Aos 7/8 anos fazia "cuecas" ao treinador, voltava-se para trás a rir-se e sentenciava a piscar o olho: "1-0." E continuava a treinar, atento a todos os estímulos de aprendizagem. Se a infância é o maior tesouro que se pode oferecer a uma criança, Francisco Trincão é um afortunado..O rapaz de Viana do Castelo divertia-se sempre sem pedir licença, como não pedia, nem pede, permissão para aplicar o virtuosismo do pé esquerdo a quem lhe sai ao caminho no futebol e para estar sempre um passo à frente da sua geração. Aos 9 anos estava no FC Porto, aos 10 regressou ao Vianense e aos 11 no Sp. Braga, de onde sairá no verão para o Barcelona, a meio ano de completar 21 (nasceu a 29 de dezembro de 1999). Se a qualidade como futebolista é inequívoca (os tempos estão loucos, é certo, e o Barça fixou a cláusula em 500 milhões de euros), o que sobressai de um passeio pela tenra vida deste miúdo é a inteligência funcional e emocional. Dito de outra forma: uma família que apoia e não se impõe na arte explica muita coisa.."Destaco a forma como os pais intervinham. Era o pai que o acompanhava mais, sempre presente, mas sem ruído, como suporte. Neste tempo de dificuldade dos clubes em lidar com a agressividade dos pais dos miúdos, não me passou despercebida esta conexão", diz ao DN o presidente do Sport Clube Vianense, onde despontou Francisco Trincão. Na altura, Rui Pedro Silva era coordenador das camadas jovens..E depara-se com uma "fornada invulgar" que hoje impõe respeito: Pedro Neto, que está a brilhar no Wolverhampton (e o 2.º da lista de maiores encaixes dos bracarenses com passes de jogadores, perto dos 20 milhões de euros), Francisco Trincão, Tomás Silva (atual capitão dos sub-23 do Sporting) e Diogo Brito, filho mais velho de outra glória vianense, Rogério, antigo médio do Belenenses e do Salamanca. Diogo está na Grécia, no Episkopi, da III Divisão, mas já passou pelo Sp. Braga, onde está o irmão mais novo, Tiago (15 anos, joga no Palmeiras, que há anos acolhe jovens arsenalistas por empréstimo, como foi o caso do próprio Trincão)..E o que tinham em comum, além da qualidade que lhes permitiu entre milhares de miúdos chegar a profissionais? "A forma como se comportavam numa fase delicada do crescimento", sublinha Rui Pedro Silva. Aqui convém fazer uma nota: se qualquer um destes jovens tivesse estado inscrito pelo Vianense depois dos 12 anos, o clube do Alto Minho estaria bem melhor na luta pela modernização e valorização do emblema mais antigo do futebol português (1898, apesar de o FC Porto reclamar esse carimbo quando atualizou a data de fundação de 1906 para 1893); só dois anos de Trincão depois dos 12 pagavam uma época de todo o futebol, masculino e feminino, do Vianense (custa cerca de 150 mil euros - 0,5% de 31 milhões são 155 mil euros)..Voltando a Trincão, percebemos que ele foi navegando em águas seguras, quer na educação cívica e social quer desportiva - uma família por perto sem pressões e um clube em que se divertiu a cultivar o talento.."Fui o primeiro treinador do Francisco. Ele aparece no Vianense aos 6/7 anos. Ainda estivemos juntos três anos. Eram muito pequeninos, na altura fazíamos uns encontros ao fim de semana. Lembro-me de num torneio ele ter dado cabo do V. Guimarães", conta João Branco, também formado e criado no Vianense e que enquanto jogava nos seniores orientava os sub-10..A postura mental de Ronaldo.Foi a João Branco, agora numa pausa futebolística ("há três meses fui colocado como professor em regime de substituição numa escola em Setúbal"), que Trincão fez uma "cueca". "Conto muitas vezes esta história. Eu gostava de entrar em jogo com eles. Um dia, ele meteu-me uma cueca [bola por entre as pernas] e virou-se para trás a rir-se. "Já estou a ganhar 1-0." Já com aquela idade ele sabia diferenciar os momentos. Sabia que havia os dois momentos, para brincar e para se concentrar", contextualiza o professor que, aos 35 anos, ainda está inscrito no Cardielense, clube da I Divisão Distrital de Viana de Castelo.."Destacava-se acima de tudo pela postura, tanto ele como o Tomás. Eram miúdos rebeldes, mas gostavam de ouvir e de aprender. A postura e a inteligência emocional são fruto de um trabalho de casa muito bem feito, e que continua a ser bem feito", assegura ainda João Branco. "O Trincão sabe que é difícil, que é preciso trabalhar muito, não passar por cima de ninguém. Aquela postura mental de que fala o Cristiano Ronaldo, ele tem-na. Miúdos habilidosos há muitos, mas depois falta-lhes qualquer coisa. E acho que é essa postura mental. Sem talento não se faz nada, mas só com o talento também não se faz muito", sentencia.."Quando foi para o Braga, vivia lá com os avós. Há todo um respaldo familiar fundamental no equilíbrio do homem e do atleta", acrescenta ainda o primeiro treinador de Trincão, que saltou para a ribalta mediática sobretudo após a conquista do Europeu sub-19, em 2018, consagrando a carreira como internacional português (falta-lhe a seleção principal e já tinha sido campeão europeu sub-17). Nesse torneio, foi eleito o melhor jogador e, com Jota (Benfica), sagrou-se melhor marcador, com cinco golos. No ano passado marcou um dos dois golos de Portugal no Mundial sub-20, em que a equipa se ficou pela primeira fase..Pesando tudo, João Branco volta a ser racional. "Percebeu-se logo que dali podia vir alguma coisa. Mas dizer agora que já sabia que iam ser craques era fácil. Não poderia dizer, mas notava-se alguma diferença, destacavam-se", diz, referindo-se sobretudo aos quatro vianenses acima mencionados. Com Neto na Liga inglesa, segue-se no verão Trincão, na Liga espanhola. "Acredito que vai triunfar, só precisa de oportunidades", resume. Ou como diz Rui Pedro Silva, presidente do Vianense: "Virtuosismo, qualidade técnica, inteligência e capacidade de finalização sempre estiveram lá. Foi sempre um miúdo pacato, de bom relacionamento, era quem se distinguia. Nunca foi de colocar muita intensidade, mas as qualidades técnicas distinguiam-no e tinha uma finalização invulgar.".Depois, um salto de meia centena de quilómetros, até à terra materna, para entrar numa estrutura mais profissional e com muitos mais meios: o Sporting Clube de Braga, onde chega com 11 anos, em 2011. Ou como diz Wender Said, antigo futebolista e curiosamente um ala esquerdino virtuoso que orientou Trincão na equipa B bracarense, para "andar sempre acima" da sua idade numa estrutura mais poderosa e competitiva: "Jogava comigo na B, mas era chamado aos treinos pelo Abel [Ferreira, técnico da equipa principal]. Já era convocado, ia para bancada. Isso ajudou no amadurecimento".."Estava nos juvenis, jogava pelos juniores. Nos juniores, jogava na equipa B. Convivia com os mais velhos e foi benéfico. Treinava a semana toda com a equipa A e numa conversa percebia o que precisava de saber para jogar na equipa B", enquadra Wender, que já tem descendência no Braga - o filho Yan é ponta-de-lança dos sub-19.."O Trincão é criativo, forte no um para um, sabe fechar espaços, revela muita inteligência no timing da pressão. É muito mais maduro do que a média. No interior, é um miúdo focado, concentrado, por isso está onde está. E tenho a certeza de que não está a pensar no Barcelona. Ele sabe que quanto mais fizer aqui [Braga], mais moral terá lá [Barcelona]", afiança o agora treinador, que como jogador chegou do Brasil natal a Portugal pela porta da Naval, passando depois sete anos em Braga, com um interlúdio curto no Sporting, uns anos no Chipre e remate de 20 anos de futebolista no Pasteleira. O clube portuense que agora celebra a fortuna de ter tido Bruno Fernandes por empréstimo do Boavista nas camadas jovens: vai render, através do mecanismo de solidariedade, mais de 200 mil euros do bolo de 55 milhões que em janeiro o Manchester United acordou pagar ao Sporting pelo passe do médio.