Fogo amigo

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A expressão é eufemística e supostamente refere-se a um engano. Fala-se de fogo amigo para um ataque que vem de dentro, e parece que é o que estamos a assistir em Portugal mesmo antes da paragem sazonal. Senão vejamos. A resposta à crise pandémica trouxe para o centro da política portuguesa a ministra Marta Temido e a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas. Em tempos de enorme incerteza, e não isentas de falhas, tiveram a capacidade de ir respondendo com o que sabiam, gerindo a incerteza e dando respostas de forma clara e corajosa. Essa resposta deu a Costa a popularidade de que tem gozado. É por isso que é tão indigna a mudança de postura de uma parte do partido do Governo que não se coíbe agora de criticar a sua intervenção e de fazer coro com a direita. É esta mudança um acaso? Não parece.

Numa altura em que o Partido Socialista chega a acordo com o Partido Social Democrata para negociar medidas essenciais do Orçamento suplementar e para acabar com os debates quinzenais, torna-se evidente que o Governo está a preparar-se para os tempos difíceis que aí vêm através de um entendimento estratégico à direita. É por isso que a resposta não está a passar pelo reforço das políticas públicas ou pelo reconhecimento do muito que ainda há a fazer no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Pelo contrário, o primeiro-ministro parece estar mais preocupado com a identificação de bodes expiatórios para despejar responsabilidades pelas dificuldades que terá pela frente e que não está a prevenir. Marta Temido e Graça Freitas são os primeiros rostos. As incertezas associadas à pandemia e o ruído introduzido pela direita são os aliados perfeitos. É aqui que entra a expressão militar de fogo amigo. Mas aqui não há engano. Há, sim, uma liderança que manda soldados para a fogueira quando o cerco começa a apertar.

Que Marta Temido seja o alvo destes ataques também não é uma surpresa. Apesar de todas as lacunas que se possa identificar na sua atuação, estamos a falar da ministra que acabou com a parceria público-privada no Hospital de Braga e cujos resultados positivos começam já a ser notícia. É claramente uma mulher do SNS. Num contexto em que começa a cheirar a bloco central, Marta Temido poderá ser incómoda e Graça Freitas é levada por arrasto.

Os tempos que temos pela frente vão ser, aliás, já estão a ser, difíceis. Trazer a público as divergências com quem coordena a resposta de saúde pública não os vai simplificar e é uma tremenda irresponsabilidade. Só pode, portanto, ser explicado por uma estratégia de realinhamento do PS à direita. A confirmar-se, esse realinhamento significará um enorme retrocesso nas poucas conquistas dos últimos anos e a impossibilidade de sairmos da crise mais fortes e mais preparados para crises futuras. O que se passou nesta semana a propósito da nacionalização da TAP e das críticas internas ao ministro Pedro Nuno Santos encaixa perfeitamente nesta estratégia. A estratégia de começar a remover ou fragilizar os que possam ser obstáculos no caminho para um novo bloco central. O problema é que este não é o caminho que o país precisa.

Eurodeputada do Bloco de Esquerda

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