Filme dos Queen ensombrado por acusações de abuso sexual do realizador
Bryan May, músico dos Queen, viu-se forçado a pedir desculpa depois de defender publicamente o realizador de Bohemian Rhapsody, Bryan Singer. "Têm de tomar conta da vossa vida e parar de dizer aos outros o que fazer. E têm de aprender a respeitar que um homem e uma mulher são inocentes até prova em contrário", escreveu o músico num comentário a uma publicação na sua conta de Instagram no mesmo dia em que a revista The Atlantic publicou uma reportagem de investigação na qual dá voz a vários homens que dizem ter sido vítimas de abuso sexual por parte de Bryan Singer, atualmente com 53 anos, quando eram ainda menores. As reações ao seu comentário foram tão violentas que Bryan May sentiu que tinha de se explicar: "Não fazia ideia que dizer que alguém era inocente até prova em contrário poderia ser ser interpretado como defender Bryan Singer. Não tinha qualquer intenção de o fazer."
As acusações agora reveladas pela The Atlantic não são novidade em Hollywood mas não deixaram ninguém indiferente. Rami Malek, por exemplo, o ator que está pela primeira vez nomeado para um Óscar pela sua interpretação de Freddy Mercury no filme que conta a história do vocalista dos Queen, fez questão de sublinhar que quando aceitou participar em Bohemian Rhapsody não tinha conhecimento do comportamento impróprio do realizador.
Na quinta-feira a organização não-governamental norte-americana GLAAD, fundada por pessoas LGBT, retirou Bohemian Rhapsody das nomeações para os prémios que atribui anualmente. O artigo "expôs uma realidade que não pode ser ignorada nem ser tacitamente premiada", afirmou a organização. Também o grupo "Times'Up", criado por mulheres da indústria cinematográfica norte-americana para denunciar casos de abuso sexual, considera as acusações contra Singer "horríveis" e que devem ser investigadas.
Até agora, Hollywood tem dado a Bryan Singer benefício da dúvida. Em comunicado, o realizador acusa a reportagem de ser uma "calúnia homofóbica", cuja publicação foi "convenientemente aprazada" para tirar partido do sucesso de Bohemian Rhapsody. E a Millennium Filmes já confirmou que será ele a dirigir Red Sonja, tal como estava previsto. Trata-se de um filme que adapta o comic Red Sonya, uma guerreira de cabelo ruivo e ágil com a espada. Mas não se sabe ainda muito mais sobre a produção.
Resta saber como reagirá a Academia de Hollywood, que esta semana anunciou os nomeados para a cerimónia de 24 de fevereiro: apesar de Bryan Singer não estar nomeado, o filme tem cinco nomeações.
"Depois das notícias sobre Harvey Weinstein, toda a gente pensou que Bryan Singer seria a seguir", afirmou um ator à The Atlantic. As histórias sobre as festas em casa de Bryan Singer e os rapazes que as frequentavam eram comentadas em Hollywood mas, até agora, sem consequências para o realizador.
Nos últimos 20 anos, Bryan Singer fez filmes como Os Suspeitos do Costume, Super-Homem, O Regresso, Valquíria e quatro títulos da série X-Men e tornou-se um dos realizadores mais bem sucedidos de Hollywood. Bohemian Rhapsody foi um dos maiores sucessos de bilheteira 2018 e já ganhou dois Globos de Ouro (incluindo o de Melhor Filme Dramático) . Mas na cerimónia dos Globos de Ouro o seu nome praticamente não foi mencionado. Ninguém lhe agradeceu. Singer foi o elefante na sala.
Apesar de o seu nome estar nos créditos do filme, a verdade é que o realizador tem-se mantido afastado da ribalta. Singer foi despedido da 20th Century Fox em dezembro de 2017, menos de três semanas antes do fim da rodagem do filme, tendo sido substituído por Dexter Fletcher. Poucos dias depois, a 7 de dezembro de 2017, Cesar Sanchez-Guzman, de Seattle, apresentou uma queixa contra Singer, acusando-o de o ter violado em 2003, quando Guzman tinha apenas 17 anos. No dia seguinte, a Deadline Hollywood publicou uma entrevista com Bret Tyler Skopek, ex-namorado de Singer, em que este descrevia uma vida entre drogas e orgias.
De então para cá, a revista The Atlantic passou um ano a investigar as várias acusações, tendo contactado mais de 50 pessoas, incluindo quatro alegadas vítimas que contam pela primeira vez a sua história: homens que na altura dos acontecimentos seriam ainda menores (Singer estaria na casa dos 30) e que contam como foram seduzidos pelo realizador ou mesmo violados. "O retrato de Singer que emerge [destas declarações] é o de um homem perturbado, que se rodeava de adolescentes vulneráveis, muitos deles afastados das suas famílias", escreve Th e Atlantic no artigo publicado esta semana. "Os seus testemunhos sugerem que Singer não agia sozinho, era ajudado por amigos e conhecidos que lhe traziam rapazes. E ele foi auxiliado, de forma indireta, por uma indústria em que ter produções de sucesso confere poder a alguém: muitas das fontes entrevistadas insistiram em manter o anonimato, com medo de prejudicar a sua própria carreira."
Victor Valdovinos é um dos que dá o nome e o rosto à reportagem e conta como, com apenas 13 anos, foi abusado por Singer quando participava como figurante numa cena de Sob Chantagem (1998) - a polémica cena do duche, com jovens todos nus, após a qual vários jovens apresentaram uma queixa dizendo que foram forçados a despir-se e que se sentiram assediados. Valdovinos diz tudo aconteceu nos intervalos da rodagem. Conta que nessa altura nunca tinha sequer dado o seu primeiro beijo, foi apanhado desprevenido e não teve reação quando Singer se aproximou e lhe tocou nos genitais, enquanto lhe dizia coisas como: "És tão bonito... quero mesmo trabalhar contigo... tenho um Ferrari.. vou cuidar de ti". Depois disso, o rapaz transformou-se, deixou a escola, foi pai muito jovem e acabou por ter uma vida atribulada. Só quando, vinte anos depois, viu Weinstein a ser preso é que Victor se questionou se a sua vida teria sido diferente se aquele episódio não tivesse acontecido e decidiu falar sobre o assunto.
Naquela altura, Bryan Singer era já um realizador conhecido e tornaram-se faladas as festas que dava na sua casa, em Hollywood. Ben (nome fictício) teria 17 ou 18 anos quando foi a essas festas e se envolveu com Singer: "Ele era um predador, dava álcool e drogas aos rapazes e depois fazia sexo com eles", contou. Mas, pelo menos na sua experiência, "nunca foi uma situação de agarrar e violar." Há mais dois homens, na reportagem identificados como Andy e Eric, que contam como conheceram Bryan Singer em festas ou através de amigos, em Los Angeles, e se envolveram com ele. Eles tinham 15 e 17 anos, respetivamente. Singer estava, nesta fase, bastante próximo de Marc Collins-Rector e da Digital Entertainment Network (DEN), uma produtora que acabou por ter problemas legais por fazer filmes pornográficos gay com jovens menores. Collins-Rector chegou a ser preso por pedofilia.
A primeira vez que Bryan Singer foi acusado publicamente de comportamentos incorretos foi em 2014: Michael Egan entrou com um processo num tribunal do Havai alegando que Singer fazia parte de um grupo de homens (onde se incluía, por exemplo, Collins-Rector) que "exploravam sexualmente rapazes". Os factos tinham acorrido em 1999, quando Egan tinha 15 anos. Mas o seu testemunho estava cheio de incongruências e ele acabou por aceitar um acordo proposto pelo advogado de Singer, Jeff Herman. Outras acusações surgiram entretanto mas nunca chegaram ao tribunal. O atual advogado de Singer, Andrew B. Brettler, recordou à The Atlantic, que o realizador nunca foi preso nem sequer acusado judicialmente por nenhum crime e que continua a negar ter relações sexuais com rapazes menores.
Em setembro de 2017, quando começou a produção de Bohemian Rhapsody, os diretores da 20th Century Fox tiveram algumas reservas em atribuir a realização a Bryan Singer, que era conhecido por fazer birras e desaparecer a meio das rodagens, mas como só ele tinha o apoio dos membros da banda Queen acabaram por aceitar o projeto. Mas vários elementos da equipa contaram à The Atlantic que o ambiente na rodagem era péssimo, Singer tinha ataques de fúrias, esteve dias fechado no hotel sem falar com ninguém e chegou a pedir à produção mais um mês de rodagem, o que lhe foi recusado. Parte do seu comportamento poderá ser explicado com os excessos de álcool e comprimidos, segundo algumas pessoas próximas. Terá sido esse comportamento que levou ao seu despedimento.
Só depois surgiu Cesar Sanchez-Guzman, atualmente com 32 anos, que acusou Bryan Singer de o ter violado quando ele tinha 17 anos, em 2003. No entanto, a acusação está neste momento suspensa porque Guzman tem outros processos em curso em tribunal - alegadamente terão sido os advogados de Singer a denunciar à justiça várias irregularidades no IRS e no processo de imigração de Guzman.
Num artigo publicado na Salon, Rachel Leah compara este caso ao de Harvey Weinstein. Já toda a gente em Hollywood sabia do que se passava mas estavam todos a olhar para o lado. Agora que a história foi impressa, vão dizer que não sabia de nada. "Quem vai apoiar os homens que fizeram as denúncias?", pergunta. Será que a justiça vai conseguir lidar com estes casos ou eles irão ficar-se pelas acusações na imprensa?