Carlos e Tiago estão emigrados em Helsínquia, na Finlândia, e além da morada partilham um objetivo, o combate ao desperdício alimentar: enquanto o mangualdense gere um restaurante sem caixotes do lixo, o segundo, portuense, é voluntário num frigorífico comunitário..Numa altura em que a presidência da União Europeia (UE) é assumida pela Finlândia, o tema da sustentabilidade ambiental foi colocado na agenda comunitária, com Helsínquia a querer uma região mais 'verde', mas os esforços do país - e destes emigrantes - não são de agora..No restaurante de Carlos Henriques, que abriu portas em Helsínquia no início do ano passado, a meta de zero desperdício é seguida à letra, não fosse este o segundo restaurante no mundo com esta designação (após um primeiro que surgiu no Reino Unido há quatro anos)..No "Nolla" (que, em finlandês, significa zero) tudo foi pensado com esse objetivo: as fardas dos funcionários foram feitas de antigas vestimentas de hospitais, os copos surgiram de garrafas de vidro reutilizadas, a cozinha não tem caixotes do lixo, o óleo e as bebidas destiladas chegam ao espaço em barris, os alimentos vêm todos de produtores locais e a cerveja é artesanal e ali produzida..Proibidas são as embalagens, os sacos a vácuo e a película aderente.."Foi preciso repensar a estrutura toda de um restaurante", confessa à agência Lusa Carlos Henrique, um jovem de 32 anos, natural de Mangualde, que reside há sete em Helsínquia..Quase em tom de anedota, Carlos conta a história de um português (ele), um sérvio e um espanhol que, um dia, trabalhavam como chefs de cozinha num restaurante de luxo e começaram a idealizar uma cozinha sem desperdício orgânico, já lá vão alguns anos.."Ainda há muito desperdício na área da restauração e quem disser o contrário está a mentir", atesta, agora em tom sério..Necessário foi um ano e meio de pesquisa e um investimento de 350 mil euros (80 mil dos quais provieram de financiamento comunitário, o crowdfunding) para criar o "Nolla", servindo hoje menus que rondam os 60 euros por pessoa de "comida mediterrânica com ingredientes finlandeses".."Não temos caixotes do lixo na cozinha porque esse seria um ponto fácil de saída [...]. Todos os chefs têm uma pequena caixa que é transparente - e pode ser vista e controlada por todos - onde põem o próprio desperdício e isto é muito importante", vinca Carlos..O jovem português explica que "a ideia do 'Nolla' não é que se tenha de usar tudo, é que se tenha a consciência do que não se está a usar", já que, no setor da restauração, "o desperdício normalmente é normalizado e aqui não é".."Estamos a deitar fora e sabemos que o temos de evitar", aponta, contando que, o que não é possível reaproveitar, como as espinhas ou os ossos, é colocado num compostor comprado para o restaurante que consegue processar 85 quilos de compostagem num só dia..Mas originalidade não falta a estes jovens que, recentemente, descobriram que, cozendo cascas de abóbora por alguns dias, conseguem uma textura semelhante à do alho fermentado, que podem usar para criar molhos.."Num mundo ideal, deveríamos evitar o lixo de ser produzido e essa é a mensagem do Nolla", adianta..Da necessidade, ao voluntariado no frigorífico comunitário.Também para evitar que a comida tenha este fim surgiu o "Keru FoodSharing", um frigorífico comunitário instalado numa coletividade perto do centro de Helsínquia que enche barrigas a pensar no ambiente..O investigador e artista visual portuense Tiago Martins Pinto, de 34 anos, chegou à capital finlandesa em setembro do ano passado, na mesma altura em que o "Keru" arrancou..E se hoje é a vontade de acabar com o desperdício alimentar que o faz ser um dos 60 voluntários daquele projeto, foi a necessidade de buscar comida que o fez chegar até ele, por dificuldades económicas quando aterrou na capital finlandesa..Com olhos postos no futuro, Tiago diz à Lusa que o "Keru" tem como objetivo combater o desperdício alimentar, mas acaba por abranger outros fins.."Claro que isto depois também abrange outras áreas, como o cariz social, o significado de pertença para os nossos voluntários, o sentimento de comunidade e [a possibilidade] de se conhecer novas pessoas, o desenvolvimento sustentável e a educação ambiental e ainda a partilha de experiências culturais", elenca..E já que o "Keru" é feito de sustentabilidade, para recolher cerca de 100 quilos de comida diariamente, que provêm de pequenos supermercados da zona, é privilegiado o uso da bicicleta, ainda que no inverno isso seja impossível por a comida congelar..Voluntários são sobretudo estrangeiros, alguns refugiados.À disposição das mais de 20 pessoas que ali vão buscar comida com frequência estão, normalmente, carne, peixe, laticínios, pão, fruta e vegetais..Enquanto a maior parte das pessoas que ali vão buscar comida são finlandeses, entre estudantes e idosos, os voluntários são quase todos estrangeiros, dos quais fazem parte alguns refugiados e alunos internacionais..Tiago não conhece e afirma não querer saber quem são estas pessoas - já que o projeto prevê o seu anonimato, apenas tendo de indicar o peso da comida levam consigo -, mas espera conseguir mudar bocadinho a sua vida e a sua visão, como acontece com os voluntários.."Cria-se aqui uma consciência nas pessoas que fazem voluntariado cá e nas pessoas que vêm cá. De, por exemplo, quando se vai às compras, ir-se às coisas em promoção, à fruta mais tocada que também está boa ou até mesmo em reduzir o consumo de novos produtos e vires cá levar estes, que também estão bons, e evitas que vão para uma lixeira produzir desperdício", realça Tiago..Desde o início do projeto até agora, foram mais de 10 mil os utilizadores daquele frigorífico comunitário e quase 20 mil as toneladas de alimentos reaproveitados.