"Fui obrigado a refletir sobre a deceção de um pai em relação ao filho"

O até há pouco desconhecido autor francês Laurent Petitmangin enviou ao editor da La Manufacture de Livres dois originais. O primeiro a ser publicado transformou-se num sucesso inesperado, tendo recebido o Prémio Stanislas para o melhor romance de estreia, entre outros galardões, e destacou-o como um dos melhores romances da rentrée literária de 2020. A história da relação de um pai e de um filho seduziu os leitores de uma forma impiedosa. Outras novidades: William Dalrymple, Arthur Koestler e história do 25 de Abril.
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Quando a Noite Cai é o romance mais inesperado entre os mais recentes lançamentos literários deste ano em Portugal. O autor, Laurent Petitmangin, era um desconhecido até há bem pouco tempo. Publicado aos 55 anos, este foi o seu primeiro livro e surpreendeu os leitores franceses pelo tema. Entretanto, o segundo dos quatro romances que guardava já deu continuação ao sucesso literário. O primeiro livro publicado poderia até ter sido outro dos que guardava no baú, pois ao ter enviado ao seu futuro editor dois livros em simultâneo, colocou-o perante a necessidade de uma escolha. Ao ler Quando a Noite Cai, o editor decidiu começar por esse a tarefa de desvendar um novo escritor e de tão entusiasmado só demorou dois dias a convidá-lo para ser um dos seus autores.

Petitmangin confessa nesta entrevista dada recentemente em Lisboa que não esperava que, após enviar numa quarta-feira o original, recebesse dois dias depois o telefonema desejado.

O romance não é extenso, podendo caracterizar-se melhor como uma novela, mas essa brevidade de 159 páginas deve-se a uma particularidade do autor: "Gosto de concluir a história rapidamente, mesmo que haja autores que escrevem livros muito grandes magníficos." O romance tem um cenário da atual política francesa bem presente, que as recentes eleições presidenciais francesas permitem enquadrar a história com um outro conhecimento da realidade. Quando se lhe pergunta se pretendeu deixar a fotografia de uma França desesperada, responde: "Não desesperada, mas de um país que duvida. O personagem do pai sim, ele está desesperado, mas nem todos os franceses o estão. Pode-se dizer que os outros personagens estão mais sem esperança face ao atual estado das suas vidas."

Não é o foco político o principal, porque trata-se principalmente de uma história sobre um pai e um filho, o que torna impossível não questionar até que ponto é autobiográfico. O autor descarta qualquer paralelismo: "Felizmente, não. Se assim fosse, seria grave para mim. Os únicos elementos autobiográficos que utilizo é a minha descendência de funcionários dos caminhos de ferro franceses." O que também prende o leitor é a impossibilidade de descortinar um fim previsível para a história, nada que não tenha também acontecido a Petitmangin: "Quando comecei o livro não sabia como o iria terminar. Sabia que existia um caminho a percorrer e, mesmo a um terço do final, ainda desconhecia como o fechar. Só encontrei o fim já muito perto das últimas páginas."

É um primeiro livro e há uma questão que se deve colocar: por que só se estreia aos 55 anos?
A resposta é simples, comecei a escrever muito tarde, há uns doze anos, influenciado por um colega que também escrevia. Ele fez uma edição de autor de um seu livro, li-o, gostei, e senti vontade de lançar o meu. Ele encorajou-me a escrever mais e foi então que me dediquei à quarta tentativa de fazer um livro.

À quarta tentativa sentia-se mais capaz?
Não, era antes uma sensação de ser muito mais exigente com a escrita. Cortei muitos parágrafos, que me agradavam bastante, mas sentia que eram desnecessários ao livro. Não eram fáceis estes cortes, mas dizia para mim que eram indispensáveis porque nada acrescentavam à história. Isto só acontece quando se tem mais experiência e quando algo já nos diz que eliminar certas frases não é tão grave como nas primeiras tentativas. No início tudo é precioso e importante, depois mudamos de opinião, e esta realidade foi a primeira a influenciar a quarta narrativa. Aquela em que fui capaz de fazer escolhas e marcar a diferença.

O seu editor leu os livros que lhe enviou, o que nem sempre é uma situação habitual - ao contrário do que deveria ser - para quem publica...
É verdade, pelo que sei. Este editor é muito profissional e não deixa para outros o exame aos livros que publica. Ele lê os manuscritos e fá-lo de uma forma muito especial: sentado num café em vez de no seu escritório. Se o barulho à volta não o distrai e o livro lhe prende a concentração, então decide publicar. Ele leu os dois livros que enviei deste modo, tendo optado pelo quarto em primeiro lugar, a que se seguiu a publicação do terceiro.

Após o sucesso destes dois livros não desistiu do seu emprego na Air France. O que se passa?
A principal razão é que eu gosto do que faço. Trabalho nesta companhia há mais de trinta anos e não pretendo desligar-me. Como escrevo muito depressa, o emprego não me atrapalha. É claro que depois a revisão leva-me muito mais tempo.

A rentrée literária francesa é gigantesca. Como é que o seu livro se destacou entre as centenas de novos romances?
Houve um conjunto de fatores que beneficiaram o livro. O primeiro foi o da desistência de um escritor da minha editora em publicar o seu livro e ter ficado com o seu lugar. Em seguida, o livro recebeu o Prémio Stanislas para o melhor romance de estreia na rentrée literária e essa situação ajudou também a dar-lhe uma razoável visibilidade. Seguiu-se uma espiral de acontecimentos muito positiva que facilitaram a divulgação de Quando a Noite Cai. Se não tivesse existido este percurso, tudo poderia ter sido diferente, daí que considere que a sorte me tenha ajudado muito. O que é curioso porque o livro suporta-se em muitos azares e o que lhe aconteceu foi exatamente o contrário.

A história também tem muita política. Esse tema atraiu os leitores franceses?
Creio que em França o livro não foi lido sobre esse prisma, antes pelo da vida de um pai e do seu filho. O aspeto político foi tido em conta claro, mas menos do que a situação da relação. Pelo menos é o que me apercebo quando falo com os leitores, que referem a situação atual dos pais, como a de se sentirem ligados a esses problemas que surgem no livro, o que faz com que a questão política consiga não ser a parte mais importante. Até a localização regional da história os interessa em muito.

A ação decorre na Lorraine, onde nasceu. Foi por essa razão que localizou aí?
Sim e não. Eu comecei a escrever e logo na primeira cena do livro escolhi a região da Lorraine quase por acaso. Dava-me jeito para o queria a nível geográfico e não foi uma decisão pensada de forma demorada. O facto de se situar nessa parte de França em vez de em Paris agradou muito aos leitores porque veem retratados outros dos seus problemas.

A relação entre um pai e um filho não lhe exigiu muita investigação?
É verdade, afinal tenho quatro filhos, felizmente não existem entre nós as dificuldades de relação como se verifica no caso das personagens do livro. No entanto, o início obrigou-me a refletir sobre a deceção dos pais em relação aos filhos, o que imaginam para eles, bem como os sucessos que não tiveram e são projetados na descendência. Muitas vezes o que os pais desejam tem a ver com o seu próprio ego e resulta das frustrações das suas vidas, daí que tenha tentado escrever sobre esses sentimentos e perguntado até onde é que essa projeção pode ir.

Cria um pai que é um anti-herói. Foi difícil para si essa definição de uma personagem enquanto pai também?
Não, pelo contrário. Quando penso nos dois livros já publicados - e o próximo -, deparo-me com a circunstância de ter vários anti-heróis. São homens que tiveram em determinado momento uma atividade importante e que a passagem de tempo lhes diminui essa realidade. Com a minha idade, compreendo a frustração de quem foi incapaz de fazer o que sonhava, o de serem menos combativos e menos presentes do que antes, e essa temática interessa-me bastante.

Essa falta de esperança deve-se a quê?
São várias as razões, podendo escolher-se como primeira a situação profissional. As pessoas não têm a mesma garra que aos vinte anos, também por se confrontarem com o fim de um mundo que já foi mais claro, bem como por agora existirem vários níveis de referência paternal que se extremam e onde não há lugar para situações intermédias. É como na política, com o presidente Macron que não está suficientemente à esquerda e não é progressista da forma que se deseja, o que deixa as pessoas divididas. Quando veem os filhos atraídos pela ideologia da extrema-direita, os pais, que viveram outros tempos políticos, ficam desorientados.

A desilusão política está num grau muito elevado em França atualmente?
Sim, pode dizer-se que a política deixou de funcionar em França. Ou seja, o entusiasmo anterior deixou de existir e a forma de fazer política tornou-se menos evidente. Existe uma atitude que não exige questionamentos e sim uma integração em certas ideologias. Creio, contudo, que os jovens estão prestes a encontrar uma solução para o futuro - até lá parecem estar perdidos.

Não será por acaso que Mélenchon atraiu o voto mais jovem?
Foi o que se viu nas presidenciais. Com todos os seus excessos, traz uma visão que ultrapassa o facilitismo e é o mais exigente no posicionamento político. Se tem uma proposta realista, esse é outro debate. O que ele quer é uma exigência positiva e não repetir o mesmo discurso sobre a imigração ou o véu, que se vá mais além. Já o discurso de Marine Le Pen foi sobre questões imediatas, que chocam com algumas ideias de esquerda no caso do aumento dos salários, no entanto não geram uma perspetiva futura para uma sociedade feliz ou solidária. Voltando a Macron, este faz uma gestão do país como se fosse uma grande empresa...

O leitor jovem foi seduzido por este livro?
Sim, até porque se identificam com muito do que se passa no livro. A forma de ser do pai fez com que os estudantes reagissem à narrativa, o que também se passou com os presos que o leram nas cadeias. Estes, aliás, fazem de imediato um julgamento sobre as atitudes do pai face ao desenrolar dos acontecimentos.

Esta é principalmente a história de um pai e de um filho. Onde fica salvaguardado o interesse da maior parte dos leitores, as mulheres, neste livro?
O meu editor colocou a mesma questão e disse-me, após ter pensado nessa situação, que poderia ser do interesse das mulheres também. O que se verificou, pois em grande parte das sessões são as leitoras que valorizam a questão da relação entre pai e filho ao considerarem que, felizmente, por uma vez eu coloco os pais na equação e era seu desejo conhecerem como é que é a relação entre um pai e um filho.

Utiliza uma linguagem muito própria da região onde o livro se situa. Foi fácil reproduzir a Lorraine nesse aspeto?
Sim, mesmo que não tenha forçado essa presença de uma linguagem mais regional para evitar uma caricatura. Existem palavras que são próprias da Lorraine, mas utilizo apenas as indispensáveis para não se sentir o contrário, o de ser uma narrativa desapegada da restante realidade francesa.

Paris é na maior parte das vezes o cenário da literatura produzida em França. O que o fez evitar essa centralidade da capital?
Existem cada vez mais exemplos de livros que se passam fora da capital. No caso deste meu livro, eu precisava de o situar numa região menos fluida do que é a vida de Paris ou teria de convocar outros assuntos que não me interessavam. Ao usar a Lorraine, pude seguir outro caminho, aquele que eu desejava.

Quando a Noite Cai
Laurent Petitmangin
Bertrand Editora
159 páginas

Outras novidades:

A edição nacional continua a prestar um bom serviço à História e entre os mais recentes lançamentos está um trio de livros que, cada um na sua época, permitem observar como tem sido a realidade do mundo nos últimos 140 anos - principalmente em tempo de uma inesperada guerra em plena Europa - e de como os conflitos entre os mais e menos fortes interrompem a modorra dos tempos e nos surpreendem pela sua violência.

Humilhação britânica

A investigação sobre a batalha pelo Afeganistão relatada por William Dalrymple em O Regresso de um Rei leva-nos à primavera de 1839, quando a Inglaterra invade pela primeira vez aquele país. O autor é um repetente na história britânica, designadamente nos grandes momentos do seu império, e desta vez faz uma impressionante descrição de como um exército europeu tentou submeter o Afeganistão. São vinte mil os soldados que invadem o país e tentam durante dois anos sair vitoriosos. Não é o que acontece, pois o Afeganistão rebela-se - como voltará a acontecer com as invasões soviética e americana - e dá significado à palavra jihad, transformando a conquista inglesa numa pesada derrota. Para Dalrymple é mesmo a "maior humilhação militar britânica do século XX". A descrição exaustiva e detalhada desta guerra é preciosa para compreender o mundo atual, que observa a situação na Ucrânia ao minuto, e poder perceber como as lições da História não são frequentemente levadas em conta.

O Regresso de um Rei

William Dalrymple

Editora D. Quixote

639 páginas

As purgas estalinistas

Mais uma vez, em tempo de invasão russa, a história da União Soviética surge sob o olhar da ficção e Arthur Koestler faz em Eclipse do Sol um retrato perturbador sobre as purgas estalinistas nos finais da década de 1930. Este romance é considerado a sua obra-prima e foi escrita a quente perante os acontecimentos da história que mudaram o curso da revolução soviética. A história é simples de sintetizar, mesmo que sejam necessárias mais de duzentas e cinquenta páginas para a contar: Rubachov, um velho revolucionário, é preso e torturado pelo partido a que havia devotado a sua vida para que confesse crimes que não cometeu. Assim sendo, o protagonista passa em revista a sua história e a do seu país, confrontado com as leituras políticas arbitrárias de um regime dominado pelo autoritarismo do sucessor de Lenine, tornando-se numa narrativa crua, que refaz o retrato da desilusão da mais esperançosa de todas as revoluções da História da humanidade.

Eclipse do Sol

Arthur Koestler

Editora Livros do Brasil

269 páginas

A época dos cravos

A Revolução de Abril de 1974 veio pôr fim a uma ditadura e, como se justifica na contracapa esta história de um período não tão distante, agora que o tempo democrático ultrapassou o do anterior regime, nove historiadores e estudiosos escalpelizam o antes, durante e depois do golpe militar que deu fim a uma governação e um império caduco. O coordenador do livro, Fernando Rosas, aborda a crise final do regime e as consequências do movimento militar. Maria Inácia Rezola a questão da luta do poder político e do militar nos tempos iniciais da revolução. Manuel Loff retrata o país ideologicamente dividido em dois. Afonso Costa relata a inflamação do poder popular. Oliveira Baptista ocupa-se da reforma agrária. Ricardo Noronha da economia em socialismo. Hugo Castro do papel da canção de protesto. Pezarat Correia do colapso do império. Pedro Aires Oliveira encerra com a política externa na transição. Uma leitura obrigatória, mesmo que se discorde de algumas análises, num momento em que o 25 de Abril poderá ser vítima de revisão histórica ao completar 50 anos.

Revolução Portuguesa 1974-1975

Vários autores

Editora Tinta da China

350 páginas

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