Desde que assumiu o lugar de papa, em 2013, que Francisco está a braços com aquela que é a maior crise da Igreja Católica do último século. Mas 2018 foi decerto o pior ano do seu pontificado: do brutal relatório da Pensilvânia à condenação do número 3 do Vaticano, o cardeal australiano George Pell, a seis anos de prisão, da suspeita de encobrimento pelo número 2, o espanhol Luis Francisco Ladaria Ferrer, num processo em França, às rusgas na Conferência Episcopal chilena, ficou patente que o veneno tinha chegado aos pináculos da organização..Logo no início de 2019, em fevereiro, o papa organizou um encontro de bispos de todo o mundo sobre o assunto. Durante quatro dias os prelados discutiram, ouviram testemunhos de vítimas e fizeram promessas de ação, com Francisco a sublinhar ser necessário denunciar os casos às autoridades judiciais. Seria porém preciso esperar por dezembro, mês em que cumpriu 83 anos de idade e 50 como sacerdote, para que ordenasse o levantamento do "segredo pontifício" que impendia ainda sobre os processos canónicos de abuso sexual, permitindo assim que as dioceses possam dar acesso aos documentos arquivados quando as autoridades judiciais o requererem..Algo por que o bispo português Januário Torgal Ferreira aguardava ansiosamente: "Há muito tempo que esperava que se acabasse com o sigilo nos processos de pedofilia, como há muito esperava que o papa dissesse que a pena de morte é uma abominação [Francisco reviu o catecismo em 2018 para retirar a admissibilidade da pena de morte]. A minha análise do papa neste ano de 2019 é a confirmação do júbilo que tenho todos os dias por ter aparecido um homem como ele. É uma figura única na história recente da Igreja e do papado. Conseguiu recuperar a esperança na Igreja de muitos que a tinham perdido. De uma assentada aparece e diz coisas e faz acontecimentos que a gente fica de boca aberta.".Bento e Francisco, confronto de papas?.De boca aberta, porém, ficaram muitos em abril deste ano, quando o papa emérito Bento XVI, quebrando aquilo que foi descrito como "um relativo silêncio" (ao resignar anunciara que iria dedicar-se à oração, em retiro, mas manteve as vestes papais, vive no Vaticano e tem intervindo de uma forma ou outra), publicava, em abril, uma longa carta na qual acusa a revolução sexual dos anos 60/70, a educação sexual e as alterações na Igreja Católica pós-Concílio Vaticano II de serem responsáveis pelos abusos sexuais perpetrados por padres, certificando que a dada altura eram exibidos "filmes sexuais" nos aviões - na mesma época em que, assevera, "a pedofilia foi diagnosticada como permitida e apropriada." Terá sido então, concluía o ex cardeal Ratzinger - que entre 1981 e 2005, ano no qual foi entronizado papa, desempenhou as funções de Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, o "ministério" do Vaticano ao qual o papa João Paulo II entregou a investigação dos casos de abuso -, esse "radicalismo sem precedentes dos anos 1960", quando, informa, foram criadas "cliques de homossexuais" nos seminários, a levar à "dissolução do conceito de moralidade cristã" e portanto aos abusos sexuais..A carta foi vista por vários analistas como a assunção clara daquilo que já se debatia: a Igreja Católica tem dois chefes, e com ideias muito diferentes. Se Francisco começou o seu pontificado a criticar a obsessão da Igreja Católica com o sexo e tem dado sinais cada vez mais fortes de que quer mexer nas interdições ligadas a ela, como o celibato dos padres e a proibição de comunhão de divorciados, Bento XVI escreveu uma carta em que a obsessão não podia estar mais assumida. E na qual associa a abertura do Vaticano II, de que Francisco é visto como herdeiro, aos abusos sexuais. A rota de colisão, sublinhada pelo facto de políticos de extrema-direita como Steve Bannon e Matteo Salvini enaltecerem Bento como "o verdadeiro papa", não podia ser mais clara..Francisco, a quem Bento terá enviado a carta antes da publicação, parece ter respondido em junho, numa viagem a Roménia, dizendo que a sua relação com Bento XVI lhe dá força, e que gosta muito de ouvir falar o papa emérito, a quem elogia a "grande lucidez". Mas a seguir afirma, citando o compositor Gustav Mahler: "Ele lembra-me de que a tradição da Igreja está em movimento. A tradição é a garantia do futuro e não a guardiã das cinzas. Não é um museu." Este tipo de tradição, acrescentou, é a "nostalgia dos integristas.".Três meses mais tarde, noutra viagem, esta de regresso de África para Roma, o papa foi mais longe: "Rezo para que não haja um cisma. Mas não tenho medo." .Um cisma é uma rutura formal na Igreja Católica, devido geralmente a diferenças de opinião sobre dogmas. O papa esclareceu que se referia aos católicos tradicionalistas americanos, dizendo-se "honrado" por o atacarem, mas que os ataques não vêm só dali; também existem na Cúria Romana (a burocracia que governa o Vaticano). "Ao menos os que me criticam têm a honestidade de o assumir. Gosto disso. Não gosto quando as críticas são nas minhas costas e à minha frente sorriem, à espera de espetar a faca. Isso não é leal nem humano."."Se podia ter feito mais? Podia, mas seria má estratégia".Se a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica trouxe a questão do celibato imposto aos padres para a discussão pública, a falta de sacerdotes poderá ser a justificação para mudar essa regra. No Sínodo para a Amazónia, que teve lugar em outubro, 185 bispos votaram a favor de que homens casados possam ser ordenados na região, para permitir que os católicos que vivem nas zonas mais remotas possam comungar mais do que uma ou duas vezes por ano. O documento papal referente ao sínodo e a esta questão foi anunciado ainda para este ano, mas não saiu até agora.."Pode ser que diga que se podem ordenar homens casados", diz ao DN a teóloga Maria Julieta Dias, religiosa da congregação do Sagrado Coração de Maria. "E se isso for possível na Amazónia não haverá razão para não acontecer na Europa também. Há em Portugal muitas paróquias sem padre.".A ser assim, crê a irmã Maria Julieta, "esse será o primeiro passo para a ordenação das mulheres." Assumindo o seu anseio pelo fim da discriminação, acha no entanto que a forma lenta como o papa está a agir é a correta. "Eu como mulher de Igreja gostava muito que as mulheres fossem ordenadas. E acho que ele é favorável a isso, mas como bom jesuíta que é, é muito ponderado. Consegue sempre ir à nossa frente. Se podia ter feito mais? Podia, mas isso seria uma má estratégia. Ele não se sobrepõe à Igreja, quer levá-la a assumir a direção que ele quer imprimir. Quer que ela chegue lá. A mudança de mentalidade e de vida não se decreta por normas nem por documentos. É pelas mensagens que dá, a forma como o faz. Isso é que pode levar a uma mudança de mentalidade; ele quer criar uma mudança mais eficaz e mais profunda. Levar-nos a uma mudança que compreendemos, que nos faz felizes.".Com a nomeação de mais 13 cardeais, incluindo o português Tolentino Mendonça, a 5 de outubro, Francisco já garantiu que mais de metade dos que elegerão o seu sucessor foram escolhidos por si. Como sublinha um artigo no New York Times , criou um corpo de cardeais "menos branco, menos italiano e menos representativo da Cúria Romana." Entre os novos nomeados está o luxemburguês Jean-Claude Hollerich, jesuíta como Francisco, que assegurou ao jornal americano que o papa se opõe ao desejo dos tradicionalistas de restaurar uma sociedade católica separada do mundo. E que "quanto mais ele é atacado, mais livre se torna.".Maria Julieta espera bem que sim: "Ele tem sido muito duro para com a Cúria Romana, para dentro da igreja, para os padres, bispos e cardeais, em relação ao carreirismo. E tem sido de uma grande ternura e proximidade para os simples, para os que não têm voz nem vez. Ele está a ter a mesma postura no nosso tempo que Jesus teve há dois mil anos. Tem sido de facto um grande humanista, um grande homem, e é para mim de facto um grande cristão. Põe as pessoas à frente da instituição. É um regozijo enorme para mim pensar neste papa.".Considerando que até agora o que mais marcou o papado em 2019 foi o levantamento do sigilo pontifício - "O papa dizer que para crimes que lesam a dignidade humana não pode haver segredo, que os padres têm de ser julgados pelos tribunais normais" -, Maria Julieta encontra-se com o também teólogo Anselmo Borges no entusiasmo com essa medida e na esperança da ordenação de casados. Mas ao contrário da religiosa, o padre e comentador habitual do DN vê na Igreja "um passo muito lento, excessivamente lento." Pergunto-me, diz ao DN, "como é que ainda é notícia a possibilidade de ordenação de homens casados ou o fim do segredo. A Igreja tem nisto um passo paquidérmico.".Mas, reconhece, "o problema do papa Francisco é que não pode criar um cisma.".Apontando outro momento fulcral do papa em 2019, "a declaração de que é imoral o uso de armamento atómico mas também a sua posse" (aquando da visita de Francisco ao Japão, em novembro), Anselmo Borges não hesita em disparar contra Bento XVI: "Devia cumprir aquilo que prometeu quando resignou: estar calado. Resignou dizendo que não tinha forças físicas e psíquicas para levar avante o papado. E de nenhum ponto de vista se justifica a existência de um papa Emérito. Não se justifica que continue a vestir-se de papa, a falar... Quando um papa resigna deve passar a ser bispo emérito de Roma, mais nada. Aliás o próprio papa Francisco nunca fala de si mesmo como papa, diz que é só o bispo de Roma."