Fernando Rosas: "Nenhuma corrente da esquerda pode seguir sem se entender com as outras"

Fernando Rosas diz às esquerdas que não terão futuro se não conseguirem, em nome de objetivos concretos, pôr de lado as "visões sectárias" que as dividem. É algo que tem de se fazer "de baixo para cima", porque "se começarmos por cima é muito complicado".
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Na próxima sexta-feira, 27, ao final da tarde, no Quartel do Carmo, em Lisboa, uma dupla improvável, constituída por um humorista, Ricardo Araújo Pereira, e por uma historiadora, Maria Inácia Rezola, comissária executiva das comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974, lança "Ensaios de Abril" (Tinta da China), do historiador Fernando Rosas.

Aos 77 anos, este antigo militante do PCP (de 1961 a 1968) e cofundador de dois partidos (o MRPP, em 1970, e o Bloco de Esquerda, em 1999) tenta, reeditando textos seus sobre o processo revolucionário e acrescentando-lhes como novidade um pequeno ensaio autobiográfico, pôr os seus pontos nos is quanto ao que foi o processo revolucionário e como foi "contido" com o 25 de Novembro de 1975. Tem uma verdade simples para passar: a democracia em que hoje vivemos é fruto do 25 de Abril e não do "novembrismo". "Não existe democracia apesar da revolução; existe democracia por causa da revolução."

No seu texto autobiográfico diz que uma das coisas que o levou a ser historiador foi para tentar perceber porque falhou a "generosidade republicana" da I República. Agora, quase 100 anos passados, sente que está a falhar a "generosidade democrática"? Sente nos dias de hoje e na ascensão da extrema-direita ecos do que se passou na Europa e em Portugal há 100 anos?
De alguma maneira, sim. As democracias ocidentais vivem uma crise de legitimidade profunda, que é também um reflexo de uma crise económica do capitalismo liberal. O capitalismo muda de estratégia a partir dos anos 80, depois daquela fase de capitalismo neokeynesiano do pós-II Guerra. Esta forma de gerir o capitalismo torna-se complicada a partir do momento em que começa a originar quebras na taxa de acumulação, agravada por uma crise petrolífera também, e eles mudam de estratégia. A partir dos anos 80 entramos numa fase neoliberal do capitalismo, numa revisão profunda do que era o modelo anterior, e esse modelo é um modelo de impiedade económica e social. Isso tem reflexos no plano da economia e da sociedade, mas também reflexos no político. Portanto, num Estado que está cada vez mais longe dos cidadãos, num Estado que vive uma crise de legitimidade e em que os cidadãos não se reconhecem. Dos destroços económicos e sociais que o capitalismo neoliberal deixa a extrema-direita vai buscar a dor, o medo, o desespero, o ressentimento, de alguma maneira repetindo o que se passou nos anos 30 [do século XX].

Sente que há características da I República e que levaram ao seu colapso e que hoje, de certa forma, se mimetizam e que podem acabar por ter o mesmo efeito?
A I República é a expressão típica de um liberalismo oligárquico de total insensibilidade social, ou seja, totalmente incapaz de adotar medidas, mesmo que mínimas, de justiça e de redistribuição social. Foi um sistema político altamente repressivo para o movimento operário e sindical daquela época. Tratou-o com uma brutalidade que iria depois preparar completamente o requinte da brutalidade que o Estado Novo adotaria como norma. Portanto, a I República caiu num quadro de grande descontentamento popular e ninguém se mexeu. No movimento operário e popular, naquilo que era a base de massas que tinha feito o 5 de Outubro, foi difícil mobilizar para quando a República cai. Quando se dá o 28 de Maio de 1926, aparentemente a República cai sem resistência. As pessoas interpretaram o golpe militar como sendo apenas contra o governo que estava e contra aquela oligarquia que se perpetuava no poder e que de alguma maneira se perpetuava no poder com eleições fabricadas onde o direito de voto era muito restrito, aquilo era tudo combinado. Há uma crise de legitimidade da República, uma crise de descrença nas instituições, há um profundo alheamento do movimento operário popular - aquilo que deveria defender a República deixa de o fazer. Esse esforço só existe depois, quando as pessoas começam a perceber o que foi o 28 de Maio, quando percebem que não é uma correção para melhorar a República mas é a instalação de uma ditadura. Nessa altura - entre 1927 e 1931 - é que existe de facto a defesa da República nas barricadas do reviralhismo. Para mim, a grande novidade das conversas com o meu avô era ouvir falar de uma coisa de que ninguém falava: as revoltas republicanas apoiadas pelo que restava do movimento operário e sindical. No 28 de Maio cai sem luta mas depois resiste. É uma espécie de guerra civil larvar que existe entre 1927 e 1931 e que nos permite dizer que a República morreu a dar luta.

Essas características da I República que levaram à sua queda... sente alguma coisa disso agora? Por exemplo, o distanciamento da população face à governação?
Não. O que me deixa alguma convicção de que não é fácil, apesar de tudo, pôr em causa a democracia é que a democracia em Portugal saiu de uma revolução. A matriz é uma revolução, uma revolução popular...

Mas no 5 de Outubro também foi isso...
Sim. Mas a República saiu de uma revolução que não conquistou nada...

Era muito urbana, muito "Portugal é Lisboa e o resto é paisagem"?
Era muito urbana e deixou-se cercar pela aliança do clero conservador com o mundo rural. E não conquistou nada. No fim, as pessoas não tinham nada para defender a não ser uma vaga liberdade, que até era muito restrita. A República até criou uma polícia política e proibiu o voto feminino e o voto dos analfabetos, que eram 50% da população. Havia pouco a defender na I República. Na democracia, não. A revolução de 1974/1975 conquista na rua as liberdades fundamentais: o direito de manifestação, a liberdade de expressão, o direito à greve, a liberdade sindical. Ninguém outorgou isso aos cidadãos; não foi uma outorga de uma burguesia aflita que tentava conter o povo. Não! É uma vaga, uma onda popular. O Movimento das Forças Armadas até mandou as pessoas para casa, mas as pessoas não foram. No 25 de Abril passou-se uma coisa extraordinária que foi esta: as pessoas começaram a assistir àquilo como espectadoras, na rua. Havia uma panela de pressão: a luta estudantil, a luta sindical, as greves, e fundamentalmente o cansaço social e político com a Guerra Colonial, que o movimento dos oficiais intermédios veio interpretar. E esse descontentamento criou raízes, criou organização, criou consciência social e política, sobretudo no mundo litoral e urbano. As pessoas estavam muito predispostas a aceitar os movimentos das oposições, que por si só não teriam força para derrubar o regime. Aquilo estava a ferver e quando há o golpe do 25 de Abril explode numa onda imparável. E depois, em certo sentido, a vitória do movimento dos oficiais intermédios e ao tomarem o poder cortam a cabeça hierárquica das Forças Armadas. Estas deixam de ser a espinha dorsal da violência organizada do Estado. Quando as pessoas percebem na Ribeira das Naus que os tanques de Cavalaria 7 [afetos ao regime] se passam para as tropas do Salgueiro Maia, percebem que aquilo acabou. As pessoas juntam-se ao Salgueiro Maia e cercam o Marcelo no Largo do Carmo, e aí o golpe de Estado transforma-se numa revolução. Quando o Spínola está na Cova da Moura a receber os novos chefes partidários e a dizer que "vamos pensar em constituir umas associações políticas", já há partidos por todo o lado, movimentos, gente a falar na rua, empresas a serem ocupadas, comunicados, manifestações. E as liberdades fundamentais são conquistadas na rua. A democracia portuguesa conquista-se no processo revolucionário. E é essa a matriz. A matriz da democracia portuguesa é revolucionária.

Acha que os líderes de então tinham na cabeça os erros da I República que não podiam repetir? Por exemplo, ignorar a natureza rural de grande parte do país?
Naqueles meses, desde o 25 de Abril até ao 28 de Setembro de 1974, ninguém estava à espera da explosão revolucionária nem ninguém estava preparado para ela. É uma coisa que apanha toda a gente de surpresa, a começar pela antena da CIA, que não tinha cá ninguém responsável, porque em Portugal não se passava nada. Toda a gente é apanhada de surpresa pela vaga revolucionária popular desencadeada com o 25 de Abril. E afronta não só a Junta de Salvação Nacional como também o PCP e a Intersindical, que chega a convocar manifestações contra as greves. É nessa vaga revolucionária que cresce muito a esquerda radical.

Nos textos deste livro enfatiza muito as divisões à esquerda, entre o PCP e os partidos da extrema-esquerda. E até diz que essas divisões chegaram até hoje. Pergunto: isso faz sentido? Não estaria na altura de sacudir isso? Ou o passado continua intransponível?
Para mim, [essas divisões] hoje não fazem sentido. Não faz sentido o sectarismo. Ainda existe sectarismo político na esquerda e é herdado do passado. Mas essa herança ideológica não faz sentido. Nenhuma corrente da esquerda pode seguir em frente sem se entender com as outras.

A "geringonça" provou isso?
Poderia ter provado se não fosse o PS ter roído a corda. Mas as lutas atuais sobre a habitação ou sobre a saúde são lutas que provam que tem de se pôr de parte essa visão sectária para unir forças, pelo menos em torno de objetivos concretos. É preciso juntar as pessoas todas. E não é só os partidos, é também os movimentos sociais. E é preciso respeitá-los genuinamente, não podem ser vistos como correias de transmissão. É preciso trabalhá-los em rede, de forma absolutamente unitária, de respeito mútuo, com toda a gente a discutir e a estabelecer plataformas comuns. É por aí que se tem de ir - e deitar fora as heranças ideológicas do passado.

Mas na "geringonça", enquanto plataforma de poder que juntou as principais organizações da esquerda partidária portuguesa, o que se verificou é que também nunca existiu um diálogo entre o PCP e o Bloco. Ou seja, o problema não foi só do PS com os outros dois. Foi também entre os outros dois, PCP e Bloco...
A única coisa que posso dizer sobre isso é que não foi da responsabilidade do Bloco. Não fizemos nada para que não funcionasse a três. E é preciso ultrapassar essas questões. E com a "geringonça" o que se passou foi outra coisa, que resultou do facto de a social-democracia europeia ter aceitado constituir-se como gestora da crise neoliberal. E fê-lo não como uma força alternativa ao sistema neoliberal, mas como gestora dos princípios do sistema neoliberal. Isso faz com que os partidos socialistas aceitem essa gestão e isso está muito visível neste governo.

Nessa unidade à esquerda que advoga, vai ao ponto de dizer que um dia será necessário o BE e o PCP se entenderem numa plataforma partidária comum?
Isso se verá. O caminho a fazer é de unidade na ação nas grandes lutas sociais. Porque se começarmos por cima isso é muito complicado, porque voltam as questões todas, quantos lugares é que tu tens, quantos lugares é que eu tenho. Acho que se devia fazer a coisa de baixo para cima.

O seu livro acaba naquilo que chama de "novembrismo", ou seja, na sua análise do que foi o 25 de Novembro e as suas consequências. Mais uma vez fala muito das divisões à esquerda. Das guerras entre a extrema-esquerda e o PCP, quem acabou por lucrar com isso foi o PS?
Na revolução que existiu foi um campo que se reivindicou, heteroclitamente, da "revolução socialista" [todo o campo à esquerda do PS]. E esse campo foi em grande medida paralisado, mas não tinha uma hegemonia declarada. O PCP era muito importante, mas a extrema-esquerda também tinha muita importância. E anularam-se mutuamente. E a política muito sectária do PCP então assusta muito as classes intermédias do mundo urbano, que começam a passar-se para o outro campo, que basicamente fala de uma democracia europeia, parlamentar, e que vai do Grupo dos Nove [militares moderados] até à extrema-direita.

O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, anunciou que organizará uma grande iniciativa para celebrar os 50 anos do 25 de Novembro de 1975. Como é que vê isso?
Defino o "novembrismo" como uma normalização democrática. Não acho que o 25 de Novembro tenha sido uma contrarrevolução. Acho que foi uma contenção pactuada do processo revolucionário.

Pactuada entre quem e quem?
Entre o PCP e os "melo-antunistas" [militar preponderante no setor moderado do MFA]. E é uma contenção que faz a economia de uma contrarrevolução sangrenta, como queria a direita mais radical. Ou seja, não há proibição de partidos, não há proibição de sindicatos, não há prisão de ativistas. Sim, há prisão de militares, depuração dos meios de comunicação social com mudança dos comissários políticos todos na imprensa estatizada [substituição de jornalistas afetos ao PCP por jornalistas afetos ao PS]. E a Constituição que vai sair dali, em 1976, consagra todas as conquistas da Revolução, pelo menos no papel: as nacionalizações, a Reforma Agrária, os órgãos de vontade popular - está lá tudo. E quando estas conquistas são revogadas, essa revogação veio das urnas, quando o PS abre as portas à direita. Portanto, o 25 de Novembro trouxe duas coisas essenciais, que mudam a relação de forças completamente: primeiro, quem governa é quem ganha as eleições, ou seja, a legitimidade das urnas sobrepõe-se à legitimidade da revolução; segundo, acabou o MFA. Dissolve-se como movimento e reintegra-se nas Forças Armadas. Repõe-se a hierarquia das Forças Armadas e portanto o movimento popular subsistente perde, sobretudo na zona da Reforma Agrária, o apoio que tinha dos militares. Isto altera completamente a relação de forças. E o processo entra num refluxo.

E, afinal, então quem é que ganhou com o 25 de Novembro? E quem é que perdeu?
Não poria a coisa nesses termos. O processo revolucionário é contido. Mas, no entanto, tem força suficiente para guardar a democracia. A democracia vem do processo revolucionário e é guardada até hoje, as liberdades fundamentais e as bases do que viria a ser o Estado social. Isso são conquistas do processo revolucionário que se mantiveram. E depois perderam-se outras: perderam-se as conquistas mais avançadas, que não se conseguiu segurar, como a Reforma Agrária ou as nacionalizações, boa parte dos direitos laborais. Foi travada uma aspiração a uma transformação revolucionária progressista socializante da sociedade. Ganhou um modelo de democracia parlamentar ocidental - que acabaria depois, com o cavaquismo, por se render totalmente ao neoliberalismo, algo totalmente reforçado mais tarde com o governo da troika [2011-2015].

Mas, voltando atrás, e quanto à iniciativa de Moedas de celebrar os 50 anos do 25 de novembro?
Que a direita queira celebrar o 25 de Novembro é para o lado que durmo melhor. Pode comemorar o que quiser. Mas a discussão tem sido mal colocada. O que a proposta de Moedas subentende é que a direita quer voltar ao mantra de afirmar que a democracia se impôs em Portugal apesar da revolução e não como fruto da revolução. Ou seja, querem dizer que existe democracia em Portugal como fruto do 25 de Novembro. E à esquerda considera-se uma interpretação que considero historicamente mais correta, que é dizer que a democracia é filha do processo revolucionário, houve coisas que se perderam mas a democracia ficou. Portanto, não existe democracia apesar da revolução; existe democracia por causa da revolução. Esse é o cerne do debate do "novembrismo". Que eles queiram celebrar o 25 de Novembro, enfim, é como os velhos fascistas comemoravam o 28 de Maio. Não lhes estou a chamar fascistas, aos que querem comemorar o 25 de Novembro, mas funcionalmente é semelhante. Escrevi este livro exatamente para isso mesmo, para dizer que a democracia que temos, mesmo com todas as suas incompletudes, é filha do 25 de Abril.

O 25 de Novembro não conduziu à extinção do PCP, por exemplo, nem dos sindicatos, nem de nada disso. Nessa medida, a extrema-direita tem de facto alguma razão para celebrar a data?
A direita em Portugal tem alguma razão para comemorar o 25 de Novembro porque foi o início na alteração da relação de forças que permitiu o resto. E o resto foi um modelo de política e de economia que temos hoje. É o 25 de Novembro que permite à direita conquistar o poder [em 1979, com Sá-Carneiro à frente da Aliança Democrática]. Ele é o herói da direita porque põe a direita outra vez no poder.

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