Festival Todos. Vamos conhecer São Vicente de Fora por dentro
Quando Ana se levanta, ata um lenço nas ancas e começa a dançar, abanando-se ao ritmo do batuque, é impossível não ficarmos também com vontade de nos juntarmos. Em breve, Helen e Karen juntam-se a ela, improvisando, enquanto Dulce, Zulmira e Antónia continuam sentadas, com os enchumaços presos entre as pernas, a marcar o ritmo, cada vez mais acelerado, típico do batuque cabo-verdiano. No final, todas estão sem fôlego. É tempo de fazer um intervalo no ensaio. Que venham copos de água e fatias de melancia.
Quem vê Ana a dançar não imagina que ela nunca foi a Cabo Verde. "Mas tem o batuque no corpo", diz Dulce, uma das batucadeiras mais antigas do grupo Netas di Bibinha Cabral. "Bibinha Cabral era uma senhora muito respeitada do tempo em que o batuque era batuque", conta Dulce. "Por isso quisemos dar o nome dela ao nosso grupo. Fazemos por continuar a tradição, desde a nossa maneira de tocar até às vestimentas. Estamos juntas há muitos anos. A nossa primeira grande atuação foi na Expo'98. A partir daí já percorremos o país de norte a sul e já tivemos convites para ir ao estrangeiro." As Netas di Bibinha Cabral são 15 mas só quatro participam no Cineteatro Maria Flaminga, espetáculo que o Festival Todos vai apresentar neste fim de semana no Jardim Botto Machado, em Lisboa.
Helen Ainsworth é uma encenadora e atriz inglesa que divide o seu tempo entre o Reino Unido e o Algarve. O nome deste espetáculo assim como o cineteatro - uma pequena casa de madeira que, por fora, imita um monte algarvio, com ervas a crescem entre as telhas e a humidade a despontar por entre a cal da parede - são uma homenagem ao Monte Maria Flaminga, onde se situa o seu estúdio. Há lugar para seis espectadores dentro do teatrinho ambulante e mais seis espreitando pelas janelas. Para o Festival Todos, Helen Ainsworth criou um novo espetáculo com a colaboração de mais quatro artistas - músicos, um palhaço, uma artista de teatro de sombras - e as quatro batucadeiras. A ideia é que algumas coisas aconteçam dentro e outras fora do teatro. Ana, Dulce, Zulmira e Antónia apresentam-se cá fora, claro.
O Jardim Botto Machado, no Campo de Santa Clara, será o epicentro desta edição do Festival Todos, que arranca hoje e se prolonga até domingo. Depois de três anos na zona do Intendente, Mouraria e Martim Moniz, o festival esteve mais três anos no Poço dos Negros e São Bento e, por fim, mais três anos na Colina de Santana. À 10.ª edição, por sugestão da Câmara Municipal de Lisboa, o festival ocupa São Vicente de Fora. A equipa do Todos chegou em janeiro e, como sempre, começou a passear pelas ruas e a conhecer o bairro. "Vamos pensando com os pés", é a expressão usada por Miguel Abreu, um dos responsáveis pelo festival, a par de Madalena Victorino e Giacomo Scalisi. "Durante a semana isto é como uma grande aldeia. Só há tuk-tuks dos turistas e militares. À terça e ao sábado há a Feira da Ladra. Mas, de resto, há muito pouca coisa."
Nesses primeiros meses de trabalho, descobriram "um núcleo histórico e patrimonial muito interessante" - desde o óbvio Panteão Nacional às antigas Oficinas de Fardamento do Exército, passando pela Sala do Gesso (que pertence ao Museu Militar), o Patriarcado e mais uma série de igrejas. Além da igreja e da instituição militar, as escolas (Liceu Gil Vicente, Voz do Operário e Escola Básica de Santa Clara) acabaram por ser o terceiro parceiro do Todos. A estes parceiros mais institucionais juntaram-se os artistas do bairro - como o coreógrafo Francisco Camacho, que está ali instalado, ou o Damas Bar, que vai receber uma programação musical especial - e, depois, todos os outros "vizinhos". Porque, se é verdade que este é um festival artístico que tem sempre no programa artistas profissionais, portugueses e estrangeiros, que se apresentam no seu formato mais "clássico", também é verdade que não menos importante no Todos é a dimensão inclusiva do festival.
Essa é, geralmente, tarefa de Madalena Victorino, que vai palmilhando as ruas, conhecendo as pessoas do bairro, entrando pelas lojas, procurando aliados nas escolas. Ao fim destes meses, diz: "Sinto que ainda sei muito pouco sobre o bairro, mas ao mesmo tempo estou muito contente porque já conseguimos muitas sinergias". Juntar artistas e população é sempre o desafio. Mas as coisas acabam por acontecer naturalmente.
Foi na Escola Básica de Santa Clara que a equipa do Todos conheceu Temidayo Solomon, um menino nigeriano de 10 anos, que foi fotografado por João Tuna para a exposição que é inaugurada hoje. Foi também uma interrogação de Temidayo que acabou por dar título à conferência de Rita Nunes - "Porque é que há uns que gostam mais dos escuros e outros mais dos claros?" No meio destas idas e vindas, Temidayo não descansou enquanto enquanto não trouxe a sua mãe, Mary, para o Todos. Costureira, Mary acabou por participar numa das oficinas de verão - integradas no festival, em agosto realizaram-se uma oficina de costura e outra de restauro de móveis. Foi assim que a equipa do Todos descobriu que Mary é uma excelente cozinheira. Então, ela não só estará a trabalhar na cozinha do festival como vai vender alguns dos seus petiscos no grande almoço de domingo, que acontece no jardim um pouco antes de as Netas de Bibinha Cabral começarem a sua atuação.
1. Intendente em São Vicente
Concerto da Orquestra Todos.
Salão de Festas da Voz do Operário
Quinta, 22.00
Entrada livre, sujeita à lotação do espaço
2. Wolf's Cry
Concerto dos Violons Barbabares.
Claustro do Mosteiro de São Vicente de Fora
Sábado, 21.30
Bilhetes: 3 euros
3. Vala Comum
Espetáculo dirigido por Andresa Soares com alunos do curso de artes performativas da Escola Secundária Gil Vicente.
Auditório da Escola Básica de Santa Clara
Quinta, sexta e sábado às 20.30
Bilhetes: 3 euros
4. Ponto Ómega
Espetáculo de dança criado por Ricardo Machado e Madalena Vitorino.
Futura Cafetaria do Palácio Sinel de Cordes
Sábado e domingo a várias horas
Bilhetes: 3 euros
5. Viagem Sentimental # São Vicente de Fora
Espetáculo de Francisco Camacho
Da Sala dos Gessos do Colégio Militar em percurso pelo Bairro até às Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento.
Quinta, sexta e sábado às 21.00
Entrada livre, sujeita à lotação do espaço
6. Plus Haut
Espetáculo de novo circo dos Barolosolo (de França).
Salão de Festas da Voz do Operário
Sexta e sábado às 21:00, domingo às 17.00
Bilhetes: 3 euros
7. Les Étoiles
Espetáculo de novo circo de Les Colporteurs (de França).
Panteão Nacional (entrada principal e traseiras)
Sábado e domingo, várias horas ao longo do dia
Entrada livre
8. Cineteatro Maria Flaminga
Espetáculo de "teatro em miniatura" dirigido por Helen Ainsworth.
Jardim Botto Machado
Sexta, das 17.00 às 18.30, sábado e domingo das 15.00 às 18.00
9. São Vicente de Fora por Dentro
Exposição de fotografias de João Tuna, Luísa Ferreira e Luís Pavão.
Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento
De quinta a domingo, das 14.00 às 19.00
Entrada livre
10. Porque é que há uns que gostam mais dos escuros e outros mais dos claros?
Conversa sobre racismo orientada por Rita Nunes com a participação de crianças oriundas de diversos locais do mundo do 4.º ano da Escola Básica de Santa Clara.
Sábado e domingo, 15.30
Ginásio da Escola Básica de Santa Clara
Entrada livre, sujeita à lotação do espaço
11. Mesah - Grande Almoço no Jardim
"Mesah" significa almoço em tigrínio, língua falada na Eritreia e na Etiópia. Comidas de todo o mundo.
Domingo, das 13.00 às 17.00
Jardim Botto Machado
Entrada livre - pratos com preços diversos
12. Credo
Projeto do maestro Mario Tronco, com a Orchestra di Piazza Vittorio e texto de José Tolentino de Mendonça.
Panteão Nacional
Domingo, 18.30
Entrada livre, sujeita à lotação do espaço
Veja a programação completa AQUI.