Festival Periferias- o tesouro escondido do Alentejo
O melhor festival de verão de cinema ao ar livre está a fazer nove anos e continua a crescer, apesar da pandemia. Os filmes projetados ao ar livre no Periferias continuam a abordar temas sobre o mundo rural, o meio ambiente, arte/cultura e os diretos humanos mas, agora, neste novo mundo, são sobretudo pretextos de escape para as povoações da fronteira. Entre Marvão e Valência de Alcântara, vários municípios e lugares da raia acolhem sessões de cinema onde a noção de paraíso é válida, sobretudo quando esta sexta-feira o castelo de Marvão quase esgotou numa noite quente e perfeita para a cerimónia de abertura na qual foi exibido No Labirinto da Saudade, de Miguel Gonçalves Mendes, a partir da obra e do pensamento do falecido Eduardo Lourenço. Uma sessão onde o cineasta falou com um público que também esperou por um concerto da banda ComFusão, músicos locais que ofereceram temas clássicos do jazz ao fado.
Carlos Baptista, programador vindo de Portalegre, reconhece que o festival está cada vez mais estabelecido e que, além de cumprir a sua função de serviço social de levar cinema a meios rurais entre Espanha e Portugal onde não há cinema, também já atrai visitantes, turistas e cinéfilos que amam ver cinema sob estrelas em noites quentes. Até ao próximo fim de semana, este festival de fronteiras aposta, mais do que nunca, num diálogo ibérico de filmes espanhóis e portugueses. Ontem, na Quinta do Barrieiro, local de turismo e artes plásticas, o grande ecrã iluminou-se para uma sessão especial em antestreia de Mar Infinito, de Carlos Amaral, história de ficção-científica num futuro onde um casal tenta a sua história amorosa num êxodo para outro planeta depois de um anunciado apocalipse. Não é um filme com mensagens sublinhadas de ecologia mas fica bem numa programação que também revela novos cineastas. Mar Infinito, produzido pelo imparável Rodrigo Areias, tem estreia para o próximo outono e já foi anunciado na Mostra de São Paulo.
MAR INFINITO TRAILER from BANDO À PARTE on Vimeo.
Paula Duque, a diretora do festival, cidadã espanhola que vive no Alentejo, conta com um sorriso do tamanho da fortaleza de Marvão que o Periferias está já numa plataforma de festivais da Estremadura espanhola e que o plano é contemplar um crescimento do festival para criar uma secção competitiva, mesmo realçando que a prioridade será sempre a missão de oferecer a quem está isolado e esquecido um encontro com o cinema. "Sinto que estamos a ter mais força, mas temos um orçamento ainda muito pequeno. Este ano tivemos mais municípios a querer ter sessões, mas foi complicado pôr tudo isto de pé, sobretudo com as restrições impostas pela pandemia".
Entre pontes, ruínas arqueológicas, castelos, praças e encostas, os filmes são projetados sempre ao ar livre, com exceção do auditório de Olhos de Água, local onde ontem foi apresentado O Movimento das Coisas, milagre humano de Manuel Serra sobre as gentes da aldeia minhota de Lanheses. Um filme preso nas prateleiras do tempo durante 30 anos e que este ano foi levado ao circuito comercial por um jovem produtor, Daniel Pereira.
Até dia 20, há ainda uma série de sessões de paraíso cinematográfico para apanhar perto de Marvão e Valência de Alcântara. Para quem não consegue vir a esta zona de fronteira, a Filmin tem um programa de filmes disponíveis subordinados aos temas do festival, mas a experiência do Periferias faz mais sentido ao vivo, sobretudo para tentar apanhar ainda as palestras, os encontros com os realizadores, concertos e passeios pedestres. Destaque para Bienvenidos a España, de Juan Antonio Amador, documentário sobre a maneira como os emigrantes são olhados em Espanha, esta noite do outro lado da fronteira na Praça de Touros de Zarza e Amor Fati, filme-poema de Cláudia Varejão, previsto para as sublimes ruínas de Ammaia, mesmo à porta de Portagem, na noite de quinta-feira.
Olhar para as estrelas com um ecrã com bom cinema é o céu na terra para muitos, em especial num dos locais mais míticos do festival, em La Fontañera, povoação literalmente na fronteira - ecrã num país, cadeiras noutro. Aconteceu assim ontem à noite com a exibição de A Alma de um Ciclista, de Nuno Tavares, sessão em conjugação com um outro festival português, o CineEco...
Essa co-produção luso-espanhola é a marca do festival. A equipa é mista e à noite cada um segue para o seu país. A Gato Pardo em Valência de Alcântara e a Associação Cultural Periferias, em Marvão, dinamitam a ideia da fronteira e conseguem um ambiente de festival descontraído e com uma mistura de público jovem e idoso, havendo este ano uma atenção maior para sessões de teor educativo. Aqui, não há VIP"s (não vimos representantes do ICA) nem burocracias de protocolos. É tudo muito genuíno e espontâneo. Apetece pensar que é também um festival para combater a desertificação de uma região. Porque as periferias não podem ser esquecidas.
A programação e a compra de bilhetes podem ser consultadas em https://www.periferiasfestival.com/. Se a chuva poderia estragar tudo isto? Poderia, mas não está prevista precipitação. Em terras de Marvão, com calma, tudo corre bem...
dnot@dn.pt