Se há mérito que não pode ser negado à decisão dos Estados Unidos em executar Qassem Soleimani, o comandante das ações no estrangeiro (Força Qods) dos Guardas da Revolução, é o de tirar este grupo da sombra. Primeiro, retaliou de forma oficial, no lugar da força aérea iraniana, com 13 mísseis contra a base militar iraquiana Ain al-Assad; e depois, ao anunciar a operação, denominada Mártir Soleimani, na conferência de imprensa do general Amir Ali Hajizadeh, comandante do ramo aéreo dos Guardas da Revolução..Mais surpreendente do que ter anunciado "dezenas de mortos e feridos", transportados para Israel e Jordânia em "pelo menos nove aviões C-130", alegação desmentida pelos EUA, a conferência de imprensa oficializou a relação do regime iraniano com grupos islamitas de países no Médio Oriente - alguns dos quais tentaram ocultar no passado esses laços..Nas costas de Hajizadeh, além das bandeiras do Irão e dos Guardas da Revolução constavam as dos grupos armados Hezbollah (Líbano), das Forças de Mobilização Populares ou Hashed al-Shaabi (Iraque), do Hamas (Faixa de Gaza), do Movimento Houthi (Iémen), da Liwa Fatemiyun (Afeganistão) e da Liwa Zaynabiyun (Paquistão). Agora, além do papel dos Guardas da Revolução, considerados terroristas por Washington desde abril passado, a comunidade internacional tem a prova do patrocínio, por parte de Teerão, destas milícias islamitas que atuam na região. Algumas, como o Hamas, ou o braço armado do Hezbollah, constam da lista das organizações terroristas emitida pela União Europeia..Por outro lado, os movimentos apoiados na Palestina (Hamas e Jihad Islâmica) e no Afeganistão são sunitas, o que rompe com a tradicional divisão sectária entre o regime iraniano, ancorado no xiismo..O simbolismo da presença das bandeiras na conferência de imprensa foi pano para conjeturas, desde querer passar a mensagem de que o Irão não está isolado até a uma homenagem a Soleimani, que esteve envolvido de forma pessoal na criação de algumas destas organizações..É claro que, quando a Força Qods (Jerusalém) de Qassem Soleimani saiu da obscuridade, na sequência do eclodir da guerra na Síria em 2011, já os serviços de informação dos outros Estados sabiam da sua existência. É o braço das operações externas dos Guardas da Revolução e uma das oito divisões deste Estado dentro do Estado. As outras são a força terrestre, a força aérea e a marinha (que funcionam em paralelo às forças armadas do país), as contrainformações, a segurança e a milícia Basij, que impõe nas ruas proibições como dançar, além de zelar que as mulheres usem véu..As oito unidades funcionam sob as ordens do comandante dos Guardas da Revolução, Hossein Salami. Porém, a Força Qods opera de forma autónoma - Soleimani tratava diretamente com o guia supremo Ali Khamenei..Sementes lançadas no Líbano.As sementes da Força Qods foram lançadas no Líbano. O líder da revolução islâmica de 1979 e guia supremo Ruhollah Khomeini desconfiava do exército, que tinha nas suas fileiras elementos do regime do xá, pelo que criou uma unidade com um nome autoexplicativo, os Guardas da Revolução..Para Khomeini, os soldados eram "guardas da revolução e os filhos combatentes do islão". A sua primeira operação fora de portas decorreu na guerra civil libanesa, em 1982, com os iranianos a alinhar com as milícias xiitas, o que resultou na criação do Hezbollah..A guerra com o Iraque (1980-1988) também proporcionou uma experiência de combate através de outras forças que não o exército, ao financiar grupos xiitas de oposição a Saddam Hussein, como a Brigada Badr. Milhares juntaram-se às fileiras iranianas - e cerca de cinco mil estrangeiros morreram na guerra a lutar pela revolução islâmica..Em 1990, o sucessor de Khomeini e atual guia supremo, Ali Khamenei, disse qual era a meta da organização: "Estabelecer células populares do Hezbollah em todo o mundo." No Líbano, o Hezbollah estabeleceu uma influência política ímpar e, em paralelo, está armado até aos dentes, dotado de mísseis balísticos e de mísseis antitanque, além de drones. "O orçamento, os salários, as despesas, as armas e os mísseis vêm da República Islâmica do Irão. Estou a ser claro? Ninguém tem nada com isto. Desde que o Irão tenha dinheiro, nós temos dinheiro", admitiu o secretário-geral do movimento xiita, Hassan Nasrallah, em 2016..A estratégia expansionista ganhou novo alento em 2003 com a invasão do Iraque, por parte das forças norte-americanas e britânicas. Sob a chefia de Soleimani, comandante da Força Qods desde 1998, o Iraque passou a ser território minado com o duplo objetivo de expulsar os 150 mil militares ocidentais e impor uma chefia xiita e pró-iraniana. A partir de 2014, com o Estado Islâmico a tomar conta de largas porções do território, o governo iraquiano autoriza as milícias xiitas apoiadas pelo Irão, sob o chapéu das Forças de Mobilização Popular, a combater a organização terrorista..Noutros países, a revolta contra as ditaduras na chamada Primavera Árabe foi uma oportunidade para tentar ganhar influência - o maior exemplo de todos é a Síria. O Irão saiu em ajuda do único país oficialmente aliado e do seu presidente, Bashar Al-Assad, contra o que começou em 2011 como uma rebelião popular, principalmente entre os sunitas, que formam a maioria da população do país..A estratégia da Força Qods passou por recorrer ao Hezbollah, a milícias do Iraque e a outras milícias xiitas criadas no Afeganistão e no Paquistão para lutar na Síria. Sem meios aéreos suficientes nem outras capacidades militares, foi o próprio Qassem Soleimani quem se deslocou a Moscovo, em 2015, para pedir a intervenção de Vladimir Putin. O resto da história - que ainda decorre - já se sabe: a Rússia, que tinha instalações navais no porto de Tartus, viu uma oportunidade para ganhar influência em toda a região..Do lado iraniano, além de salvar Assad, garantiu uma rota terrestre de Teerão a Beirute. Alguns combatentes do Hezbollah chamam a esta rota de Wilayat Imam Ali, ou seja, Província Imã Ali, em referência a Ali ibn Abi Talib, o genro do profeta Maomé, do qual os xiitas tomaram partido. Como refere Seth Jones, analista do Center for Strategic and International Studies, estes corredores assemelham-se à Estrada Real, a antiga via construída pelo rei persa Dário, o Grande, no século V a.C..No Iémen, por sua vez, o Irão apoiou os rebeldes xiitas houthis contra as forças apoiadas pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos numa guerra que eclodiu em 2015. Em setembro, instalações petrolíferas na Arábia Saudita foram atacadas com drones, numa ação reivindicada pelos houthis..No relatório "Iran's networks of influence in the Middle East", do International Institute for Strategic Studies, conclui-se que a influência exercida pelo Irão no Iraque, no Líbano, na Síria e no Iémen é o "novo normal"..O senhor que se segue.Nas páginas da imprensa internacional não foram poucos os que escreveram que o golpe desferido pelos Estados Unidos, ao executar Qassem Soleimani, vai afetar a capacidade de organização e de influência da Força Qods. Facto ou especulação, o que não se espera é que haja uma mudança de curso por parte do seu sucessor. Esmail Qaani, de 62 anos, faz parte da unidade de elite desde a sua criação e nas últimas duas décadas foi adjunto de Soleimani. "É um dos mais distintos comandantes do Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica", disse o ayatollah Ali Khamenei..Já para o Departamento do Tesouro dos EUA, o homem que comanda uma unidade que terá entre 5000 e 20 mil soldados está desde 2012 debaixo de olho devido ao seu papel na supervisão de transferências financeiros e de remessas de armas para o Hezbollah, mas também para os elementos da Força Qods, quer no Médio Oriente quer em África, em particular na Gâmbia. É que nos últimos anos, segundo Omer Carmi, do Washington Institute For Near East Policy, várias organizações culturais e não governamentais servem de fachada da Força Qods em vários países.