Filipe Pinto-Ribeiro: "As primeiras aulas que tive foram a cantar com o meu pai à guitarra"
Como chegou ao piano? Havia piano lá em casa?
Havia em casa da avó. O meu pai tocava guitarra, tinha uma clássica e uma portuguesa. A música estava sempre presente. Ele tocava tudo, nós cantávamos imenso com ele, dos Beatles à música portuguesa. No gira-discos, Tchaikovsky, Beethoven e por aí fora. Era tudo muito musical e flexível, sem barreiras. Tive aulas de piano aos 4 anos, se calhar fui eu que pedi.
Nem chegava aos pedais.
É verdade. Contam que estava em casa a simular que tocava piano. Se calhar por aí. A minha primeira professora tinha um método para crianças que não vi em mais lado nenhum. Punha uma fitinha com pioneses virados para cima, naquela madeirinha onde a tampa do piano cai, para não encostarmos as mãos - o que não tem problema nenhum. Aquilo era uma tortura. A casa era muito escura e o quarto do piano era muito escuro.
Apesar disso continuou no piano?
Chegava ao carro, a minha mãe estava à espera cá fora, e eu chorava, não queria "ir à bruxa". Ela não compreendia porque nunca tinha visto os pioneses. Ganhei aversão ao piano.
Como sobreviveu a isso?
Não foi fácil. Continuei porque adorava música mas o piano era uma tortura. Deixei essas aulas ao fim de uns meses. Retomei, passados talvez dois anos, numa academia que tinha várias músicas. Num momento podia estar a ouvir um minuete de Bach e a seguir podia vir uma canção dos Queen ou o Memories, depois Mozart. Pedagogicamente não faz sentido mas para mim foi a forma de ultrapassar esse trauma.
Nunca tocou outro instrumento?
Não. Durante o Conservatório toquei um pouco de violoncelo e fiz os três anos do Curso de Canto. A Fernanda Correia, que é cantora e uma das principais professoras portuguesas, punha-me a acompanhar ao piano e eu adorava, mas também cantava. O canto é o instrumento primordial, é nesse que todos nós vamos beber a muitos níveis.
Ainda canta?
Canto em casa, adoro cantar. Cantava canções italianas ou lied, e houve uma altura na minha adolescência em que, para conseguir ter um piano para estudar nas férias, quando os meus pais iam para o Algarve, ia para um bar estudar Beethoven, Mozart, Lizt, Chopin, à tarde, quando estava fechado, e à noite tocava o que fosse preciso.
E cantava o quê?
Cantava tudo, porque tirar músicas para mim era simples. Houve uma altura da minha adolescência, entre os 11 e os 14, em que dava uma perninha num piano-bar no verão.
Quando toca não trauteia?
Ao estudar e ao tocar eu canto imenso. O estudo acompanhado do canto é muito importante.
Não era o Glenn Gould que cantava ao tocar?
Imenso, e outros também, como o Alfred Brendel. É no canto que reside a essência da música e da expressividade musical. Todos os instrumentos se aproximam, de uma forma ou de outra, do canto. Mas cada vez se canta menos. Os jovens músicos precisam de cantar, faz-lhes muito bem, ou estar num coro - eu estive vários anos. Estudo a cantar e aconselho-o aos meus alunos, porque é uma ferramenta de ensino e de intuição. Acho que isso se está a perder, tal como se perde muito a riqueza das danças, isto é, dos ritmos. A métrica está cada vez mais parecida, perde-se a riqueza das várias danças, desde o barroco, mais tarde a valsa, o tango...
É o lado físico da música?
Exatamente. As subtilezas da dança são muito importantes, com os pontos de apoio e os pontos de relaxamento musical, tudo tem muito que ver com tensão e distensão, há um balanço rítmico que é o nosso, é o bater do coração, é a respiração. É curioso ver que músicos que não são da clássica têm mais presente essa lógica da cadência métrica.
Mais forte do que nos da clássica?
Sim. Há três ou quatro anos fui fazer uma digressão a Cabo Verde e ouvi vários concertos de música popular, com músicos extraordinários, e com uma base teórica quase nula do ponto de vista do Conservatório. É algo que tem de ser muito debatido, porque assentamos os estudos em modelos que têm de evoluir, como qualquer modelo.
E os cabo-verdianos eram intrinsecamente músicos?
Isso acontece a ouvir a Edith Piaf ou a Amália, têm uma musicalidade extrema que foi trabalhada, refletida, estudada, aperfeiçoada - não terá sido com aulas e livros. As primeiras aulas que tive foram a cantar com o meu pai à guitarra. No meu desenvolvimento musical isso foi mais importante do que ter a metodologia certa, a posição exata da mão, os dedos com o ângulo X.
Faz falta ter a música lá dentro?
Faz falta sim, e muitas vezes os jovens desligam-se das aulas de música se não houver um grande equilíbrio por parte do professor. Tem de dar ao aluno a base da técnica instrumental, mas também um lado de desenvolvimento musical, de ligação corporal à música. Vi isso acontecer na Rússia mais do que em qualquer outro sítio. Apesar de os russos serem extremamente musicais, encontrei muitos jovens pianistas com um domínio técnico extraordinário do instrumento mas com um desinteresse enorme pelo que faziam. Vi até alunos com primeiros prémios em concursos internacionais mas que não tinham vontade de fazer aquilo.
Era só uma habilidade?
Era uma habilidade. Temos de desenvolver esse lado musical que é o que nos diferencia. O que nos diferencia não é tocamos mais rápido ou mais lento um estudo de Chopin, ou termos uma memória prodigiosa isto ou naquilo, ou dominarmos o instrumento em volume de som ou contraponto ou dificuldade. O que nos diferencia é encontrarmos a nossa voz, que é única, irrepetível. A originalidade não é uma habilidade, é uma descoberta. Vejo isto nas masterclasses, como agora fiz no Verão Clássico no CCB, um festival que organizo. Muitos jovens estão à espera de receitas milagrosas para resolver alguns problemas, mas desfasados do principal. Ninguém lhes pergunta o que querem transmitir. Quem são eles? É preciso dizer-lhes que todos têm um som diferente do dos outros. Pode haver problemas técnicos a resolver, e estamos ali para isso. Mas a partir de um certo momento é uma voz, é um som único, e então parece que descobrem que são especiais.
Antes de ir para Moscovo já tinha estudado em muito sítios. Como foi lá parar?
Estudei primeiro em Vila Nova de Gaia, onde viviam e vivem os meus pais, depois no Porto, no Conservatório, tive aulas privadas com vários professores. A que me marcou mais foi Helena Sá e Costa com quem continuei até ir para Moscovo, aos 20 anos, duas vezes por semana. Tínhamos um contacto muito próximo. Trabalhei com alguns discípulos dela, como o Pedro Burmester e o Luís Filipe de Sá, alunos insignes. Depois fui fazendo masterclasses em Portugal e no estrangeiro, por exemplo em Salzburgo no Mozarteum, mais de uma vez, com o Dmitri Bashkirov, a Elisso Virsaladze, o Vitaly Margulis, uma série de professores russos e não russos, como Luiz de Moura Castro que é brasileiro. Vários professores, em vários países - Espanha, Alemanha. Tudo me levava a ir para a Alemanha ou para os Estados Unidos.
Mas foi para Moscovo. Porquê?
Os desafios e as dificuldades atraem-me, acredito que as situações que parecem mais difíceis dão frutos mais intensos. Ao longo da vida não tenho escolhido o caminho mais fácil. Não quero dizer que seria mais fácil ir para os Estados Unidos ou para outro local, mas tudo aquilo que ouvia, o meio em que vivia, as referências que tinha, as pessoas que conhecia e as portas que se abriam levavam a não ir para a Rússia. Mas o Conservatório de Moscovo é uma escola mítica para qualquer pianista, porque muitos dos grandes pianistas e compositores continuam a sair de lá. Rachmaninov, Scriabin, Shostakovitch, Prokofiev, Richter, Gilels, todos passaram por lá.
Aquelas paredes ouviram tudo?
Exatamente. Isso fascinava-me. Tinha uma grande paixão pela cultura russa. Pela música, pelos grandes compositores, mas também pela história, pela literatura. Sempre pensei a música como uma formação global e algumas hipóteses que surgiam, como universidades americanas no meio do deserto, com professores excelentes e ótimas condições, não me atraíam da mesma forma. Fui pensando e falando com algumas pessoas. A ida para a Rússia é uma decisão minha, não fui acompanhado pela D. Helena e outros professores que me diziam para ir para a Áustria ou para Paris.
E depois escolheu?
Havia algo que me atraía imenso a vários níveis. Até mesmo a diversidade dentro do universo russo, porque os pianistas, os compositores, os violoncelistas, os violinistas, eram muito diferentes. Eu sentia um espaço enorme - se calhar era o próprio país que me levava a pensar isso - para evoluir e aprender.
E foi o que aconteceu?
Sim. Fui muito influenciado por uma pianista russa, a Elisso Virsaladze, com quem estive em Munique a aperfeiçoar-me. Ela é uma das maiores pianistas russas da atualidade e disse-me que havia uma professora extraordinária - Lyudmila Roshchina - no Conservatório de Moscovo havia 40 anos, era a chefe da cátedra de piano. A Elisso achava que ela era a melhor professora do mundo. Disse que era muito difícil entrar na classe dela, só aceitava russos. Era preciso ter a formação que ela achava correta.
Como conseguiu?
Com a recomendação da Virsaladze, porque elas são muito amigas e respeitam-se imenso. Fui a Moscovo fazer uma prova para entrar na classe dela.
Lembra-se do que tocou?
Toquei a 6.ª Partita, de Bach, a Après Une Lecture du Dante, de Lizt, e a Sonata, de Bartók, três obras importantes.
Estava muito tenso? Na verdade, não podia estar muito tenso.
Não podia, não. O Conservatório assusta porque as salas são enormes, há várias salas que têm dois Steinways de concerto. Esta sala tinha três, era uma coisa inacreditável. São salas com um pé direito muito alto e com uns sofás. Tudo aquilo assusta. Têm fotografias dos grandes professores que deram lá aulas e umas lápides de mármore. Nesta dizia: "Aqui ensinou Scriabin de tantos a tantos." Uma pessoa fica ali em espera para as "aulas-consultas": os alunos estão ali sentados e o professor chama-os na hora em que pretende. O horário é flexível, não é das quatro às cinco. Pode ser das quatro às quatro e um quarto, pode ser das quatro às cinco e meia, o que eles acharem. Os alunos têm de estar ali, ouvem-se uns aos outros e depois encaixam. Lembro-me do que ouvi antes, de um nível fantástico, altíssimo. Aquilo não ajudava. Mas acabou por correr bem.
Tão bem que ficou.
Sim. Tudo o que vivenciei e aprendi foi extraordinário, pela oferta cultural, por ter acesso às fontes. O meu disco dos Quadros de Uma Exposição foi gravado em Portugal no último ano em que estive em Moscovo. Eu tinha acesso ao manuscrito e a uma série de coisas, e pude fazer um trabalho ultrapassando todas as edições existentes. Há muita coisa que vai passando de geração em geração, coisas que são transmitidas e que não estão no original.
A sua versão é feita a partir do original?
Sim, do manuscrito. Estava tão ligado ao universo do Mussorgsky, o compositor que mais admiro, que fiz uma pesquisa enorme sobre a obra - os quadros todos, as gravuras. Na Rússia encontramos especialistas em praticamente tudo.
Sabem tudo sobre aquele assunto?
Sabem tudo, são pessoas dedicadas. Encontrei especialistas dos Quadros de Uma Exposição que me falaram sobre vertentes da obra que eu desconhecia. Por exemplo, o facto de o Mussorgsky ter sido maçon e de haver simbologia maçónica na obra. No próprio manuscrito encontram-se alguns símbolos. Nunca me tinha passado pela cabeça. A numerologia também aparece várias vezes na obra. Mergulhei no mundo do Mussorgsky. E isto acontecia recorrentemente na Rússia. Algumas disciplinas teóricas eram fascinantes, coisas que nunca encontrei publicadas no ocidente. Existia uma fronteira: o ocidente, as coisas que se faziam no ocidente. O Cravo Bem Temperado, de Bach, está mais do que estudado, há análises e gravações de referência. Descobri na Rússia um musicólogo chamado Yavorsky que o analisou à luz da relação de Bach com a religião. Ninguém conhecia esse trabalho em Berlim, para onde fui depois. Os 48 prelúdios e fugas divididos em ciclos de festas religiosas, partindo da numerologia, da comparação dos temas com as cantatas ou as paixões. Os russos procuram muito o que está para além das notas.
Escrevia os exames em russo?
No plano de estudos tínhamos russo ao longo dos cinco anos. Tínhamos filosofia e história de arte em russo. Apesar de ser um doutoramento em interpretação musical, com uma grande componente de concerto e de aulas práticas, tive dois anos de filosofia e dois anos de literatura russa. Tudo em russo. Os professores não falavam em inglês. Estava tudo escrito em russo, as dissertações são em russo. Na primeira aula de piano, a professora falou-me um pouco em inglês, um pouco em alemão e disse: a partir daqui muda o cenário porque vou falar em russo. Tive sorte porque vivi pouco tempo na residência dos estudantes do Conservatório. Aluguei um quarto em casa de uma senhora que era viúva de um grande musicólogo e falava fluentemente francês e alemão. Foi a minha grande professora de russo e não só. Tinha uma biblioteca extraordinária.
De musicologia?
Era um apartamento soviético, nada de especial, mas tinha um piano de cauda. Não havia uma parede que não estivesse de cima a baixo forrada de livros. A biblioteca musical tinha tudo, desde os madrigais, o [Giovanni Pierluigi da] Palestrina, por aí fora, o Monteverdi, até à música do século XX. Não tinha algumas sinfonias de Beethoven, ou de Mahler ou de Shostakovich: tinha todas. Não eram algumas sonatas, eram todas.
Não podia estar em melhor sítio?
Estava deliciado. E literatura. Tinha Calderón [de la Barca] em espanhol, imensa literatura alemã e francesa e, claro, a literatura russa. Era uma historiadora importante e trabalhava no Memorial, uma instituição que se dedica às vítimas da União Soviética.
Isso passou-se em?
Cheguei a Moscovo em 1995-6.
Portanto, já tinha caído o Muro de Berlim.
Sim, o Muro caiu em 1989, a União Soviética acabou em 1991. Já estava na era Iéltsin. Fiquei até à primeira eleição do Putin, em 2000. Foram tempos complicados. E foi um tempo extraordinário em termos culturais, com idas ao Bolshoi todas as semanas.
Existe de facto uma escola russa?
A escola russa é um conjunto de influências de vários países, grandes pianistas, grandes mestres, muitos deles discípulos do Czerny ou do Lizt que foram para as cortes russas. Na altura da União Soviética desenvolveram-se metodologias fortes, houve uma grande reflexão sobre o ensino especializado de instrumentos. Foram beber ao muito que existia dos compositores e dos pedagogos russos, que eram imensos e tudo menos unânimes. Dentro dos conservatórios de Moscovo ou de São Petersburgo havia uma grande variedade de didáticas e de escolas, e até de visões estéticas ou estilísticas. Tentou-se uma uniformidade de técnica, de exercícios, de literatura musical e isso foi disseminado pelas repúblicas. Mas nas grandes escolas continuou a haver a mesma liberdade. Há uma espécie de dinastias de grandes músicos que vão passando as informações aos seus discípulos. A Helena Sá e Costa foi aluna de Alfred Cortot e de Edwin Fischer, e também teve escolas muito diferentes, francesas e alemãs. A minha professora Lyudmila Roshchina foi assistente do Samuil Feinberg, o primeiro russo a fazer a gravação integral do Cravo Bem Temperado, de Bach. Foi um dos "fundadores" dessa tal escola russa, e era o pianista favorito do Scriabin, de quem foi aluno. Se formos para trás, vamos buscar... Cada professor aborda as obras de uma forma individual, como tem de ser em termos artísticos. Não são fábricas.
Que pianistas o fazem sentir "é isto"?
O Sviatoslav Richter, sem dúvida. O [Arturo Benedetti] Michelangeli é um pianista extraordinário que me influenciou imenso. O Claudio Arrau, o Alfred Brendel. Na Rússia, o Emil Gilels. Temos uma escolha extraordinária de grandes pensadores, que é algo que me interessa muito. Na Rússia havia uma rivalidade impressionante, apesar de ambos já terem morrido, entre o Richter e o Gilels, que foram alunos do mesmo professor, mais ou menos contemporâneos. Tive uma professora que tinha o piano do Gilels em casa. Ela gostava imenso de mim porque tinha uma forte ligação a Portugal, até do ponto de vista religioso. Era uma devota de Nossa Senhora de Fátima.
E o Filipe era o representante da Senhora de Fátima?
Sim, era o único aluno português. E portanto eu podia ir a casa dela e tocar no altar que era o piano do Gilels. Curiosamente, o Gilels dizia que o piano dele era o altar dele.
E o seu piano é o seu altar?
Eu sinto e senti desde cedo um lado espiritual muito forte na música. Se não existir não há razão para tocar. Ligo-me muito por aí à música e ao piano. Essa frase do Gilels marcou-me porque há uma transcendência, uma busca de algo para além do terreno, e a música oferece-nos isso pelo seu carácter abstrato, espiritual. Isso está presente nas obras de todos os compositores, algo que está para além dos códigos, do que está escrito. Quando a Sofia Gubaidulina veio em 2011 a um ciclo do CCB, trabalhei com ela o Introitus, um concerto para piano e orquestra que em si já tem uma conotação religiosa. Ela é uma compositora bastante religiosa. Lembro-me da sua força espiritual, de ter expressões desse mundo ao trabalhar com a orquestra ou comigo ou com o maestro. Não gosto de influenciar a esse nível, acho que cada um tem a sua vivência espiritual à sua maneira. Mas é importante falar nisso com jovens músicos porque esse é um lado que parece estar completamente vazio. Não está. Depois descobrimos que não está. Mas à partida é como se não houvesse essa procura. Há uma experiência mística que se pode procurar pela música.
Está a ter um verão com muito trabalho.
Felizmente tenho férias e recomeço em 15 de setembro, faço Lisboa, Polónia, EUA, regresso ao CCB e depois estou com a Orquestra Metropolitana, sou artista associado da temporada. O final do ano vai ser muito intenso outra vez.
Toca compositores muito diferentes. De memória ou com pauta?
A maior parte toco de memória, com exceção de algumas obras contemporâneas. Há a tradição instituída de o pianista tocar de memória, desde o tempo do Lizt, o primeiro a fazer recitais sem partitura. A memória tornou-se um elemento diferenciador e à volta dela há muita teoria e muita fantasia. E muita dificuldade também, porque é algo que nos faz tocar sem rede - há algumas redes mas não há uma partitura à frente. Tocar de memória obriga-nos a estudar melhor as obras, a mergulhar nelas, a absorvê-las e torná-las nossas. Mas quem não toca de memória pode ter a mesma liberdade, a mesma criação. Está instituído que os pianistas devem fazer as provas de memória e portanto é natural que vamos criando mecanismos das várias memórias - desde a visual à mecânica, à emocional, à lógica de relacionar tudo. Há tantas memórias a funcionar, é um complexo de memórias. Tocar sem partitura leva-me a um estado de grande libertação em palco que me agrada procurar.
Mas por vezes usa partitura. Com alguém a virar as páginas? Isso não é perturbador?
Não. Hoje há quem use um iPad, com um pedalzinho que vira as páginas. Mas um pianista já tem três pedais... Já o utilizei mas só em ensaio. Eu gosto do papel, não consigo desligar-me do papel. Sei de casos em que estão a tocar e de repente entra uma imagem, uma chamada do FaceTime, e quem está a tocar não consegue desligar, salta em voo para desligar aquilo em palco... isto é verídico. Ou então acaba a bateria. São exceções, mas...
Nada como umas mãozinhas e uns olhos?
Pois.