Filme baseado em livro de Saramago abriu festival
Em 1998, o realizador brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus, O Fiel Jardineiro), tentou comprar os direitos para cinema do livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. O escritor português recusou. 'O cinema destrói a imaginação', justificou então o Nobel da Literatura a Meirelles, que recordou o encontro ontem, durante a conferência de imprensa de Blindness, o filme baseado naquela obra, que abriu o Festival de Cannes, em competição, numa projecção em que jornalistas e críticos lhe reservaram um acolhimento bastante frio.
Um ano antes de Fernando Meirelles ter ido falar com Saramago, o actor, realizador e argumentista canadiano Don McKellar e o produtor Niv Fichman tinham tido a mesma ideia, mas o agente de Saramago comunicou-lhes que os direitos do livro não estavam disponíveis para cinema.
McKeller e Fichman não desistiram, porque estavam fascinados por aquela narrativa de uma inexplicável epidemia de cegueira que afecta subitamente, primeiro uma cidade, depois toda a humanidade, com a excepção de uma mulher, e conduz ao colapso da civilização. Até que em 1999, já o escritor havia ganho o Nobel, receberam um telefonema do seu agente: Saramago ia recebê-los em Lanzarote.
Após um encontro, escritor e compradores chegaram enfim a acordo. Don McKellar recordou ontem que José Saramago se mostrou muito sensível ao facto dele e de Niv Fichman serem canadianos, porque 'não queria que o seu livro fosse transformado num filme de Hollywood'; e que pôs como condição para ceder os direitos de Ensaio Sobre a Cegueira, que tal como sucede no livro, a história fosse ambientada numa cidade não identificada, de um país nunca mencionado.
McKellar e Fichman viram de imediato que um filme baseado numa obra como esta pedia um realizador que pudesse conciliar 'energia cinematográfica e naturalismo', e chegaram a conclusão que esse realizador tinha que ser... Fernando Meirelles. Este trouxe consigo a equipa de Cidade de Deus para pôr de pé Blindness (o titulo no Brasil será Cegueira), e recrutou para o projecto actores como Mark Ruffalo, Julianne Moore, Danny Glover, Alice Braga ou Gael Garcia Bernal, com o próprio Don McKellar também a entrar no elenco.
'O que me atraiu antes de tudo no livro foi o tema da fragilidade da civilização em que vivemos. Depois, fui encontrando na história outras camadas de significado: psicológicas, políticas, sociológicas', explicou ontem Fernando Meirelles, enquanto McKeller salientava 'o lado alegórico do livro, que pode resumir todas as grandes tragédias dos nossos tempos, da epidemia de SARS ao Katrina'. Saramago ainda não viu o filme, mas Fernando Meirelles diz que conta mostrar-lho em breve.
Visão apocalíptica
Rodado em São Paulo e Montevideu, que passam por uma mesma grande metrópole não-identificada, onde convivem pessoas de diversas raças e idiomas (uma inevitabilidade do formato de co-produção internacional), Blindness segue muito de perto o livro de Saramago. E surpreende desde logo por Meirelles se abster da visualidade, do cromatismo exacerbados e da urgência narrativa de Cidade de Deus e O Fiel Jardineiro, adoptando um estilo bem mais discreto. Embora por outro lado abuse do ponto de vista densamente leitoso dos cegos, como se não se fiasse na imaginação do espectador para perceber que esta estranha cegueira colectiva e 'branca', e não negra.
O deslizamento gradual da situação para o grau zero da dignidade humana, a crescente degradação física e moral, e os actos desesperados das personagens no hospital-prisão são filmados por Meirelles de forma sinistramente realista, mas nunca abertamente gráfica. Para lá da alegoria da degradação social extrema ou de outras interpretações que possam ser feitas da história, o que sobressai mais poderosamente em Blindness é o lado de ficção científica pós-apocalíptica: a visão desolada de uma grande cidade morta, pejada de destroços, cadáveres e lixo, cheia de cegos que avançam aos tropeções, sozinhos ou em fila indiana, a procura de comida, água, abrigo, o toque de algo familiar. É o que resulta mais postiço e o microcosmos de humanidade racial, etária e politicamente correcto representado pelo grupo pastoreado por Julianne Moore. Óbvio até para um ceguinho.