"Fascismo nunca mais" é o lema mais importante que a sociedade portuguesa alguma vez teve
É com "fascismo nunca mais" que, na sociedade portuguesa, se exprime o repúdio ao regime de Salazar. Reconheço a carga que a palavra "fascismo" legitimamente ganhou e, independentemente da classificação que acho mais correta, nunca pensaria manifestar-me contra a existência desta frase. De igual modo, jamais ousaria sugerir que os que lutaram contra a ditadura deixassem de se chamar a si mesmos de antifascistas (todo o meu respeito por eles). Há coisas mais importantes do que ser rigoroso e não deixa de ser verdade que a ditadura portuguesa incorporou elementos fascistas e que, no sentido que a palavra adquiriu, foi, sem dúvida, "fascista" (quem quiser usar a palavra com esse sentido está, obviamente, no seu pleno direito). "Fascismo nunca mais" é, muito provavelmente, o lema mais importante que a sociedade portuguesa alguma vez teve e estou totalmente de acordo com a ideia que ele transmite. Que o repitam sempre e por várias gerações! Demarco-me, assim, de todos os que se aproveitarem do que quer que eu possa aqui dizer para tentar legitimar os anos de repressão salazarista.
Dito isto, julgo ser legítimo tudo o resto que escreverei neste artigo. Vem isto a propósito de uma entrevista que me fizeram a propósito do livro que publiquei (Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini) e que surgiu no DN com o título "O Estado Novo não pode ser classificado como fascista". Compreensivelmente, algumas reações menos positivas não se fizeram esperar. Devo dizer que procuro evitar este tipo de confrontos, pois sou "apenas" um académico apaixonado pela investigação, e abro aqui uma exceção para me explicar e evitar mal-entendidos. De resto, julgo que este tipo de polémicas está um pouco ultrapassado e, apesar de continuar a acreditar que as classificações dos regimes e partidos são importantes, sou o primeiro a reconhecer que há muitos outros tópicos tão ou mais relevantes. Em todo o caso, darei uma breve explicação, baseada no meu trabalho de investigação.
O fascismo e a classificação do regime português
Talvez a afirmação mais concisa sobre o ponto em que se encontra a investigação a respeito dos "candidatos" a regimes fascistas está numa obra editada, entre outros, por Ismael Saz. Nela, é-nos dito que "existe um consenso relativamente amplo em vários campos de estudo historiográfico que vê as ditaduras italiana e alemã como os únicos regimes totalmente fascistas" (Reactionary Nationalists, Fascists and Dictatorships in the Twentieth Century, 2019, p.10). Estes regimes tiveram como ponto de partida a chegada ao poder de um movimento de massas que se dizia "revolucionário", apelava à ação direta, à mobilização das massas populares, ao culto da violência, e fazia uso de todo um conjunto de rituais, símbolos e liturgias, além de procurar alterar as formas de organização da sociedade e a relação das massas com os líderes. Além disso, os movimentos fascistas tinham como objetivo (sublinhado por Roger Eatwell) a criação de "novas elites heroicas" que substituíssem as elites "decadentes", distinguindo-se das ditaduras criadas sem que as classes dominantes necessitassem de fazer uma "aliança" com um movimento fascista.
No geral, tem predominado na investigação internacional (não só anglo-saxónica) a ideia de que as ditaduras da época se dividem entre os muitos regimes conservadores e os dois regimes fascistas, embora as abordagens possam variar. Assim, para Roger Griffin, que define o fascismo como "ultranacionalismo palingenético", o regime português seria um "para-fascismo", que o autor no seu primeiro livro parecia descrever como um "falso fascismo", isto é, um regime conservador que, sem o mesmo radicalismo na construção de uma "nova nação" e de uma modernidade alternativa, adota roupagens fascistas. Já para Robert Paxton, seria a aliança entre as elites conservadoras e o movimento fascista, bem como as tensões que dessa aliança fazem parte, que servem para identificar os regimes fascistas. Stanley Payne, por sua vez, utiliza uma tipologia que distingue entre o autoritarismo conservador, a direita radical e o fascismo, inserindo-se o caso português na primeira opção (um regime cuja rutura com as instituições tradicionais não é tão radical quanto a de outras variantes da direita). Também autores marxistas (Poulantzas, Renton, Vajda), desenvolvendo teorias subtis, identificaram a ditadura alemã e italiana como as únicas "estritamente fascistas" ao colocar a sua atenção, por exemplo, no papel da pequena-burguesia que procura dirigir o estado capitalista, acabando apenas por reforçar a hegemonia da burguesia, agora com a predominância do capital monopolista.
As abordagens mais recentes e o conceito de hibridização
Nos últimos anos, contudo, novas abordagens, como a transnacional, têm vindo a tornar-se predominantes. Michel Dobry sugeriu que se abandonasse a "obsessão" com as classificações, propondo que se estude a direita do entre guerras levando em conta o dinamismo, as influências mútuas das diversas organizações, as perceções dos que viveram naquela época, etc. Ainda que pessoalmente rejeitando as implicações das propostas de Dobry, que nos levariam a abandonar por completo as tipologias, aceito que a sua reflexão nos ajuda a compreender que as distinções entre as diversas variantes da direita não seriam tão vincadas quanto a historiografia tradicional tende a pensar e que é possível falar, de uma "hibridização", como refere Aristotle Kallis (autor que, inicialmente, chegou a argumentar que o "para-fascismo" seria uma genuína forma de fascismo, só que menos radical), Assim, pode dizer-se que, por razões que não tenho espaço para explicar, ocorreu, nos regimes conservadores, uma "fascização" parcial que nos permite falar de um "conservadorismo fascizante" (expressão usada por vários autores portugueses). É precisamente por julgar que essa fascização foi parcial que prefiro adotar esta expressão à que é usada por Fernando Rosas e Manuel Loff: "fascismo conservador". Julgo, pois, que "conservadorismo fascizante" é uma classificação feliz para expressar o dinamismo e os processos de hibridização ideológica, que permitiram que os regimes conservadores se aproximassem dos fascistas, ao mesmo tempo salvaguardando a noção de que estes últimos eram diferentes, pois teriam uma evolução e caraterísticas estruturais distintas.
Remato dizendo que o meu livro é o resultado de uma investigação de quase dez anos que me levou a estudar afincadamente a história do fascismo, não por qualquer simpatia ideológica, mas para tentar compreender o que caraterizou este fenómeno político infame. Esta investigação levou-me a ler sobre personalidades pouco conhecidas que vão de Gustavs Celminš da Letónia a Nakano Seigo do Japão e Adrien Arcand do Canadá, e, entre outras coisas, a viajar até França em busca de textos de Jacques Doriot, Marcel Bucard e Marcel Déat. O livro que agora apresento ao grande público, que aborda muitíssimo mais do que a classificação do regime de Salazar, e no qual os especialistas (assim o temo) nada encontrarão de novo, resulta da minha convicção de que o conhecimento académico não pode ser apenas partilhado num circulo restrito de investigadores.
Aceitarei críticas que chamem a atenção para interpretações ou afirmações erradas (não alego ser um conhecedor profundo de todas as realidades nacionais abordadas) ou para momentos do livro em que, inadvertidamente, possa ter contribuído para apresentar estas ideologias de uma forma mais "suave" do que elas merecem (terei todo o gosto em reformular numa eventual reedição, se as críticas fizerem sentido). Não aceito que julguem que sou motivado pela ignorância ou por ideologias que não perfilho.
NOTA FINAL: chamaram-me a atenção para algo de estranho que teria dito na entrevista ao DN, pois aparentemente teria classificado o regime de Putin como fascista. Contudo, nunca lhe atribuo verdadeiramente esta classificação. O que digo é que se trata de um regime fundamentalmente conservador que adota aspetos "fascizantes", e é talvez o regime com maior tendência para inserir elementos "fascizantes" dos que surgiram nas últimas décadas. É, como diria Griffin, um "para-fascismo" (expressão que, ao que julgo, o próprio já terá utilizado para o regime russo).
Investigador e autor do livro Fascismos: para além de Hitler e Mussolini