santa Catarina de Sena, Congregação Religiosa apostólica, feminina, fundada por Teresa de Saldanha (1837-1916), no século XIX, rezaram-se as Vésperas (agradecimento a Deus por todas as graças recebidas e o bem feito nesse dia) mais cedo que o habitual. Por causa, claro, do Uruguai- Portugal.

Nossa Senhora ao centro

No salão do primeiro andar, juntam-se à Irmã Nélia a Irmã Rita Maria, Superiora Geral da Congregação, a Irmã Teresa, secretária-geral, a Irmã Rosa Catarina, Madre Superiora da Casa, a Irmã Alice, a Irmã Amélia, peruana, as Irmãs Rosilene e Cecília, brasileiras, as Irmãs Ediana e Aurélia, estudantes timorenses, a Irmã Arta, albanesa, também estudante. E as decanas, a Irmã Alda, 87 anos e a Irmã Beatriz, 82. Falta apenas a irmã Rosa, de 89 anos. "A Rosinha" está cuidar do jardim.

As equipas entram em campo. "O equipamento branco não dá sorte", é a primeira sentença da Irmã Rosilene, satisfeita com o resultado da tarde, a vitória da França sobre a Argentina, eterna rival do Brasil. "Ai que bom", resume, apesar de imaginar a tristeza do Papa Francisco. A Irmã Arta traz as pipocas, segundos antes do hino. Cumprindo um pedido de Fernando Santos, a Portuguesa canta-se de mãos dadas.

Aos dois minutos, o primeiro remate de Portugal. Bernardo Silva cabeceia mas a bola vai alta. Aos seis, Cristiano Ronaldo dispara forte, de fora de área, mas Muslera defende. A irmã Nélia revolve-se no sofá tentando, em vão, controlar a ansiedade.

O primeiro silêncio é quebrado pela Superiora Geral: "Eles (Uruguai) jogam bem, não jogam? Têm muita velocidade". Concordou-se. De tal maneira que um minuto depois fazem um golo. Nélia salta do sofá. "Como foi isto?", grita. Sai da sala com ímpeto. Retorna, segundos depois, com a imagem de Senhora de Fátima, que coloca na mesa de centro, virada de frente para o televisor, lado a lado com uma bandeirinha de Portugal. Nélia não resistiu, as Irmãs sorriem com benevolência.

"Deixe, daqui a pouco marcamos nós", anima a Irmã Rosilene. Tem 51 anos, irradia energia e boa disposição. Nasceu em Limeiras, São Paulo. Aluna do colégio das dominicanas no Brasil decidiu experimentar a vida em convento, motivada por esse contacto. Ficou convencida. Tinha 18 anos quando decidiu seguir o caminho da Igreja. Depois do mestrado em psicologia, achou por bem fazer o doutoramento na Europa. Escolheu Portugal. Veio por um ano. Já lá vão 16.

A irmã Rita Maria, Superiora Geral, reforça o otimismo da irmã brasileira: "Pensamento positivo, Irmã Nélia". "Sim, sim ", responde a moçambicana, "mas o William não pode subir tanto porque depois não consegue recuperar", ideia que repetiu várias vezes.

A Superiora Geral, sportinguista convicta, anui. Gosta de William mas, sobretudo, de Cristiano Ronaldo. Porquê? Porque "é um artista", porque "os anos passam e ele continua a jogar futebol com entusiasmo", porque "faz o bem em silêncio".

A corneta

O Uruguai a vencer. Mas para a irmã Rosilene "quem tem um não tem nenhum". "Não", contrapõe a Superiora," quem tem um tem um, quem tem nenhum é quem tem nenhum". O grupo ri do reparo da Irmã Rita Maria, "Árbitro Principal' da congregação, na definição da Irmã Rosilene.

Fixada no jogo, cada vez mais encolhida no sofá, a irmã Nélia insiste: "Porque não chutam?" Atira, em desalento: "Vamos perder." Rosilene não gostou: "Vira essa boca para lá."

A Irmã Teresa, angolana de Lobito, herdeira da fé inabalável da mãe, atraída para a missão "pela alegria das dominicanas e pelo seu jeito de rezarem", e secretária-geral da congregação, sorri com a resposta da Irmã brasileira.

Aos 20', José Fonte derruba Suárez à entrada da área. Livre perigoso contra Portugal. "Não vai entrar, é de muito longe", diz Nélia. Porém, não vá estar errada, tapa a cara com a almofada. A defesa de Rui Patrício, reanima a moçambicana que decide: "Ainda não perdemos, vamos comer pipoca." Porém, deixa claro: "(Eles) têm uma defesa e um ataque muito bons". "E são muito velozes", especifica a Superiora Geral.

Aos 25' Godín derruba Bernardo Silva e Portugal tem a seu favor um livre perigoso. A decisão do arbitro é recebida com um grande aplauso. Ronaldo, de coxas à mostra, saca uma gargalhada geral à audiência. Depois, ouve-se o primeiro pronunciamento de Alda, a Irmã de 87 anos: "Oh Oh, ainda não foi desta. Queremos um golo."

Pouco depois, em novo livre, Cristiano Ronaldo acerta com força na barreira: "Nossa senhora esqueceu de puxar", conclui Rosilene. "Eles defendem bem. Não vamos ter corneta", diz a Superiora Geral. A corneta está nas mãos de Rosilene. Que tem, também, uma bandeira de Portugal sobre os joelhos.

A superiora e a posse de bola

Intervalo e novo pronunciamento de Nélia: "Se não marcarmos nos primeiros 15 minutos não vai correr bem." A Superiora Geral surpreende: "Quem tem mais posse de bola?". Todas riem. "O melhor do mundo não pode perder a cabeça", diz a Rosilene. "A equipa precisa de um tónico" aconselha a irmã Rosa Catarina, especificando melhor, não vá haver má interpretação das suas palavras: "Um sumo Compal."

Enquanto a irmã Rosilene dá "Graças a Deus pelo Brasil já não ter de jogar com a Alemanha", a Irmã Arta conta que num jogo do Belenenses contra o seu Benfica, a páginas tantas começou a torcer pelo Belenenses, "por ser mais fraquinho".

Nisto, alguém repara: estão presentes na sala 13 irmãs. O grupo fica dividido entre o facto dar sorte ou não dar sorte.

Treze ao jogo

"Vamos buscar a Irmã Rosinha ao jardim", decide a Superiora Geral. Arta fica incumbida da missão. Nasceu no norte de Albânia, uma de três irmãs. Tem 37 anos, não parece ter sequer 30. É a primeira albanesa da congregação. Batizou-se aos 20 anos.

Chega a Irmã Rosinha e ouve-se "agora é que vai ser". Foi. Dois minutos depois, golo de Portugal. A sala explode em alegria, a corneta de Rosilene faz-se finalmente ouvir. Naturalmente, atribui-se o golo à irmã recém-chegada e canta-se em coro: "Rosinha, Rosinha, Rosinha."

Arta continua a sua história: Na Albânia, rezava junto a uma árvore, marco de que houvera ali uma igreja. A família combateu a vocação, primeiro da irmã, depois dela. Tinham vergonha de uma filha religiosa. Porém, "Deus insistiu" e o pai cedeu. Se não tivesse cedido? "Obedecia e casava-me, como fez a minha mana".

Chega o golo do Uruguai. "Um golaço, temos de reconhecer", diz Rosilene. Nélia está em silêncio. "Há milagres", conforta uma da irmãs. "Corações ao alto" anima a Superiora Geral.

Nasceu em Alcobaça, tem 71 anos, 51 de hábito. Para a Irmã Rita Maria "a vida religiosa continua a ser um mistério". Apaixonou-se cedo pela alegria das dominicanas. "Via-as muito felizes". Vacilou "algumas vezes", não nega, mas o gosto "pela vida fraterna, pela liturgia, por estar ao serviço de todos" prevaleceu. "Estou feliz. Nunca me arrependi". Lembra:"A Madre fundadora era muito alegre, temos de reconhecer."

Madre Teresa de Saldanha, (4 de setembro de 1837 - 8 de janeiro de 1916), foi a primeira mulher fundadora, em Portugal, após a extinção das Ordens Religiosas, em 1834. Aristocrata de nascimento, dedicou grande parte da vida à educação de crianças e jovens, numa obra pedagógica a frente do seu tempo e onde não cabiam castigos corporais.

O netinho de Fernando Santos

Na sala, as irmãs timorenses, também as primeiras da Congregação, estão em silêncio, sentadas ao lado da brasileira Cecília que, ao contrário da compatriota, não abriu a boca durante o jogo, nem tirou os olhos da televisão. Apenas para referir, a pedido da Superiora, que a creche que dirige tem 34 bebés.

Sai Adrien, entra Quaresma. Portugal ao ataque, sem resultados. "Quaresma traz a Páscoa", diz Rosilene.

Finalmente, a irmã Rosinha faz-se ouvir: "Fernando Santos está aborrecido e tem razão. Muitas oportunidades que não entram." A Superiora concorda e completa: "Levou o netinho contando lá ficar mais tempo. Que pena." De Novo Rosinha: " Pois. Hoje, o Ronaldo não tem mira."

Nélia está em silêncio. "Vou dizer o quê?".

"Irmã Rosinha, não quer sair e voltar a entrar?", desafia Arta. "Talvez volte a dar sorte". A Irmã Rosinha não vai nisso.

A Irmã Teresa, anima o grupo. Na t´shirt branca pode ler-se "fazer o bem sempre". Amélia, a irmã peruana, merece de todas um 'Viva a América Latina'. Solta-se uma gargalhada.

As 14 mulheres, têm como protetora Santa Catarina de Sena, nascida Caterina Benincasa em 1347. Filósofa escolástica e teóloga do século XIV foi, segundo a própria, "uma criança muito feliz". De tal maneira que recebeu da família o apelido carinhoso de "Eufrosina", deriva da palavra grega para "alegria". Alegria é a palavra que melhor descreve estas dominicanas.

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