Filhos de uma política menor

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No último dia da legislatura anterior, PSD e CDS, partidos que garantiam então a maioria parlamentar, aprovaram o fim da isenção das taxas moderadoras para a interrupção voluntária de gravidez, com o pretexto de uma iniciativa de cidadãos, condicionando assim o regime jurídico que permite à mulher livremente optar por recorrer ao aborto até às 10 semanas. Não ouvimos então ninguém usar o argumento de que os deputados não estavam mandatados para o fazer, uma vez que os programas eleitorais do PSD e CDS ignoravam explicitamente essa proposta.

Espanto-me por isso que se questione a legitimidade dos deputados poderem votar hoje a despenalização da eutanásia, no Parlamento, argumento que tem sido usado com particular insistência nos últimos dias, porque nenhum partido inscreveu o tema nos seus programas eleitorais (omitindo que o PAN o fez).

Um ex-presidente da República, um ex-primeiro-ministro e um dos partidos parlamentares defenderam isto para se manifestarem contra essa despenalização, como se os deputados eleitos por sufrágio direto fossem filhos de uma política menor, pessoas acéfalas ou robotizadas que estão ali a fazer figura de corpo presente e aplicar apenas as linhas dos programas eleitorais de cada partido. Com este argumento, ao limite, os deputados só poderão legislar sobre o que estiver nesses programas, ignorando a atualidade, sem capacidade de iniciativa. É um exercício que retira dignidade aos deputados e diminui o Parlamento.

P.S.: Assombro-me com o absolutismo de setores católicos que recusam a despenalização da eutanásia, invocando o mandamento "não matarás". Pena que esses setores não recusem o Catecismo da Igreja Católica que prevê que "a doutrina tradicional da Igreja (...) não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor". Se o Estado matar assim, já não há problema.

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