Portugal, Inglaterra e Espanha, só para reunir as discussões recentes mais assanhadas em torno de decisões de fora de jogo (o tema do momento desde que a lei 11 foi criada em 1863), vivem numa relação turbulenta com a forma como têm sido assinaladas posições irregulares, uma prerrogativa regulamentar que separa o futebol dos outros jogos: o offside, criado nos primeiros regulamentos oficiais, em 1863, pela Football Association (federação inglesa). Faltas por centímetros, pixéis, um nariz ou unhas maiores, as últimas semanas têm sido pródigas em discussões sobre o virtuosismo do VAR (videoárbitro) na defesa da integridade desportiva. "Se tem de passar muito tempo a provar que há alguma infração, então essa não é uma decisão para o VAR", mantém o IFAB - International Football Association Board ao DN. Ou seja, o chavão futebolístico deve ser reforçado: "O árbitro é soberano." Ainda..Devolver o poder aos árbitros é o que se reclama, embora os próprios se escudem no VAR para definir decisões, mais ou menos dentro do espírito do protocolo. "Se em qualquer jogada que têm dúvidas recorrem ao VAR, por que razão existem os árbitros assistentes? Não estão lá para nada", dispara Veiga Trigo, ex-árbitro internacional, muito crítico da aplicação do protocolo, mas totalmente a favor da utilização do VAR..Apesar de algumas críticas mais extremas, genericamente ninguém quer que o sistema tecnológico coordenado por árbitros deixe o futebol tão-só três anos após ter entrado para revolucionar o diálogo entre erro e "verdade desportiva". Portugal foi pioneiro, com Austrália, Brasil, Alemanha, Holanda e Estados Unidos, na implementação desta ferramenta, na época 2017-2018 (a título experimental), sendo que, atualmente, já a utilizam mais de cem competições sob a égide da FIFA em todo o mundo (Mundiais, Europeus, Liga dos Campeões, Liga Europa, todos os principais campeonatos, etc., etc.)..Um funcionário do IFAB, com sede em Zurique (Münstergasse 9, coração da cidade suíça, que tem nos arredores a sede da FIFA), disse ao DN não poder pronunciar-se abertamente sobre o tema, revelando que a questão tecnológica e técnica do VAR está agora entregue à FIFA. "Neste ano, o IFAB vai apostar ainda mais em ações de educação e comunicação", referiu o colaborador do International Board..Apesar das polémicas, a posição dos guardiões das leis de jogo não se alterou. "Se não for possível estabelecer linhas fiáveis e verificar claramente qualquer irregularidade, o VAR deve abster-se e deixar seguir o jogo com a decisão dos árbitros", continua a defender o IFAB. A 29 de fevereiro, em Belfast (Irlanda do Norte), realiza-se a 134.ª reunião geral anual do organismo. Mas não se esperam grandes alterações ao protocolo de implementação do VAR..No "manual de implementação para competições", mais conhecido por "protocolo do videoárbitro", a atenção deve manter-se focada, essencialmente, nos três primeiros pontos. "1. A tecnologia de vídeo só deve ser utilizada para corrigir erros claros e para incidentes graves não assinalados em decisões predefinidas que alteram o jogo (golo, penálti/não penálti, cartões vermelhos diretos e erros de identificação de jogadores); 2. A decisão final é sempre tomada pelo árbitro; 3. Os videoárbitros (VAR) são elementos da equipa de arbitragem - qualquer informação que os VAR forneçam ao árbitro deve ser tratada pelo árbitro do mesmo modo que a informação recebida de um árbitro assistente ou quarto árbitro."."Não estamos a trabalhar com os critérios técnicos do VAR no dia-a-dia, isso agora está com o Comité Técnico da FIFA", o qual é responsável pelos esclarecimentos, diz ainda o IFAB. "A calibração da linha tecnológica está a melhorar gradualmente e estamos muito satisfeitos com essa evolução", acrescenta o organismo que diz "viver bem com essa eficácia" [da linha tecnológica que define a regularidade da posição dos jogadores no terreno de jogo]. O fator humano? O futebol estará sempre dependente do fator humano", encerra o IFAB..As afinações do fora de jogo.Em 1863, qualquer atacante à frente da bola estava fora de jogo, o que gerava uma anarquia tática e competitiva que foi sendo depurada até 1925, quando a lei 11 ganhou a forma quase definitiva do fora de jogo como hoje o conhecemos. Há 95 anos, portanto, o fora de jogo passou a ser considerado quando há apenas dois jogadores adversários entre o recetor do passe e a linha de baliza, e já não três (como instituído em 1870)..Afinações em 1995 (acabou o fora de jogo passivo, tendo de haver interferência ou ganho de vantagem do jogador em posição irregular sem jogar a bola para ser assinalado livre indireto) e 2016 (nem mãos nem braços devem ser considerados no momento de determinar a posição adiantada, o que já acontecia na prática, de resto) trouxeram-nos até à era tecnológica do VAR, em 2017..Para Veiga Trigo é fundamental que os videoárbitros sejam mais rápidos a decidir e que os árbitros assistentes (antigos fiscais de linha) recuperem a autonomia de decisão. Uma noção de importância que prevalece no meio da arbitragem, segundo informações das discussões informais que os membros do setor têm mantido em reuniões associativas ou em conversas mais informais.."Não podemos andar a discutir foras de jogo de milímetros. Tem de haver intervenção mínima do VAR, que só em casos óbvios deve atuar", diz um agente da arbitragem. "Se não, começam a parar o jogo cinco, seis, sete minutos e a festejar por ser e depois a festejar por não ser", acrescenta a fonte do setor. "Mais importante do que estabelecer uma margem de erro de x centímetros, que depois poderia gerar novas discussões de centímetros, será dar acesso aos meios de comunicação social, e sobretudo aos operadores que transmitem os jogos, à Cidade do Futebol para perceberem como são tomadas as decisões. Maior transparência ajudará a diminuir o tom das discussões", sugere..O ex-árbitro Veiga Trigo concorda. "O VAR tem um papel muito importante, mas as decisões têm de ser tomadas num minuto ou num minuto e meio. Se depois da chamada do VAR o árbitro ainda tem de ir ao monitor, para que é que estão na Cidade do Futebol?", argumenta..Há uma semana, em entrevista publicada pelo jornal italiano La Gazzetta dello Sport, o presidente do Comité de Árbitros da UEFA deu o tom para que os árbitros voltem a ser soberanos. "Queremos que o VAR intervenha apenas quando as imagens mostram um erro claro. Caso contrário, a decisão tomada em campo é a melhor. Para decidir se há um impedimento de alguns centímetros são necessários vários minutos para posicionar as linhas e há uma dificuldade real em determinar se está fora de jogo", disse Roberto Rosetti, ex-árbitro internacional..No último mês, a Premier League explodiu de indignação com lances como o do golo anulado ao português Pedro Neto, que então seria o 1-1 no Liverpool-Wolverhampton (e que os reds ganharam por 1-0), por cá, há treinadores a glosarem com a milimétrica exigência..Começou com António Folha, técnico do Portimonense, a dizer que já viu "golos anulados por jogadores não cortarem as unhas", prosseguiu no fim de semana passado, em Vila do Conde, onde o Rio Ave recebeu e perdeu com o Marítimo (0-1) num jogo em que foram anulados dois golos à equipa da casa pelo VAR. "Não sei se a tecnologia está assim tão bem elaborada, mas é o futebol moderno e temos de nos habituar. Claro que retira emoção, cai-se no ridículo de estarmos a festejar um golo e contentes e passado cinco minutos ser anulado porque alguém não cortou as unhas dos pés. Se o Tarantini tivesse cortado as unhas o [segundo] golo seria válido. Mas fizemos o nosso trabalho", comentou no final o treinador dos vilacondenses, Carlos Carvalhal.