"Frei Luís de Sousa" é uma das piores peças do teatro português?
"Não quero nada disto. Cheira mal, faz-me mal. E ainda por cima faz-me sentir vergonha", diz a atriz São José Correia. "E não é só do século passado, é de agora. Está a acontecer agora. É tudo tão triste", acrescenta o ator Rogério Samora. "Isto devia acabar tudo. O pior é que fica." E ainda falta entrar a mais veterana de todas, a atriz Márcia Breia, bradando: "Que merda. Isto é uma grande merda." De que falam? Do teatro português. Do mau teatro português.
Worst of é o novo espetáculo-provocação do Teatro Praga. Tudo partiu, explica Pedro Penim, do convite para se apresentarem no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e de começarem a pensar o que se pode fazer naquele palco e qual é a ideia que temos de repertório. "Existe uma ideia de que o teatro português é mau. Essa ideia do delay, da cópia de modelos estrangeiros, do mal crónico - não é nossa, tem sido alimentada por vários autores, como o Eça de Queiroz, e até pelo público. E nós perguntámo-nos como é que nos podíamos integrar nessa tradição? Como abraçar um legado, que se calhar não é o melhor legado do mundo. Ao contrário da dramaturgia inglesa que tem o Shakespeare, ou da francesa que tem o Molière ou da espanhola que tem os autores do Século de Ouro, sempre foi dito que a nossa dramaturgia não é relevante, apesar de haver o Gil Vicente e o Almeida Garrett que são os autores ditos mais significativos, nenhum deles tem a dimensão e o peso dos outros."
Essa reflexão acabou por libertá-los do peso de uma qualquer herança e dar-lhes maior liberdade para criar. "Isto é uma celebração, só que ao contrário, em vez de celebrar o que é bom, de dizermos que somos todos muito bons e estamos na crista da onda, aqui fazemos uma celebração do mau". Logo surgiu a ideia de fazer um top 10, ao estilo das listas das dez melhores praias do mundo ou os dez restaurantes que todos devem experimentar, só que com os dez piores espetáculos portugueses. Em vez de um best of (o melhor) é um worst of (o pior).
Pancadas de Molière. E temos Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, o "pai do Teatro Nacional". Seguem-se Felizmente há Luar, de Sttau Monteiro (1961), Fígados de Tigre, de Gomes de Amorim (1857), O Lodo, de Alfredo Cortês (1923), Português, escritor, 45 anos, de Bernardo Santareno (1974), Teatro Novo, de Correia Garção (1766), Maluquinha de Arroios, de André Brun (1919), Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas (1902), Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente (1502) e, por fim, Worst of, a peça dos Praga.
As escolhas destas listas são sempre subjetivas, é claro, mas Pedro Penin explica: "Tentámos escolher peças que de facto são relevantes e são geralmente salvas do mau, como o Frei Luís de Sousa e o Monólogo do Vaqueiro, e depois acabar com a nossa própria peça, Worst Of, fazendo-se incluir nessa lista de dez piores. No meio temos peças de várias épocas, várias estéticas. Depois se são as dez piores ou não não nos importa - são momentos exemplares do que poderiam ser as dez piores. Se é teatro e é português, é mau." Apesar de defender que a lista dos dez piores é apenas exemplificativa, e de questionar permanentemente os conceitos de bom e mau, o grupo não esconde que se trata de uma provocação: "Há aqui uma ideia de afronta. Estamos na casa de Garrett e estamos a dizer que o Frei Luís de Sousa é uma das piores peças portuguesas."
Enquanto num palco pequeno os atores que habitualmente trabalham com os Praga (Pedro Penim, Cláudia Jardim, Patrícia da Silva e Diogo Bento) interpretam excertos das peças, na boca de cena os convidados (Rogério Samora, Márcia Breia, São José Correia e Vítor Silva Costa) são os atores e espectadores que comentam, ora em tom crítico ora de gozo, as peças e o estilo de representação. Por exemplo: "Não há amor quando tudo é decorado".
Essa inversão dos papéis é também ela uma provocação. "Nós, os atores dos Praga, estamos mesmo a defender estas peças, não estamos só a ataca-las ou expô-las ao ridículo. Estamos a tentar, dentro das nossas capacidades, pensar como seria montar uma peça como os Fígados de Tigre e dar-lhe o melhor de nós", explica Penim. E a escolha dos atores mais veteranos também foi propositada: "Escolhemo-los porque precisávamos de três pessoas que tivessem essa autoridade e esse histórico, eles são atores que têm reconhecimento público e têm carreiras extensas e relevantes no teatro. E eles estão a fazer os nossos papéis, a dizer o que nós costumamos dizer nos nossos espetáculos."
Lições de moral? Nem pensar, dizem. "Este espetáculo a ter vontade de alguma coisa é de criar um espaço de maior liberdade", afirma José Maria Vieira Mendes. "Para quem faz e até para o espectador. Que não tem que ter qualquer expectativa. Já sabe que aqui é tudo mau."
"Nós também fazemos parte da merda, não nos achamos extraordinários nem somos melhores", diz Rogério Samora, que acabou de fazer 60 anos: "Vejo muito teatro desde miúdo e vi coisas muito más". Para além de ter entrado em Quem és tu?, filme de João Botelho a partir de Frei Luís de Sousa, Samora também fez o pajem ao lado de Rui Mendes numa versão do Monólogo do Vaqueiro para televisão em 1977. "Muitas vezes apetece dizer: fiz esta merda. Mas não se pode dizer. E aqui podemos. São pensamentos verbalizados. Não é uma salvação, não é uma redenção, não é uma crítica. É só muito libertador."
Aqui, como se verá lá mais para o fim, todos poderão dizer que isto é uma merda. A palavra invade completamente o espetáculo e perde o seu valor. O que é bom? O que é mau? Será que esse tipo de valoração tem alguma importância?
Worst of
Teatro Praga
Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa
De 1 a 8 de novembro
Bilhetes de 8 a 17 euros