Flora danica (o futuro da Europa)

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É bem curiosa a história do chá. E bem menos tranquila e pacífica do que julgamos, do que o simples gesto de beber chá nos transmite. Num passado não muito longínquo, uma boa e fumegante chávena tinha uma origem violenta e sangrenta, di-lo Neil MacGregor, antigo director da National Gallery e do Museu Britânico, num livro fascinante, saído entre nós há um par de anos, Uma História do Mundo em 100 Objectos (Temas e Debates, 2014).

As famosas Guerras do Ópio que em 1839-1842 e 1856-1860 opuseram a Grã-Bretanha ao Império Qing, foram na verdade Guerras do Chá: o tão almejado produto que vinha da China para a Europa através da Companhia das Índias Orientais, era por esta comprado a troco de ópio, numa operação complexa em que o ópio da Índia era trocado por prata e a prata servia para comprar chá e porcelana aos chineses. Devido aos conflitos com o Império do Meio, os ingleses tinham começado, por volta de 1830, a plantar chá em redor de Calcutá, concedendo isenção de taxas alfandegárias para incentivar procura e consumo de chá indiano. A produção estendeu-se ao Ceilão e milhares de tâmiles do sul da Índia foram deslocados para o actual Sri Lanka, em condições miseráveis. Trabalhavam como escravos ou perto. Do outro lado do mundo, outros escravos, ou perto disso, labutavam incansavelmente para obter mais um produto associado ao chá, o açúcar. A escravatura fora oficialmente abolida em 1833, mas persistiu em muitas plantações das Américas, especialmente em Cuba, e o açúcar vindo do trabalho escravo dos africanos continuou a afluir à Europa a preços mais baixos do que o produzido nas plantações de homens livres.

Apesar de ser bebida corrente entre a aristocracia (não vale a pena recordar o papel de Catarina de Bragança, mulher de Carlos II, na divulgação), a difusão do chá nas classes populares inglesas beneficiou muito da expansão da via férrea, ditada pela Revolução Industrial, que permitiu levar aos confins das Ilhas Britânicas e a preços mais módicos os produtos vindos por mar dos quatro cantos do Império; e por outro lado das campanhas antialcoólicas e incentivos fiscais para que os operários trocassem a cerveja pelo chá.

Como efeito colateral da democratização do chá, a porcelana teve também de se democratizar e massificar, não sendo por acaso que, por volta de 1840, a célebre fábrica fundada por Josiah Wedgwood em 1759, começou a produzir serviços de louça mais barata, acessíveis em larga escala. Curiosamente, foi também nessa altura que a duquesa de Belford instituiu o ritual do chá das cinco, refeição ligeira a meio caminho entre o almoço de manhã cedo e o jantar às sete/oito da noite.

Nem todos, claro está, trilharam os caminhos da massificação do gosto e da popularização dos preços. Por isso, a porcelana pintada à mão continuou a ser marca de distinção e instrumento político-diplomático nas relações entre soberanos. Em vários países do Velho Continente, iam sendo fundadas fábricas de faiança e porcelana para alimentar o mercado da burguesia ascendente e em 1775 era criada na Dinamarca, sob protecção da rainha Juliana Maria, a Royal Copenhagen. Em 1824, abria a Vista Alegre e em 1873 foi fundada a Arabia, nas imediações de Helsínquia.

Com base nas experimentações do químico alemão Frantz Heinrich Müller, a instituição da Royal Copenhagen era um gesto comercial e económico, mas também político, a prova de que a nação dinamarquesa tinha uma companhia de cerâmica capaz de rivalizar com as congéneres europeias. O timbre nacional era patente logo no símbolo, que se mantém, três finas ondas azuis, cada qual representando um estreito: Øresund, entre Dinamarca e Suécia; Storebælt, entre Zelândia e Funen; e Lillebælt, entre Funen e Jutlândia.

Foi também político, segundo se diz, o projecto que animou aquela que seria a maior e a mais famosa criação da Royal Copenhagen, o serviço Flora Danica, que como o nome indica se baseia na flora dinamarquesa com cada peça representando uma espécie. Conta-se que foi concebido como oferta a Catarina II da Rússia, ávida coleccionadora de porcelanas, cuja simpatia era necessário conquistar após um incidente diplomático grave: em 1788-89, Rússia e Suécia estavam em guerra, sendo a Dinamarca aliada dos russos; contudo, na hora decisiva os dinamarqueses falharam o apoio aos parceiros do Leste, que naturalmente ficaram desapontados com a quebra de solidariedade bélica. Havia, pois, que serenar os ânimos e nada como um serviço de porcelana esplendoroso para cativar a imperatriz, a qual, todavia, acabaria por morrer em 1796, antes de a oferta ser completada.

É uma obra extraordinária: o original continha 1802 peças, de que se conservam 1530, sendo o Flora Danica o maior e mais sumptuoso serviço de porcelana produzido na Europa do século XVIII. Cada peça representava, como disse, uma planta da flora dinamarquesa, se possível à escala natural, levando a prodígios de inventividade para acomodar espécies de maior porte e formas singulares. Em 1863, retomou-se a produção, uma vez mais por razões político-diplomáticas: o casamento da princesa Alexandra, filha de Cristiano IX, e Eduardo VII, marcava a viragem nas relações da Dinamarca com o Reino Unido, passados os tempos napoleónicos em que, na Segunda Batalha de Copenhaga, em Agosto-Setembro de 1807, a Royal Navy chegou a bombardear a cidade, que perdeu 30% dos edifícios. Os velhos moldes do Flora Danica, que tinham sobrevivido ao ataque inglês, foram usados na nova produção do lendário serviço, a qual, todavia, só ficou pronta em 1864, um ano depois do casamento régio. É hoje propriedade da rainha Isabel II.

Nada disto teria sido possível sem audácia e tenacidade de um homem. Georg Christian Oeder, professor do Jardim Botânico de Copenhaga, sugeriu em 1752 que se fizesse um atlas da flora da Dinamarca. A obra, a todos os títulos monumental, foi sendo publicada em fascículos ao longo de anos - mais de um século! - (1761-1883) e é composta por 51 volumes e três apêndices. Contempla 3240 gravuras maravilhosamente coloridas das plantas selvagens nativas da Dinamarca e Noruega (e do conjunto da Escandinávia). Empreendimento típico da Idade das Luzes, fortemente inspirado na Encyclopédie, que desde 1751 vinha sendo publicada em França, sob impulso de Diderot e D'Alembert. Ciente da importância cultural e económica do projecto, que permitiu recensear todas as espécies botânicas autóctones, o governo de Copenhaga, com clarividência notável, apoiou-o desde a primeira hora, recolhendo informação sobre agricultura, florestas, horticultura e recursos naturais e transmitindo-a a Oeder.

Pela mesma altura, outros países levaram a cabo empreendimentos semelhantes, às vezes em articulação com Copenhaga. A ideia consistia em mapear toda a flora do continente, como uma "União Europeia botânica", para uso e desfrute de todos. Na Áustria, N. J. Jacquin publicou cinco volumes de Flora Austriaca, de 1773 a 1778. Na Rússia, Catarina II convidou P. S. Pallas a compilar a Flora Russica, de que só um volume saiu (1784-1788). Em Inglaterra, W. Curtis publicou a Flora Londinensis, seis grossos volumes saídos entre 1777 e 1798. Na Holanda, a Flora Batava, publicada de 1800 a 1834, com quase 2100 gravuras e, no Brasil, 1840-1915, surgiu Flora Brasiliensis, com 3837 gravuras, ainda que monocromáticas. E Portugal? Que eu saiba, só em 2010 foi criada a primeira lista de todas as plantas vasculares - autóctones, endémicas e introduzidas -, um inventário que contempla 3995 espécies. Em 1898, a Direcção-Geral de Instrução Pública determinou a publicação dum Atlas Botânico, da autoria de António Xavier Pereira Coutinho, mas era obra escolar e básica, destinada ao uso dos liceus. A primeira grande colecção em língua portuguesa, Botânica em Português , maravilhosa iniciativa de Sociedade Portuguesa de Botânica e Câmara Municipal de Lisboa, só começou a ser lançada em finais de 2020... Passamos a vida a procurar explicar o "atraso português", quando está à vista em coisas (aparentemente) pequenas como esta: em matéria de catalogação botânica, começámos 200 anos depois dos parceiros europeus.

A publicação da Flora Danica foi um caso de sucesso por dois elementos ou, se quisermos, um só: a obra era vendida por assinatura, ao ritmo de 60 gravuras ao ano, com texto em dinamarquês, alemão e latim (para conquistar público internacional), e apoio financeiro do rei, para que o preço da subscrição fosse comportável e o atlas acessível ao maior número de cidadãos. Uma sábia articulação entre poder público e sociedade civil, e o amor que os dinamarqueses têm hoje pela natureza da sua terra e as preocupações ambientais que fazem do país uma das nações mais sustentáveis do mundo não são alheios à educação ecológica que receberam ao longo de séculos, por via da Flora Danica e muitas outras coisas. Um empreendimento colectivo, para o qual todos foram mobilizados: com o patrocínio régio, foram enviadas cópias da obra aos bispos da Dinamarca, da Noruega e de Schleswig-Holstein para que as distribuíssem pelas paróquias das suas dioceses, pelas escolas, pelos sacerdotes, pedindo-se em troca que recolhessem informação botânica sobre espécies das suas regiões e as transmitissem aos organizadores do atlas.

Com base nisto, na Royal Copenhagen, um homem, Johann Christoph Bayer, por 12 anos coordenou os trabalhos, sendo responsável pela maioria das peças que compõem o serviço original, considerado, com inteira justiça, tesouro nacional da Dinamarca, hoje exposto nos castelos de Rosenborg, Christiansborg e Amalienborg.

Em Topázio, filme de Alfred Hitchcock rodado em 1969, cuja acção decorre na Guerra Fria, uma das cenas desenrola-se nas instalações da Royal Copenhagen. Até há uns anos, podíamos ver o trabalho dos artesãos. Hoje não. A Royal Copenhagen mudou as fábricas para a Tailândia, com o argumento de que, devido à "vibrante indústria de porcelana tailandesa", é aí mais fácil "recrutar artesãos especializados". A deslocalização começou por volta de 2003/04 e ainda que a companhia proclame que "mantém as raízes dinamarquesas", o Flora Danica continua a ser feito e pintado na Dinamarca e ainda tem 200 empregados na Europa, é difícil não concluir que a transferência para Oriente se deveu aos mais baixos preços da mão-de-obra asiática e de outros factores de produção. Não por acaso, também a finlandesa Arabia cessou a sua operação em Helsínquia, em 2016, transferindo-a para a Roménia e para a Tailândia.

Se a história da Flora Danica e outros atlas botânicos é ilustração eloquente do atraso português, a deslocalização dá-nos uma pálida noção do futuro da Europa e do seu irreversível declínio. Nas últimas décadas, deslocalizámos para a Ásia uma parcela significativa da produção industrial, ao mesmo tempo que abríamos à China as portas do comércio e da globalização. Agora, conscientes do erro, os líderes europeus falam em "reindustrialização". Tarde demais: o eixo geopolítico, económico e estratégico do mundo deslocou-se definitivamente para o Pacífico, com o Atlântico em perda. Em termos populacionais, estima-se que até 2050 metade do crescimento demográfico irá concentrar-se em nove países - Índia, Nigéria, Congo, Paquistão, Etiópia, Tanzânia, EUA, Uganda, Indonésia -, nenhum europeu. Nos 27, excepto a Alemanha, a percentagem de crianças dos 0 aos 14 anos vai descer até 2035. E, em 2060, chegar-se-á a um tremendo ratio de dependência de dois trabalhadores por idoso, explosivo para a manutenção dos sistemas europeus de segurança social e actuais padrões de bem-estar. Podíamos dar mais estatísticas aterradoras, mas o essencial é isto: o iluminismo esclarecido que criou a ciência de um atlas botânico e a beleza de um serviço de porcelana parece estar desaparecido dos horizontes da Europa. Nem tudo estará perdido, mas temos de mudar de vida e de atitude. Para pensarmos no ano que agora começa. Bom Ano Novo.


À memória de João Paulo Cotrim (1965-2021)

Historiador. Escreve segundo a antiga ortografia

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