"Aqui está um reino da natureza repleto de pedras preciosas, possui o encanto do mistério, do desconhecido (...) há mais de um quarto de século que o estudo e a obra tem-se revelado maravilhosa (...) todas as nevascas, em todos estes anos, entregaram-me às mãos coisas novas e belas". Wilson Alwyn Bentley escreveu estas palavras em 1910 nas páginas da norte-americana revista Technical World. O artigo, extenso, detalha o objeto de estudo que, desde a infância no estado de Vermont, detinha a atenção do americano nascido em 1865..Ao longo de 47 penosos e longos invernos no nordeste dos Estados Unidos, Bentley deixou o conforto da sua casa de solteiro em Jericho para se embrenhar nos bosques locais. Das incursões na natureza, Bentley regressava com matéria efémera. Snowflake Bentley (Floco de Neve Bentley), como era conhecido, captava em microfotografia as subtilezas geométricas dos flocos de neve. Numa carreira autodidata de mais de quatro décadas, entre os finais do século XIX e a primeira metade do século XX, Wilson despertou o interesse do mundo para os padrões dos flocos de neve. Em 1925, o "caçador" de neve, meteorologista e fotógrafo amador, escreveu num dos muitos artigos que assinou em revistas científicas: "sob o microscópio descobri que os flocos de neve eram milagres de beleza e parece-me uma pena que essa beleza não fosse vista e apreciada por outros"..Sem que alguma vez tenha registado direitos de autor sobre o seu trabalho, Wilson Bentley deixou um legado de mais de 5000 fotografias de flocos de neve, atualmente repartido em instituições de dois continentes. No século XXI, as minúsculas partículas de cristais de gelo que rodaram em torvelinhos nas nevascas de há mais de um século, mantêm-se intactas perante os nossos olhos. "Quando um floco de neve derrete, o padrão que o constituía perde-se para sempre", assinalava Bentley..Nascido a 9 de fevereiro de 1865, Snowflake Bentley olhava para os invernos do Vermont com um humor diferente dos seus conterrâneos. Os dias de nevascas que se arrastavam de outubro, por vezes até maio, empurravam o jovem Wilson para o exterior. A Bentley fascinava-o o carácter fátuo dos flocos de neve, alguns tão finos como cabelos humanos. Uma curiosidade espicaçada quando, aos 15 anos, Bentley recebeu das mãos de sua mãe, uma professora aposentada, o microscópio que lhe garantiu mergulhar o olhar num glacial mundo geométrico e num primeiro ensaio para eternizar os flocos de neve, reproduzindo-os em desenhos sobre papel. Atividade que, antes, em 1864, detivera a atenção da americana Frances Chickering, autora do livro Cloud Crystles: A Snowflake, álbum que colige centenas de réplicas de flocos de neve como filigranas recortadas em papel..Wilson foi muito mais longe. Encontrou numa tecnologia inovadora na época, a fotografia, a aliada das descobertas que fazia ao microscópio. Engenhoso, o jovem fotógrafo aperfeiçoou o método de capturar flocos de neve sobre veludo negro e daí transpô-los para a lâmina do microscópio. Wilson Bentley fê-lo tão bem que, durante décadas, poucos fotografaram flocos de neve. A 15 de janeiro de 1885, Snowflake Bentley captou a primeira fotografia da história de um floco de neve. Wilson, isolado no seu mundo de invernos, sem preparação científica formal, encontrou no professor de história natural da Universidade de Vermont, George Henry Perkins, o parceiro para um primeiro artigo numa publicação especializada. Em maio de 1898, a revista Appleton´s Popular Scientific Monthly, entregou as suas páginas ao extenso artigo alimentado pela verve de Wilson e Perkins..A peça sustinha que não havia dois cristais de neve iguais. Todos eram diferentes na sua singularidade talhada por diferentes temperaturas, humidades, vento, altitude, entre outros fatores. Formulação que Bentley reiteraria em publicações posteriores em revistas como a National Geographic, em duas peças, respetivamente em 1904 e 1923, Nature, Popular Science e Scientific American. As páginas da 14.ª edição da Enciclopédia Britannica, coligida entre 1926 e 1929, receberam o contributo de Snowflake Bentley na entrada "neve". Na época, o fotógrafo captava todas as formas de gelo e afirmou-se como o primeiro americano a registar a dimensão das gotas de chuva..Wilson era, então, um homem reconhecido pelo seu trabalho, após anos de sucessivos infortúnios. Ainda no século XIX, recebera um "não" do respeitado Instituto Smithsonian, por considerar a instituição o trabalho do fotógrafo amador e desprovido de bases científicas. Anos mais tarde, a mesma instituição, rendia-se ao diligente trabalho de Bentley: "há alguns anos, Tammy Peters [funcionária do Smithsonian], encontrou uma caixa de armazenamento com uma etiqueta que poderia servir de título a um livro de Borges: "Memorandos sobre o novo soprador de ovos e diversos itens". Dentro, havia, de facto, uma ferramenta para soprar ovos, placas fotográficas que retratavam cenas da expedição Harriman Alaska, de 1899, e centenas de negativos em placas de vidro. Mantidas contra a luz, as imagens revelaram fiadas de cristais de seis pontas", escreve o escritor Owen Edwards nas páginas da revista do Smithsonian, no artigo intitulado "The Man Who Revealed the Hidden Structure of Falling Snowflakes"..O legado de Wilson Bentley reside atualmente em instituições como a Jericho Historical Society, na sua cidade natal, no Buffalo Museum of Science, no já citado Smithsonian e no Museu de História Natural, em Londres. Em 1899, esta entidade adquiriu 355 microfotografias de Wilson, entre elas os cristais de gelo captados na histórica grande tempestade de 28 de fevereiro de 1898. Wilson trabalhou, então, sob temperaturas de - 25 ºC. O inverno que tanto fascinava Wilson seria o seu carrasco. A 23 de dezembro de 1931, decorrente de uma pneumonia, Snowflake Bentley morreu, semanas antes da publicação do seu livro Snow Crystals, monografia amplamente ilustrada com 2500 imagens e ainda hoje reeditada..Em 1925, Mary B. Mullet, jornalista da American Magazine, sentou-se frente a Wilson e escutou a sua história, magnificamente contada no artigo "The Snowflake Man". Humilde, apaixonado pelo trabalho da sua vida, mas também desencantado, Bentley deixou a Mullet testemunho da primeira palestra que proferiu ilustrada com as suas fotografias: "anunciei que daria uma palestra na aldeia e mostraria as minhas fotografias. Eles [flocos de neve] são lindos, sabe, maravilhosamente lindos quando projetados na tela. Mas quando chegou a noite da minha palestra, apenas seis pessoas se apresentaram para me ouvir. Era grátis, veja bem! E foi uma noite agradável. Mas eles não estavam interessados"..dnot@dn.pt