Murilo de Carvalho: "Portugal tornou-se o sonho de consumo de muitos brasileiros"
A visão do país pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor de livros como Forças Armadas e Política no Brasil, A Monarquia Brasileira, D. Pedro II e A Formação das Almas - O Imaginário da República no Brasil. A entrevista foi feita por e-mail e foi decidido não se abordar nem Jair Bolsonaro nem Fernando Haddad, rivais nas presidenciais.
Quinto maior país, quinto também mais populoso, mas apenas oitava economia mundial. O Brasil pode ambicionar mais na hierarquia das grandes economias? Tem recursos para tal?
O Brasil separou-se de Portugal com a ambição de ser um grande império, com base no seu tamanho e nas suas riquezas. O sonho de grande império, expresso em Porque Me Ufano do Meu País, do conde Afonso Celso, publicado em 1900 (e replicado para Portugal em Porque Me Orgulho de Ser Português, de Albino Forjaz de Sampaio), acompanhou a nossa história. A ditadura militar falava em Brasil grande potência. Mesmo Lula, nos seus dois mandatos, alimentou este sonho. Hoje há descrença total na grandeza do país, atual ou futura. Recursos naturais nunca faltaram. Faltou sempre uma política consistente, acima de governos e partidos, que buscasse sistematicamente atingir esse objetivo, como fizeram os norte-americanos em relação ao Manifest Destiny.
Nem só a economia mostra a força de um país. No caso do Brasil, o soft power é imenso, desde a influência da música popular à popularidade das praias, ao fascínio pela Amazónia. Este soft power é um dado garantido? Pode ser reforçado? Pode, pelo contrário, perder-se?
Finda a ditadura militar que só pensava em hard power, houve menções ao soft power. Mas ele está sendo corroído pela violência endémica, pela instabilidade política, pela crise económica. Ironicamente, o único grande êxito internacional do Brasil que poderia qualificar de soft power foi a participação do país no comando da operação de paz no Haiti (Minustah), considerada pela ONU como um grande êxito.
Qual é a imagem das Forças Armadas junto da população? Representam ainda a memória da ditadura ou são vistas como o garante maior do Estado?
As pesquisas de opinião pública mostram que as Forças Armadas são a instituição mais confiável no país, mais do que os três poderes. Mas permanece, desde a ditadura, um divórcio entre elas e o mundo artístico e intelectual, que não perdoam a censura e a violência de que foram as principais vítimas. Pesquisas entre militares, por outro lado, indicam que eles têm consciência dessa situação e sentem-se injustiçados e discriminados.
Como classifica o peso da herança colonial portuguesa? O Brasil é um imenso Portugal, ao qual deve as virtudes e os defeitos, mas em dimensão continental?
É certo que ainda há no país resíduos da colonização, sobretudo no que se refere à marca da escravidão. Mas o recurso a esse argumento é muitas vezes um álibi para nos absolver dos nossos pecados. Afinal, dentro de quatro anos vamos celebrar, ou melhor, discutir os 200 anos de independência, tempo suficiente para termos superado o que de negativo possa ter havido no passado colonial.
Com tanta diversidade, até socioeconómica, o Brasil é um exemplo de coesão como país e desde os tempos ainda da monarquia que deixou de haver separatismos. Como se explica?
Para o bem ou para o mal, os 49 anos do Segundo Reinado permitiram a consolidação da unidade nacional e a estabilidade política, em vivo contraste com o que se passava à época na América Hispânica. A presença de uma monarquia constitucional regulando o conflito das elites locais viabilizou a manutenção da unidade. A única parte do país mais propensa ao separatismo, o Rio Grande do Sul, confirmou sua adesão ao Brasil durante a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Pequeno surto de separatismo nessa região no final do século passado não prosperou.
Há riscos de a competição político-partidária abalar essa coesão nacional histórica?
É pouco provável. Estamos todos no mesmo saco.
Hoje fala-se muito de crise da República e dos tempos áureos da monarquia, sobretudo de D. Pedro II. O Brasil imperial foi um caso de sucesso comparado com a República, ou trata-se de mero saudosismo baseado na frustração com o presente?
Um conhecido historiador argentino, Tulio Halperin Donghi, costumava dizer que o Brasil do século XIX, comparado à América Hispânica, era um luxo. Mas é preciso levar em conta que na base do sistema estava uma sociedade profundamente marcada pela escravidão. Não faz muito sentido a comparação.
Há a ideia de que a sociedade brasileira recusa o racismo, o que contrasta historicamente com os Estados Unidos. É um mito ou corresponde em boa parte à realidade?
Prefiro distinguir racismo de discriminação racial, termos hoje usados como sinónimos. Nos Estados Unidos havia e há racismo, isto é, a atribuição da desigualdade a fatores biológicos. No Brasil, a grande miscigenação faria que se considerasse inferior mais de metade da população. Mas há, sim, comprovada por muitas estatísticas, discriminação (tratamento desigual) racial, sobretudo em relação a afrodescendentes.
Com os índios, os africanos, os portugueses, depois também os imigrantes italianos, alemães ou japoneses, o Brasil foi-se tornando multiétnico. Existe, porém, o brasileiro, soma de todas estas influências ou pelo menos capaz de integrar muitas das influências no seu modo de ser?
Passaportes brasileiros são cobiçados por falsários porque podem ser brasileiras pessoas de qualquer coloração. As tradições culturais indígenas e africanas marcaram o país e ultimamente têm sido mais valorizadas. Mesmo assim, a presença indígena e africana é distribuída desigualmente pelo país e nas classes sociais. Talvez, no máximo, pudesse dizer-se que o Brasil é um dos países que mais se aproximam de uma identidade coletiva multirracial.
Como vê as relações históricas entre o Brasil e Portugal? E hoje em dia, em que é Portugal que atrai cada vez mais imigração brasileira, contrariando aquilo que sempre foi a tradição?
Se excetuarmos o período inicial da República, as relações sempre foram fraternas, salvo alguns desentendimentos tópicos. No momento, graças às desgraças do Brasil, com perdão do trocadilho, Portugal tornou-se o sonho de consumo de muitos brasileiros.
Stefan Zweig falava de país do futuro. Acredita que há um futuro muito melhor para o Brasil do que o presente? Ou há muito para um brasileiro se orgulhar?
Do que o presente, sim, porque é difícil imaginar uma perpetuação da situação atual. Futuro muito melhor, motivos de orgulho, é de duvidar. Mesmo saindo do imbróglio político e económico atual, restaria enfrentar o nosso imenso passivo social. Temos milhões de desempregados e de subempregados, muitos dos quais não empregáveis por causa da baixa escolaridade e do fraco crescimento económico. O futuro de que falou Zweig está cada vez mais distante.