Filhos, sou doutora
Depois de ter passado pelo jornalismo, pela política e pelos livros, regressei à faculdade para acabar o curso de Direito, que interrompi quando mergulhei de cabeça n" O Independente nos longínquos anos 90. Tenho um amigo advogado que sempre que me via perguntava quando é que eu acaba o curso, "Então futura colega? Para quando esse curso?". Foram décadas nisto. Ele nunca desistiu. Já eu, sim. Durante estes anos todos não havia gato-pingado que não me tratasse por "doutora", não fosse este um país de tios e de doutores. No Parlamento, por exemplo, ou se é doutor ou operário, e eu ali, no limbo. Era "mãe, beata ou fascista", mas doutora nada. Então, porque resolvi pôr a minha vida em stand by e porque não se deixa nada a meio (digo eu aos meus filhos), regressei à Universidade Lusíada onde tinha deixado o curso a meio do segundo ano. "Mãe, arranjei um estágio num semanário". E pronto, tudo estragado: entre estudar Direito Administrativo ou andar atrás do próximo ministro que anda a fugir aos impostos, vence o ministro, claro. O objetivo era sair de lá no ano em que o meu filho mais velho entrasse na universidade, a minha autoestima e a dele não aguentariam sermos colegas. Tinha, portanto, três anos para concluir a empreitada. Mas não fazia ideia daquilo em que me estava a meter: aulas todos os dias, faltas, testes, trabalhos, participação nas aulas, avaliações, exames e orais. E Fiscal, nunca pensei saber o que quer que seja de Direito Fiscal. Não morri por acaso. Os meus colegas eram pouco mais velhos que os meus filhos e grande parte dos professores tinha a minha idade e havia alguns mais novos. Tinha tudo para correr mal. "Vá, Inês, silêncio, a aula já começou...". Eu corava, "desculpe professor", e virava-me para a frente. Mas não correu mal e acabaram por ser os anos mais divertidos da minha vida depois daqueles em que passei n"O Independente. Sem a memória que tinha, mas com a curiosidade que não tinha, cada disciplina era um desafio e para o transpor era obrigatório gostar. Nesta idade, em que os fins de semana servem para dormir e não para estudar, só se decora o que se percebe pois não se decoram palavras mas sim raciocínios. Percebemos, finalmente, que quando não se entende à primeira o que se está a ler é porque o livro está mal escrito, o que é uma realidade em 99% dos casos. Acreditem. É fundamental não pormos em causa a nossa destreza e muito menos a inteligência - mais do que uma questão de honra é uma questão de sobrevivência.
Durante estes anos fugi dos meus filhos para a casa de banho para conseguir estudar, fiz quase diretas em véspera de exames, ajudei colegas e pedi muitas vezes ajuda - "Explica-me lá isto" e ficava horas ao telemóvel a tentar perceber coisas inacreditáveis de Direito Penal ou de Direitos Reais num debate acesso com alguém com metade da minha idade - fartei-me de sonhar com matérias e contestei a justiça das notas. "Meninos, tive 14!". Os meus filhos ficavam a olhar para mim com cara de parvos: "Boa, mãe...". "Foi a segunda melhor nota...", insistia perante a falta de entusiasmo. "Mas a mãe diz sempre que não interessa a nota dos outros mas sim a nossa: "com o mal dos outros posso eu bem", não é?". Enfiei tantas vezes o barrete que não imaginam. Um dos meus professores, um daqueles que nasceu para ser professor e para ser adorado pelos alunos, dizia-me assim já no fim: "Agora vai começar a escrever sobre Direito como se soubesse alguma coisa disto, não é?". Nunca. Pois esta é outra coisa que se ganha quando se aprende numa idade em que se deve ensinar: pânico do ridículo. De Direito percebem eles, já eu, sou doutora. Mas o melhor, o melhor de tudo, foram os coleguinhas e os amigos que fiz. Em três anos vivi no mundo onde os meus filhos estão a entrar, vi por dentro os telemóveis deles, as relações, os medos e as ambições. "Inês, se um dos teus filhos vier para cá, o pessoal leva-o ali a fazer um cursinho paralelo de imperiais e cenas. Liberas?" Se soubessem como aquilo é divertido não havia ninguém a fazer o curso aos Domingos. Agora sim, já me podem tratar por Inês.