Filme italiano encena invulgar situação de luto

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Cinema. 'Caos Calmo' em exibição nacional

Filme apresentado em Berlim é realizado por Antonello Grimaldi

De que falamos quando falamos de felicidade? Afinal de contas, a pergunta não é filosófica, mas eminentemente prática. É uma pergunta que, todos os dias, nos entra pelas nossas casas através de telenovelas e anúncios de telemóveis, nas palavras de políticos e figuras do jet-set: todos falam da sua felicidade e, por vezes, garantem-nos mesmo que têm receitas para a nossa felicidade...

Se outras razões não houvesse, estas bastariam para fazer de Caos Calmo um filme eminentemente actual. Nele se conta a história de Pietro Paladini, administrador de uma empresa de televisão (o pormenor não será secundário) que, na sequência da morte acidental da mulher, passa a viver uma estranha rotina: todos os dias acompanha a filha Claudia ao colégio, sem depois se dirigir ao emprego; fica no jardim em frente ao colégio, vai lendo, frequentando o café, conhecendo pessoas. Com o decorrer dos dias, Pietro acaba mesmo por ir recebendo colegas e familiares, como se tivesse criado um novo "escritório" que tem tanto de posto profissional como de confessionário.

Produção italiana apresentada no Festival de Berlim do passado mês de Fevereiro, CaosCalmo está, em termos temáticos, muito próximo do padrão de telefilmes familiares que faz parte da produção regular de algumas televisões europeias (nomeadamente em Itália e França). Em todo o caso, demarca-se das suas convenções e do seu determinismo, antes do mais graças a um trabalho de argumento que em nenhum momento procura encerrar as personagens em "modelos" dramáticos ou moralistas.

E se é verdade que a realização de Antonello Grimaldi (precisamente alguém com experiência dividida entre cinema e televisão) possui a vantagem da sobriedade, não é menos verdade que é difícil imaginar CaosCalmo sem a muito contida, e também muito subtil, composição de Nanni Moretti na personagem de Pietro. Moretti consegue colocar em cena o desconcertante paradoxo de um homem dividido entre as obrigações sociais que decorrem do seu próprio luto (de acordo com as regras desse luto, as outras pessoas esperam que ele se comporte de forma "lógica") e a súbita descoberta de um vazio interior que, afinal de contas, ele próprio desconhecia.

Ao contrário de uma telenovela, a história de CaosCalmo, adaptada de um romance de Sandro Veronesi, não se encerra num esquema de "soluções", "inocentes" e "culpados" (mesmo se é verdade que o tema da culpa perpassa por todo o seu desenvolvimento). O filme acaba mesmo por possuir a transparência simples, porventura naïf, de um retrato social que, para lá do jogo das aparências, nos revela a solidão das suas personagens. Talvez possamos defini-lo como um conto moral cuja "mensagem", algo irónica, está condensada no próprio título: este é um sistema de relações profundamente abalado nos seus valores e certezas e, ao mesmo tempo, um universo que se distingue por uma bizarra e contagiante serenidade. Dito de outro modo: mesmo sob o efeito normativo da televisão, o cinema social italiano continua vivo.

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