"Fazer de Maria Adelaide em Ordem Moral – que papelão maravilhoso!"
Maria de Medeiros, sempre frágil e sempre forte, regressa ao cinema português. Depois de Mar, de Margarida Gil, Maria de Medeiros volta aos nossos ecrãs para a semana com Ordem Moral, de Mário Barroso, baseado na história de Maria Adelaide Coelho da Cunha, proprietária do Diário de Notícias que foi acusada de louca aos 48 anos por ter tido uma história de amor com o seu motorista, metade da sua idade. É um regresso "feliz". Trata-se de um dos papéis mais marcantes da sua carreira. Uma Maria livre e vigorosa num filme que dispensa o olhar lúdico da luxúria e assume as rédeas de crónica de costumes de uma Lisboa de 1918 tão hipócrita como castradora para as mulheres.
Mário Barroso e Carlos Saboga, o argumentista, não deixam a mulher que lutou para que o Diário de Notícias, fundado pelo pai, não fosse vendido, cair no cliché da vítima. Temos uma mulher que preferiu a paixão, ainda que proibida, a uma existência de condescendência com o adultério do marido e uma sociedade fútil que se entretinha em jogos de aparência e má-língua em plena gripe espanhola. O filme, entre muitos outros méritos, nunca é excessivamente académico e sabe contar uma história com ritmo e clareza. Além de Maria de Medeiros, tem interpretações seguras de nomes como Júlia Palha, Marcello Urgeghe, João Pedro Mamede, Albano Jerónimo e João Arrais. Nesta entrevista, a nossa atriz mais internacional faz um convite para irmos ao cinema sem medos...
A Maria é daquelas atrizes que acreditam na necessidade de exploração dos factos históricos e de pesquisar para além daquilo que o argumento revela? Pergunto isto no caso desta história verídica de Maria Adelaide Coelho da Cunha, proprietária em 1918 do Diário de Notícias... Quis saber mais sobre esta mulher, interessou-se por este caso?
Sim, investigo sempre, sobretudo quando é o caso de personagens que existiram. Tentei ver muita coisa sobre Maria Adelaide, de fotografias a tudo o que o Mário Barroso [o realizador] me passou. E o que é curioso é que se trata de alguém que já teve muita ficção sobre si - há dois livros sobre a sua vida, um dos quais da Agustina [Doidos e Amantes], infelizmente difícil de encontrar. Ainda assim, o Mário Barroso leu-o e passou-me muito dessa sua visão. Aliás, ele foi muito tocado pelo livro da Agustina e tal reflete-se bastante no filme. E é também a segunda vez que o cinema se interessa por esta personagem [Solo de Violino, de Monique Rutler, 1990]. De facto, Maria Adelaide desperta muito o desejo de ficção e desperta aquela curiosidade de onde a história pode ir. Obviamente, pode ser vista como uma história de amor, mas Ordem Moral talvez vá para além disso. É uma história de imensa revolta.! Esse foi também o ponto de vista do Mário e do Carlos Saboga, o argumentista. Não é por acaso que se chama Ordem Moral... Trata-se de uma provocação.
Essa ordem moral que é a de 1918 terá deixado marcas em nós portugueses ainda hoje? Essa moralidade é muito lusitana?
Não sei...O que observo, de uma forma geral, é um grande retrocesso em todo o mundo. Um retrocesso em muitas coisas e até acho que os portugueses até nem estão assim tão mal em relação a estas correntes de extrema-direita, embora haja sempre um ou outro macaco... Esses macacos não têm a força que essa direita tem noutros países. Diria que são muito assustadoras essas correntes de retrocesso.
E o puritanismo volta em força...
Sim, sem dúvida. O Mário e o Saboga claro que apanharam toda esta atualidade nesta temática. Isto é global e é preciso não esquecer o #MeToo, os novos feminismos, em especial das novas gerações, e isso é tão importante. Ordem Moral tem realmente um bom timing, vem na altura certa.
Pois, olhamos para o passado e agora há um efeito de ricochete...
Absolutamente. Encontramos coisas em 1918 que agora voltam a acontecer. A luta desta mulher é uma longa luta. Infelizmente, a luta contra a discriminação ainda tem muito pela frente!
Mas este é daqueles casos em que não é cliché dizer-se que o papel é mesmo um presente para uma atriz. Um presente que, acredito, lhe deva ter dado uma enorme fonte de prazer...
Foi um grande, grande presente! Devo dizer que estou muito grata ao cinema português. Foram os cineastas portugueses a oferecerem-me alguns dos mais extraordinários papéis da minha carreira. Estou a pensar em Os Três Irmãos, da Teresa Villaverde, no Viagem a Portugal, de Sérgio Tréfaut, e agora este papelão maravilhoso. Em Ordem Moral há a questão dos contrastes e qualquer ator adora isso. Toda a história da Maria Adelaide é sobre o contraste de alguém que tem tudo, vive num imenso luxo, muito rica e extremamente respeitada na sociedade de Lisboa e, depois, acontece-lhe o oposto de tudo isso. Maria Adelaide acaba por se desfazer de tudo, fica a viver sem nada e é rejeitada, torturada e desprezada pelos seus.
E perante a ideia de vender o Diário de Notícias opõe-se fortemente, dizendo: "Não concordo. Não consinto. Não assino. E não vendo. E não discuto...." Parece que mais uma vez há uma certa atualidade nesta história...
Sim, sim, tem total atualidade. As coisas não mudam. Essa frase dela é muito engraçada...
E foi gratificante aderir à personagem afetivamente?
Sim, mesmo sendo uma mulher empurrada para a loucura. O desafio era como lidar com a loucura. Com a loucura que temos em nós, mesmo quando teoricamente não somos loucos. Isso foi muito interessante do ponto de vista da representação.
Refletiu sobre o que é a loucura?
Sim, muito. E pensei muito sobre de que lado está a loucura. É curioso mostrar que naquela elite dos psiquiatras portugueses, tão respeitados e prezados, há uma brutal misoginia.
Realmente, Egas Moniz e mesmo Júlio de Matos não ficam muito bem na "fotografia".
Eles são vistos como torturadores e dominados completamente pelo preconceito.
E há algum momento em que um ator, a meio da rodagem ou mesmo antes, sente que conseguiu chegar à personagem? Com a Maria Adelaide houve algum clique em que disse "já ganhei a personagem"? Ou, pelo menos, quando se percebe que se está no bom caminho?
O meu método é trabalhar de forma muito intensa na preparação para depois estar completamente disponível para o realizador. Com Ordem Moral havia uma grande confiança e cumplicidade com o realizador - isso ajuda muitíssimo. Para já, só vi o filme uma vez e gostei muito. Sinceramente, tinha-me esquecido de tudo: não me lembrava de nada! Num espaço apenas de um ano tanto já se passou: aprendi um outro texto de teatro e consegui realmente assistir a Ordem Moral como espectadora.
Deu-lhe prazer...
Sim. E já nem sabia como é que aquilo terminava! Adorei a fotografia, os enquadramentos e todo o nível dos atores. São todos muito bons e eficazes. Enfim, tive realmente gosto em ver o filme. É ótimo!
Mas está preparada para alguma exposição, não está? O seu nome e rosto vão estar num cartaz que vai dar nas vistas.
Sim, eu com aquele bigodinho. Outra provocação muito feminina. Mas aí evoca-se o lado da Maria Adelaide que eu acho delicioso - ela fazia e encenava aquelas peças de teatro não como capricho, mas sim como revolta. Era uma forma de escapar, de poder ser livre de uma sociedade muito masculina.
Estamos a viver um momento muito interessante do cinema português. O Pedro Costa vence o Leopardo de Ouro em Locarno, Variações é um sucesso, A Herdade é aclamado... Sente isso?
Sinto e é tão bom, mas sempre tive muito orgulho e fé no cinema português. Gosto de toda a variedade que temos. As pessoas não imaginam como fora de Portugal o nosso cinema é tão respeitado. E estão sempre a surgir pessoas e propostas novas, mesmo que não sejam necessariamente para mim. Somos um país pequeno mas há uma multiplicidade de estilos e de personalidades que me parece muito bem. É verdade, vão sempre surgindo boas surpresas. Temos uma especificidade que é absolutamente audaciosa. O nosso cinema sabe explorar formas...
A Maria não reside em Portugal mas certamente chega-lhe aos ouvidos a dificuldade do setor no plano dos apoios... Aliás, o facto de nem termos sequer 1% do Orçamento para a cultura não a deixa indignada?
Obviamente, tento seguir toda a situação e claro que será sempre preciso ajudar mais e mais a cultura. Trabalho em muitos países e vejo que essa luta pelo reforçar e existir o espaço da cultura é uma luta geral, não é só de Portugal. Vejo que esse sofrimento e essa batalha constante são em todo o lado. Olho para o Brasil, onde acabei de realizar um filme, e vejo toda aquela calamidade, ou seja, piorou...Fico de coração partido.
E como está a situação desse filme, Aos Nossos Filhos, em que Ricardo Pereira é também ator? A rodagem já terminou há bastante tempo.
Com estes cortes ao cinema brasileiro a sua pós-produção esteve parada. Terminámos a rodagem entre os dois turnos presidenciais e depois veio o descalabro. Só agora estão a conseguir tratar de toda a burocracia para o filme poder sair. Espero que se estreie em breve.
Este não vai deixar de ser o regresso da Maria de Medeiros à ficção. Muitos ainda se lembram com um sorriso de Capitães de Abril, estreado em 2000. Depois disso fez cinema documental.
Não distingo muito a ficção do documentário, tudo é cinema. Aos Nossos Filhos é uma ode à maternidade e é baseado na peça de Laura Castro sobre as novas estruturas familiares. É sobre filhos, sobre mães... Em relação a Capitães de Abril também me lembro de que vivíamos um período muito feliz do cinema em Portugal. Todos falavam de uma certa reconciliação com o público. Havia um verdadeiro interesse pela produção cultural. Acontecia também um entusiasmo grande pelos escritores, pelos músicos... Mais tarde, foi uma tristeza: isso perdeu-se um bocado e voltou uma certa descrença. Felizmente, agora, parece estar a voltar uma vontade de ver cinema português.
Mas não continuamos naquele erro de haver uma guerra idiota entre uma ideia de cinema de grande público em oposição a um cinema mais artístico?
Pois, mas na altura o Adão e Eva fazia tantos espectadores e agora não poderia estar mais atual! Curiosamente, esse filme de Joaquim Leitão está a ser redescoberto por certos festivais, sobretudo em certames LGBT. Incrível um filme dos anos 1990 a fazer completo sentido hoje! Felizmente, certos filmes podem ter segundas vidas.
No ano passado celebraram-se os 25 anos de Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Como se sente por estar nessa obra que hoje é um pedaço da nossa cultura pop? É como fazer parte da história contemporânea do cinema...
É muito especial. É uma memória muito bonita. Trata-se de um filme com mil e uma vidas, um filme-gato. Nós todos os que fizemos o filme nunca imaginámos que poderia provocar esse efeito nas pessoas. Sinto que é muito bom estar ligada a ele. Enfim, é daquelas coisas... Lembro-me do momento em que li pela primeira vez o guião do Quentin, era um guião muito grande, todo muito escrito. Certamente é um grande privilégio.
Curiosamente, há um ator americano, o Lawrence Fishburne, que recentemente acusou o guião de glorificar o consumo da heroína.
A sério? Nem sabia, se calhar é daquelas coisas misóginas...
E qual é a recordação que tem de Henry & June (1990), de Philip Kaufman?
Uma imensa felicidade. Gosto tanto desse filme. Tivemos tanto prazer em fazer essa obra e o Philip é um imenso cineasta. Recentemente, estivemos juntos na Cinemateca francesa quando ele foi alvo da retrospetiva e foi qualquer coisa de muito emotivo para todos nós. Uma grande emoção para mim ter estado de novo com o Philip.
Sente que aqui em Portugal não deveria ser mais celebrada, sobretudo depois do que tem feito internacionalmente? Sinto que não tem um reconhecimento tão grande como merecia...
Não vamos colocar a culpa nos media, isso já aprendi depois do que se passou com Trump e Bolsonaro [risos].
Terá que ver com uma cultura nacional em que se celebra um pouco a febre da juventude?
[pausa] Nada contra apostar e promover as novas gerações. Mas ouço, sim, falar de uma certa relação dos portugueses com os seus artistas, um pouco como se fossem mal-amados. Sinceramente, penso que isso não é importante.
Não ficou magoada por Mar, de Margarida Gil, ter sido maltratado pela imprensa e ignorado pelo público no ano passado, quando se estreou por cá?
Magoada? Não, talvez triste pela Margarida. Foi um projeto que me agradou muito e que reflete o fascínio pelo tema do mar e tocado pelo imaginário de Sophia de Mello Breyner Andresen. Um filme muito feminino e filmado tão à maneira da Margarida, alguém que tem uma visão de cinema só dela. E tem um Pedro Cabrita Reis genial! Há ali algo sobre a liberdade e a força feminina. Se calhar, acabou por ser vítima dessa misoginia que aí prolifera.
Muito conhecem-na como cantora. A experiência da música no palco ajudou-a como atriz?
Sim, certamente. O palco e a noção teatral ajuda sempre. Creio que evoluí, claro. Em palco a cantar não deixo de estar a atuar e cada vez que se está num palco é impossível não pensar naquilo que Pina Bausch nos deixou, toda a noção de coreografia. Inconscientemente, um ator pensa em close-ups quando sobe a palco, é instintivo e eu acredito que com a experiência isso acontece de facto.
Entretanto, vai em breve filmar Eureka com um dos cineastas argentinos mais aclamados, Lisandro Alonso. Será também a oportunidade de contracenar ao lado de Viggo Mortensen.
Já estávamos quase, quase a começar e veio a pandemia. Mas o filme vai mesmo fazer-se, só não se sabe quando. Todos temos muita vontade.
Entretanto, continuamos sem conhecer cá em Portugal Dos Fridas, o filme que colocou a Maria em rota com Frida Kahlo.
Sim, infelizmente, a distribuição tem dessas coisas. É uma pena. Fiz muitos filmes dos quais gosto imenso que nunca chegaram a Portugal. Dos Fridas, da Ishtar Yasin, é um desses! A Ishtar é uma cineasta e artista muito especial, é da América do Sul mas também do Iraque. Há nela uma confluência de culturas absolutamente extraordinária. O filme é belíssimo e o meu papel é fascinante, sou a enfermeira que tratou da Frida Kahlo. De alguma forma, todas as pessoas que conviveram com a Frida acabaram por se apaixonar por ela. Certamente esta enfermeira viveu uma história de amor com a Frida. E esta é uma história de amor muito forte. Apesar de o filme não ser nada linear do ponto de vista da cronologia, depois da morte da Frida, esta enfermeira da Costa Rica e formada na União Soviética teve uma identificação enorme e espiritual com a artista. Aliás, a identificação foi também física, ela transformou-se na Frida e chegou também a ter um acidente: um carro subiu o passeio por onde ela seguia. O filme é uma viagem onírica pelo universo da Frida e é muito belo.
Ironicamente, um ator internacional que faça muitos filmes como a Maria depois não controla a vida comercial desses filmes. Sei de atores que nunca são informados das estreias...
Infelizmente, os atores não têm voz nisso.
A produção nunca puxou por si?
Ser produtora nunca foi algo pelo qual ficasse atraída. Reconheço que é importante ter uma boa relação com um produtor, mas não me sinto capaz de produzir.
Mas dentro do plateau, quando dirige, não tem de ser um pouco produtora também?
É evidente que sim. Gosto até muito desse lado de pôr as coisas de pé ao nível criativo. E tenho sempre a consciência das limitações, quase todos os filmes são arrancados a ferros.
Há ainda muita gente com medo de ir ao cinema. Como se combate isso?
Creio que é mais perigoso estar numa fila num supermercado e no autocarro. Os cinemas hoje têm todas as regras de segurança e a cadeira ao lado nunca será ocupada. O confinamento acabou! É importante todos regressarmos às salas. O cinema faz bem.