Fernando Melão: um tempo de Excesso
No regresso dos Excesso, o Melão caiu ao fosso - mas levantou-se, impante e lesto, voltou ao palco do Altice Arena e ainda acabou a noite a dar autógrafos e a tirar selfies até às cinco da madrugada, seguindo dali para o Hospital Garcia de Orta, onde o trataram. "Esbardalhou-se", logo silvaram os maldosos nas redes, com a sua filha Yasmin a atalhar dizendo "agora tenho-o de muletas em casa", talvez sem se aperceber de que naquela queda e regresso está uma eloquente metáfora do que tem sido a atribulada vida do senhor seu Pai, um homem que tem a bondade estampada no rosto, e crê-se que também na alma.
Dos cinco membros dos Excesso, ai-jesus de muito coraçãozito Anos 90, a primeira e mais exitosa banda de rapazes portuguesa, com mais de 160 mil discos vendidos e quatro platinas, apenas Fernando Melão, do signo do Escorpião, continua a viver quase exclusivamente da música: Gonçalo Vasconcelos, "Gonzo", Virgem, antigo comissário de bordo, ensaiou uma carreira a solo, tornou-se depois DJ e, desde 2014, dedica-se ao agenciamento e produção musicais, isto além de ter tido um filho Mateus com a empresária Filipa Vicente, ex-Simão Sabrosa; João Portugal, Capricórnio, é fotógrafo na televisão e na moda, após ter feito música para novelas e gravado vários, seis, discos a solo; Miguel Moredo, "Duck", também Capricórnio, optou pela carreira de vendedor da Coca-Cola, onde está há 18 anos, e casou-se com a sua namorada de longa data, Andreia, da qual teve um filho, já com 13 anos; Carlos, do signo Peixes, o antigo porta-voz dos Excesso, é, estranhamente, o mais esquivo dos cinco, aquele cuja saída da banda, em 1999, após um épico concerto no Coliseu dos Recreios, precipitou a dissolução do grupo. Carlos fixou-se no estrangeiro, primeiro em Espanha, como guia turístico, depois na Austrália, onde trabalha na área da hotelaria, nem quis sequer falar para o programa Perdidos e Achados, da SIC, que em 2012 fez uma retrospectiva dos Excesso, mas não deixou de comparecer ao histórico come back do Altice Arena, a 19 de Maio passado, aquele em que o Melão, por distração, deu um valente trambolhão no fosso da orquestra, de onde foi resgatado, vivo e contente.
Curiosamente, ou talvez não, os membros dos Excesso não se conheciam antes da formação do grupo. Um a um, responderam à chamada para um casting em Mem Martins e só aí souberam quem iriam ser os seus colegas numa banda de gaiatos que procurava mimetizar o êxito de agrupamentos congéneres então lançados no estrangeiro, como os Backstreet Boys, formados na Florida em 1993, ou os Take That, de Manchester, criados em 1995.
Melão era bailarino e, com desarmante candura, admite hoje, sem problemas, que lhe faltava um dos ingredientes essenciais para participar numa banda musical: a voz. Quando fez o casting de Mem Martins, lembra-se de ter pensado "como é que é possível um gajo como eu, eu não canto nada, como é que eu vou ficar nisto?!" Mas o certo é que ficou, e bem, tal qual João Portugal, a quem escasseavam dotes de dançarino ("Eu a dançar era uma nódoa, e ainda hoje sou", disse João Portugal ao Perdidos e Achados). Do resto se encarregariam outros, como Zahir Assanali, sócio da NZ Produções, a produtora que recrutou e reuniu os miúdos, José Varadas, o manager dos Excesso, e os homens da Polygram, a chancela que, após muita porfia, lá lhes editou o primeiro álbum, Eu Sou Aquele, de 1997, e depois o segundo, Até ao Fim, de 1999.
A alquimia surgiu precisamente daquela junção de talentos moços num todo que, sem ser coerente, ainda assim funcionava, pois tinha o essencial para o gasto: caras larocas, vozes de anjos, cabelos acetinados, por vezes oxigenados, quase sempre abrilhantados, abdominais cinco estrelas, coreografias enérgicas, e muita alegria de vida, o optimismo próprio da década de 1990, quando o fim da URSS e a queda do Muro levaram muitos a pensar que era chegado o "fim da História" e que doravante viveríamos todos num mundo radioso de consumo e paz, ilusão que os ataques às Torres Gémeas se encarregariam de desfazer em poucos minutos.
Os membros dos Excesso reconhecem actualmente que foram um "produto fabricado", como disse Carlos à MAAG de 18/5/2023, o que em nada deslustra ou diminui o muito que então alcançaram: concertos cheios como um ovo, fãs em delírio, moças evacuadas em braços, carros partidos, os extremos da praxe, outros bem mais do que isso - entrevistado por Daniel Oliveira, para o Alta Definição, da SIC, Melão recordou que, nos espectáculos dos Excesso, chegou a haver miúdas que tentaram cortar os pulsos em público, na mira de atenção e de um autógrafo. Todas as músicas do primeiro álbum atingiram os tops de vendas (Eu Sou Aquele, Não Sei Viver Sem Ti, Não Quebres o Meu Coração), e houve, claro, um oportuníssimo merchandising, com linhas de calçado, de perfumes, de roupa. Não terão vendido tanto como outros grupos que os antecederam - os infantojuvenis Onda Choc e Ministars, cada um com um milhão de discos - ou que lhes sucederam, como os D"ZRT, com 500 mil cópias comerciadas e 13 platinas para o seu álbum homónimo, de 2005; mas foram, ainda assim, um sucesso d"arrasar, para usar um termo hoje em voga e que deu o nome a outra boysband da altura, também ela um fogo-fátuo.
O grupo desfez-se "estupidamente", diz Melão, pesaroso, sedento de um regresso aos palcos ("infelizmente, acabou como acabou na altura em que acabou, aquilo podia ter durado anos e anos"). Após os excessos dos Excesso, um tempo em que a vida na banda os consumia 24 horas por dia, sugando-lhes a existência, explorando-os até ao tutano, Melão lançou-se numa carreira a solo, e o seu disco de estreia, Coração de Melão, de 2000, correu até muito bem:
Coração de melão, de melão
Melão, melão, melão, melão
Coração"
...rezava a letra, talvez um nada autocentrada e até kim-il-sunguista.
Um dia, algures em 2000, quando estava em tournée pelas Ilhas, Melão soube pelo telejornal de um boato infamante que o ligava ao futebolista José Calado, que nem sequer conhecia. "Não desejo a ninguém aquilo que passei", "estragou-me completamente a vida", que ficou condicionada durante mais de duas décadas, duas décadas em que ouviu de tudo, em toda a parte, disse no Alta Definição.
Por causa do rumor abjecto, cuja origem ainda hoje ignora (fala-se de uma crónica de Manuel Serrão n"O Jogo, afecto ao FC Porto), cancelaram-lhe concertos já agendados, no valor de 250 mil euros, nos espectáculos atiraram-lhe ovos, tomates, chamaram-lhe do piorio. "Passei por fases em que não tinha nada. Pedi dinheiro emprestado para pagar a renda, carros emprestados para ir à televisão. O mais difícil foi manter um nível de trabalho anual constante. Quando um Verão não corria tão bem, sabia que no ano seguinte seria ainda pior." Calado, de seu lado, foi jogar em 2001 para o Real Bétis Balompié, de Sevilha, de onde seria emprestado, dois anos depois, a uma equipa da segunda divisão espanhola, o Polideportivo Ejido.
Fernando Jorge Melão, a quem já chamaram "o Ricky Martin português", nasceu em 5 de Novembro de 1974, em Angola, de onde regressou com a família passado um ano. O seu pai perdeu tudo em África, mas, no retorno, Melão teria uma infância e uma adolescência felizes, passadas em Queluz e marcadas pela dança e por Michael Jackson. Aos fins-de-semana, praticava os passos nas discotecas, onde começou a ser notado. Contrataram-no para bailar, foi Campeão Nacional de Dança aos 17 anos, abriu os Globos de Ouro, tendo até feito espectáculos de striptease no Coconuts, onde ganhou bom dinheiro. Com o pai, muito mais velho do que ele, e que não lhe aceitava as calças rotas e o brinco, esteve largos meses sem falar, chegando a ser expulso de casa. Viveu então numa tenda, num parque de campismo, nas raias da miséria, dias a fio a torradas e a copos de leite. Depois foi o estrelato, a loucura só terminada com o fim dos Excesso e do seu projecto a solo, a que se seguiu a entrada, em 2002, no Big Brother dos Famosos 2, ao lado de personalidades eminentes como Cláudio Ramos, Ruth Marlene ou Rita Ribeiro, e onde ficaria conhecido como "dorminhoco", por ser capaz de dormir 12 horas seguidas, sem dramas existenciais, nem sobressaltos de consciência.
A crise e a troika levá-lo-iam, em 2010, a fazer as malas e a comprar uma fazenda de gado no Brasil: "O negócio das vacas estava a dar no Brasil, as de quatro patas, é preciso frisar, decidi arriscar", contou à revista Flash! Ao princípio, mil maravilhas, vacas atrás de vacas, negócio de vento em popa, tanto mais que, por decisão do Governo brasileiro, as crianças pobres deixaram de ir para as escolas somente com uma bebida energética açucarada, o "cháfé", e passaram a tomar leite pela manhã. Melão chegou a ultrapassar a sua quota legal de produção leiteira, vendeu o remanescente ao chefe de uma favela, mas depois, sem que se saiba como e porquê, a coisa sujou e estoirou. Perdeu o que tinha por terras de Vera Cruz, regressou a Portugal na penúria, mas com um novo projecto, intitulado, não por acaso, "Eu Estou de Volta", coisa que, infelizmente, poucos ou nenhuns notaram.
A seguir, tornou-se Relações Públicas de um bar em Azeitão e entrou na 2.ª edição do Big Brother dos Famosos, em 2022, mas acabou por desistir ao fim de pouco tempo, talvez pela comoção gerada nas redes sociais pelas afirmações que aí proferiu no Dia Internacional da Mulher, quando disse que seria necessário existir também um Dia Internacional dos Homens. Porque ninguém é perfeito, há notícia de que, em 2021, animou um comício-festa do Chega, na Batalha, ao lado de Ricky Ricky e suas bailarinas, do DJ João Parreira e de Maria Vieira, acrescentando a mesma notícia que, não estando garantida a presença de André Ventura no evento, iria haver, em contrapartida, porco no espeto gratuito.
Com o avançar da existência, até os esbeltos corpos fenecem, enquanto o espírito que neles se hospeda vai ganhando, espera-se, uma outra sabedoria, maior e mais densa profundidade. Hoje, Fernando Melão diz viver em paz e até consta que tem nova namorada, Sofia Branco, relação que ambos pretendem discreta, mas ainda assim já publicitada (Correio da Manhã, 27/5/2023). Disse, um dia, sobre a experiência dos Excesso: "Descobri, afinal, que o sonho que nos vendem é tão fácil de se transformar num pesadelo que eu não quero nada disso para mim." Sábias palavras, grande Melão.
Post scriptum - quando este texto já estava entregue para publicação, surgiu a imprevista e infausta notícia de que Fernando Melão e Sofia Branco, sua namorada, sofreram um aparatoso acidente de moto em Fernão Ferro, no Seixal, encontrando-se os dois internados no Hospital de São José, em Lisboa. A ambos, votos de melhoras rápidas, pois fazem cá muita falta.
*Prova de vida (13) faz parte de uma série de perfis
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.