"Hey, seus filhos da mãe que estão aí a fazer mosh em tronco nu à frente do palco. Estou convosco", disse Keith Flint à multidão que assistiu ao seu último concerto. Foi a 5 de fevereiro, na Trusts Arena de Auckland, Nova Zelândia. Logo a seguir começou a cantar um tema do álbum No Tourists, que os Prodigy lançaram em novembro: "Now/ Turn the flame higher/ We live forever." We live forever - vivemos para sempre.Às 08.10 de segunda-feira 4 de março, a polícia encontrou o corpo de Flint sem vida na sua casa em Brook Hill, no condado de Essex, a noroeste de Londres. Horas depois, a banda confirmava a morte da sua mais proeminente figura. Liam Howlett, que fundou os Prodigy em 1990, estava desolado: "As notícias são verdadeiras. O nosso irmão Keith tirou a sua própria vida neste fim de semana", escreveu no Instagram do grupo..A notícia foi uma surpresa para toda a gente. Ainda mais porque, na última aparição pública, Flint tinha sido Flint. "Era bastante óbvio que eles se estavam a divertir lá em cima", escreveu o jornalista Karl Pushmann no New Zealand Herald no dia a seguir ao concerto de Auckland. "Foi um espetáculo vivo, urgente, brutal como o raio. Sem baladas, momentos sossegados, sem empatar o que quer que fosse. Só energia pura.".Um ícone do demónio.Flint tinha 49 anos, sim, mas não é injusto dizer que os viveu como se valessem o dobro. Era simultaneamente um dos maiores ícones da música global e era o tipo que ia a concertos em caves soturnas de Londres e punha-se a dançar no meio de toda a gente. Ou era aquele tipo que tinha comprado um bar na cidade onde cresceu para servir umas cervejas aos amigos. Que se punha numa moto e ia a Espanha fazer uma corrida de endurance..O mundo há de lembrar-se dele um louco, um louco, um louco de olhos esbugalhados e que dançava como um pugilista possuído pelo demónio minutos antes de entrar no ringue. Flint nunca foi o mentor da banda, nem sequer se pode dizer que fosse a sua alma - esse era Liam Howlett, que percebeu que os Prodigy precisavam de um frontman e esse frontman só podia ser Flint. Então ele tornou-se a sua imagem e a sua força, o símbolo de tudo o que a banda tinha para nos dizer..Uns anos antes de aparecerem os Prodigy, começava a perceber-se que a batida não precisava de ficar fechada em festas rave. E em 1997 os rapazes lançam The Fat of the Land, o seu terceiro álbum, dissipando quaisquer dúvidas. Do Essex chegava um techno agressivo e incendiário, misturado com um punk bem forte que, dúvidas houvesse, nunca tinha morrido. E o que aconteceu foi simplesmente isto: partiram a loiça toda..Se o primeiro álbum, Experience, lhes deu boas críticas na área do techno, em 1992, o segundo, Music For The Jiltered Generation (1994), já parecia abrir portas ao terceiro. E o terceiro foi uma revolução..Os singlesBreathe e Firestarter, com Keith Flint a assumir o papel de vocalista, chegaram ao primeiro lugar nos tops do Reino Unido e o próprio álbum (The Fat of The Land incluía o polémico Smack my Bitch Up, que, mesmo acusado de misoginia, ganhou dois prémios MTV) esteve em primeiro nas tabelas de Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha e Holanda. E não foi apenas pela música. Na altura em que toda a gente andava preocupada com o ecstasy, apareceu este tipo que aceitava de braços abertos todo o diabo que o mundo via nas raves..Nascia assim o break beat, um novo género dentro da eletrónica que usava os pontos de paragem de outros ritmos e as repetições dos sintetizadores. Os Chemical Brothers, Fatboy Slim, até os Groove Armada acabariam por seguir a mesma escola. Flint era o rosto e era a dança disto tudo. De repente, um miúdo malcomportado de um bairro pobre de Londres tornava-se o símbolo do novo movimento que ocuparia as pistas de dança do mundo no final da década - e que entraria a pés juntos no novo milénio..Aventuras de um cão pastor.Foi depois de sair da escola que Keith Flint se mudou para Braintree, um subúrbio londrino no Essex que a partir do final da década de oitenta se revelaria um fenomenal centro de música eletrónica. Como aluno, tinha sido uma nódoa, e agora o rapaz vivia de biscates que nunca duravam muito tempo. Mas parecia haver um novo mundo preparadinho para o receber..Na verdade, a vida de Flint cumpria-se no circuito dos clubes que havia espalhados ao longo da Via Rápida 24 - e não foram poucas as vezes que o contrataram como dançarino. "Ele tinha aquele ar de tudo o que cheirava a transgressão, era bem cool", haveria de dizer anos mais tarde Liam Howlett numa entrevista à BBC. "Nessa altura, usava sempre um casaco afegão, por isso toda a gente lhe chamava cão pastor.".Foi assim que Liam e Keith se conheceram. Flint tinha ouvido o DJ e pediu-lhe umas samples no início de 1990. Quando ouviu aquilo, percebeu de caras que queria fazer parte do processo todo. Juntaram-se Liam na composição e nas teclas, Maxim como MC, Leeroy Turnhill nos computadores, Sharky e Flint como dançarinos. E Flint dançava que se fartava, até que em 1997 assumiu o microfone. E, catrapum, os Prodigy explodiram.."Passei os últimos seis anos a expressar-me com o meu corpo, a gritar com o meu corpo", diria pouco depois da saída do terceiro álbum à Rolling Stone. "É como um condutor da música. Numa festa, quando ouvia uma coisa minha, eu queria que toda a gente soubesse que era meu. Sim, foda-se, éramos só nós e dançar e a gritar. E agora isto é uma extensão da mesma coisa. Se eu puder agarrar um micro e gritar Fucking Hell! Fucking Hell, faço-o. A atitude punk dos Prodigy é mesmo essa.".Os dois primeiros álbuns dos Prodigy foram relativos sucessos, mas com o terceiro chegaram ao Olimpo - e foi provavelmente por isso que demoraram sete anos a lançar um novo disco. Em 2004 veio Always Outnumbered, Never Outgunned, que era muito mais vocal e até vendeu bem, mas não convocou grandes aplausos da crítica. Entretanto a banda recuperou posição com Invaders Must Die (2009) e The Day Is My Enemy (2015). No ano passado voltaram com uma força dos diabos com No Tourists e lançaram-se por uma digressão na Austrália..Em maio arrancariam com um tour pelos Estados Unidos, mas ninguém sabe se os concertos vão ser cancelados. Ninguém sabe, aliás, se haverá Prodigy sem Flint. A última vez que os rapazes estiveram em Portugal foi em 2018, no North Music Festival, da Alfândega do Porto. Passaram aliás pelo país nove vezes, a primeira das quais em 1996, no festival Super Bock Super Rock. As críticas disseram sempre o mesmo: grandes concertos. Festas como estas não haverá tão cedo..O festim por inteiro.Flint tentou criar a sua própria banda, chamava-se precisamente Flint, e o que queria fazer era bem mais punk do que eletrónico. Mas o álbum e o single acabariam por nunca ver a luz do dia. As incursões do cantor fora dos Prodigy acabaram então por ser menos musicais do que seria de esperar. Mas uma certeza ele confirmou sempre: a vida era para celebrar..Competiu em várias corridas de endurance de motos, a primeira das quais em Inglaterra, em 1996. Ficou em terceiro lugar e entusiasmou-se com a ideia, porque anos mais tarde haveria de criar o seu próprio clube, o Team Traction Control, que ainda hoje concorre no circuito britânico - e em 2015 ganhou até duas provas na corrida todo-o-terreno da ilha de Man, com o piloto Ian Hutchinson ao comando..Há uma história que ele gostava de repetir aos amigos: a da vez que foi de moto até Espanha, com Lee Thompson, saxofonista dos Madness, para assistirem ao grande Prémio de Motociclismo. Viajava que se fartava, em abono da verdade, sobretudo para o Médio Oriente..Namorou quatro anos com uma estrela de televisão, era casado com a DJ japonesa Mayumi Kai - que se autointitula DJ Gedo Super Mega Bitch. Foi junto com ela que tomaram em 2014 a decisão de comprarem um pequeno bar na aldeia de Pleshey, perto de onde cresceu. Ali, no Leather Bar, tinha Flint perdido uma parte da sua juventude, agora queria voltar atrás e ter um sítio onde servir copos aos amigos..Ficou três anos atrás do balcão, depois fartou-se e justificou a venda no TripAdvisor, onde não paravam de chegar boas críticas. "Isto não é um gastropub, foda-se, é um sítio com cerveja mesmo boa para os bêbebos terem onde se espatifar." O punk não está morto, mas com Flint desapareceu um bocadinho.