Famílias das vítimas de Entre-os-Rios mostram "ao país que há vida depois da tragédia"
A casa é colorida; no jardim, crianças e adolescentes andam de bicicleta e jogam à bola; abraçam e beijam os adultos que tomam conta deles; metem conversa com quem entra. "Somos uma família numerosa", diz Marlene Gomes, a adulta responsável. Parecem, mas não é a realidade. Esta é uma habitação de passagem, para vítimas das circunstâncias e da ausência de responsabilidade de quem tinha esse dever. É, assim, que também se sentem os familiares dos que perderam a vida na queda da ponte de Entre-os-Rios, faz hoje 20 anos. Com o dinheiro dos donativos, construíram o Centro de Acolhimento Temporário. O próximo projeto é uma casa para vítimas de violência doméstica.
Marlene Gomes é a diretora técnica da "Crescer a cores", uma centro de acolhimento temporário (CAT) que esteve para se chamar "A ponte", mas decidiram dar-lhe um nome alegre. "A tragédia já foi tão dura, esse nome seria muito pesado. Optámos por "Crescer a cores", o que se quer é que cresçam, de forma positiva", explica ao DN. A casa tem uma vista deslumbrante para o rio Douro, está rodeada de 59 amendoeiras, tantas quanto as vítimas mortais que regressavam naquela noite de domingo de uma excursão às amendoeiras em flor. A rota percorreu Barca d"Alva, Castelo Rodrigo, Vila Nova de Foz Côa, Torre de Moncorvo e Vila Flor.
A casa foi inaugurada a 6 de fevereiro de 2009 e dois dias depois estava habitada. Atualmente, vivem ali 16 crianças e jovens em risco, entre os 10 e os 19 anos. Estão sob a proteção do Estado, porque os seus familiares negligenciaram os cuidados ou não o podem fazer. O mais velho já trabalha e pediu para ali ficar até ter a sua casa, que já encontrou e mobilou com a ajuda dos profissionais do CAT.
"Gosto mais de estar aqui, sou mais feliz". "Tenho comida, boa saúde". "Vivi com a minha bisavó, quando morreu fui para a minha avó que não tinha mão em mim". "Sou feliz e tratam de mim". Frases proferidas por essas crianças e jovens, cujos nomes e fotos não são possíveis de publicar dada a sua situação jurídica. Entre eles, três pares de irmãos.
Destaquedestaque59 vítimas mortais
Os adultos vão às reuniões de pais na escola, mas também às audiências dos tribunais, muitas vezes levam-nos pela primeira vez a um médico. A todos foi contada a tragédia que se abateu sobre a terra em 2001, também o significado das amendoeiras. "Quantos anos teria hoje o bebé que morreu", pergunta um. Fica a pensar quando lhe dizemos que seriam 20.
Vão à escola, alguns em cursos profissionais, uns estão nos escuteiros, há, também, praticam desportos.
Inicialmente, a casa era para crianças dos 0 aos 18 anos, sendo que era misto até aos 10. As necessidades foram-se alterando e percebeu-se que fazia mais sentido concentrarem-se no grupo a partir dos 10 anos e para rapazes.
Marlene Gomes, 38 anos, está no CAT desde a primeira hora, com um cargo de direção poucos meses após a inauguração. Parece que nunca fez outra coisa na vida. "Foi o meu primeiro desafio nesta área, é muito gratificante. Em primeiro lugar, exige muita disponibilidade. Se vem uma criança ter comigo a dizer que tem um problema, que está em crise, não lhe posso a dizer que falo com ela no dia seguinte porque está na minha hora de saída", diz a assistente social, para sublinhar: "Em termos emocionais, é uma ginástica muito grande. Somos seres humanos, é muito difícil não nos envolvermos emocionalmente. Ajudámo-los a crescer, trabalhamos com eles para terem autonomia, fazemos com eles um plano socioeducativo individual".
A última aquisição da estrutura a tempo inteiro foi o professor de educação física, Miguel Novais, 27 anos, treinador de futebol de Pedras Rubras. Tem sido uma ajuda preciosa no acompanhamento dos jovens na escola online. Não são precisas palavras para perceber quanto os jovens o adoram, tamanha é a receção à sua chegada. Deixámos a casa "Crescer às cores" com um jogo de bola entre crianças e duas funcionárias.
A construção do CAT é obra da Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios, presidida por Augusto Moreira desde 2010, que perdeu a mãe e o irmão naquela noite. Ficaram cinco irmãos, que já tinha perdido o pai há 10 anos, devido a uma doença. Hoje, a estrutura tem, também, sócios que não são familiares.
Destaquedestaque24 vítimas da freguesia de Raiva
A queda da ponte foi a 4 de março de 2001 e em abril do ano seguinte constituíram-se como uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). "Sentimos a necessidade das famílias se reunirem porque percebemos que estavam a ser tomadas decisões que nada tinham a ver connosco", justifica Augusto Moreira.
O objetivo inicial foi acompanhar o processo de recuperação dos 59 corpos, o que não chegou aconteceu: recuperaram 23. Concentraram-se depois no processo judicial para que a "culpa não morresse solteira". Os seis engenheiros - quatro da ex-Junta Autónoma das Estradas e dois de uma empresa projetista do Porto - acusados pelo Ministério Público, acabariam por ser absolvidos cinco anos depois da queda da ponte. As famílias acreditam que nem haveria acusados se não se tivessem envolvidos.
Uma das primeiras coisas que fizeram foi exigir que lhes fossem entregues todos os donativos: "Estavam a ir para instituições que nada tinham ver com as famílias e o mesmo estava a acontecer com contas bancárias abertas. Exigimos esse dinheiro e encerramos as contas. A partir dai, éramos alertados sempre que chegasse um donativo, até hoje. Não há nada que nos seja entregue que não fique registado, até uma saca de batatas", diz Augusto. Acrescenta que ofereceram a sua experiência aos familiares das vítimas de Pedrógão Grande. "Não quiseram, mas nós sabíamos que o dinheiro não teria o destino para o qual foi doado se não nos estivéssemos envolvidos".
O processo de atribuição das indemnizações foi rápido, 50 mil euros por cada morte, mais o valor dos danos morais e de acordo com o grau de parentesco da vítima. Sobrou 120 mil euros e associação considerou que não deveria ser dividido pelos familiares das vítimas, uma vez que já tinham sido indemnizadas. Refletiram: "Se tivemos este apoio, este carinho dos portugueses, porque é que não vamos ajudar os outros, mostrar ao país que há vida depois da tragédia?"
Pensaram em criar um lar, uma creche, mas já havia esses equipamentos na região, além de que seria algo a pagar também pelos utentes, o que não desejavam. E queriam que o seu projeto fizesse a diferença. Conta Augusto Moreira: " Concluímos que o que queríamos fazer era apoiar crianças em risco, são crianças injustiçadas, maltratadas e vítimas da negligência dos pelos pais. E, por outro lado, o Estado não os soube ajudar. O mesmo se passou com os nossos familiares que morreram naquele dia. Foi uma injustiça e o Estado desresponsabilizou-se de fiscalizar as condições em que se encontrava a ponte. Somos todos vítimas".
A associação é uma IPSS, recebe comparticipação da Segurança Social devido ao serviço que presta à população. Promove iniciativas para obter rendimentos, continuam a receber donativos, muitos deles nem são monetários. "Quem está nestes projetos, tem de estar desprotegido de interesses económicos e políticos. Nenhum dos 19 elementos dos órgãos sociais é renumerado", salienta o seu presidente. O que significa que têm dinheiro e lhes permite pensar em outro projeto na mesma linha, que é ajudar outras vítimas. Vão construir uma casa de abrigo para vítimas de violência doméstica. O projeto foi aprovado pelo Instituto de Segurança Social, agora há que trabalhar a ideia. Pensam que poderão inaugurar a estrutura até 2025.
A associação tem 21 funcionários no CAT, além de uma psicóloga a tempo inteiro. Contrataram-na para colmatar a falta de um técnico formado em psicologia no centro de saúde local, o que dizem lhes ter sido prometido. Não foi cumprido, como ainda não construírem melhores acessos de Castelo de Paiva a outros concelhos.
André Silva, 30 anos, estava no 5.º ano, assistia às aulas pela Telescola, naquela que agora é a EB1 de Couto Mineiro, na freguesia da Raiva (concelho de Castelo de Paiva), onde habitavam 34 das vítimas mortais. Morreram a Flávia, 9 anos e que andava no 4.º ano e o Bruno, de 11, que estava no 6.º, primos. "Ele destacava-se, era adorado por todos, também porque tinha vivido em França, tinha outros conhecimentos, era alguém que admirávamos. Era especial, não se concentrava no futebol como a maioria", recorda o André.
Morreu, ainda, o Vasquinho, o irmão da Flávia, que tinha 4 ou 5 anos e andava no jardim-de-infância, também os pais das crianças, num total de 9 elementos da mesma família. Houve uma segunda família que ficou sem o mesmo número de elementos naquela noite. Estão todos recordados no memorial, o "anjo de Portugal", com os nomes e fotos por agregado familiar. É uma obra do arquiteto Henrique Coelho e pelo escultor Laureano Ribatua, projeto escolhido pela população e inaugurado em 2002.
A professora Conceição Rodrigues, 63 anos, já reformada, era responsável pelas escolas locais, mais tarde coordenou o Agrupamento de Escolas de Castelo de Paiva. Nessa segunda-feira, quis ser a primeira a entrar. "Cheguei muito cedo, antes de todos os professores, nem todos eram daqui e não sabia se tinham visto as notícias", conta.
Esse dia foi o mais terrível enquanto professora, e todos os outros que lhe seguiram. Não sabia a quem devia abraçar em primeiro lugar. "Até tinha medo de estar em casa, o meu marido era presidente da Junta de Freguesia da Raiva, passou lá muitas noites, eu pegava na nossa filha e ia para lá".
Não ajudava Conceição Rodrigues morar ao lado da família de Flávia, de cuja mãe também tinha sido professora. "Não queria ir ao quintal, olhar para aquela casa, até que decidi: é agora ou nunca". A Páscoa não foi festejada nesse ano, as festas locais reduziram-se às celebrações religiosas. Os professores foram mais benevolentes nas notas. "Durante os primeiros anos, viveu-se muito a situação, fazíamos romarias ao cemitério por vontade dos alunos, falávamos do que tinha acontecido. À medida que foram crescendo e deixando a escola, as coisas começaram a ser menos faladas. Mas foram dias muito difíceis; muito difíceis", recorda Conceição Rodrigues.
Nenhuma das vítimas era familiar de André Silva, a quem a mãe quis poupar maiores tristezas e não "o mandou à escola" nos dois dias seguintes à tragédia. No dia 8 é que foi mais complicado: "Estávamos todos juntos, para prestar homenagem aos nossos colegas. Havia duas cartolinas com a foto dos colegas que tinham morrido e o professor pergunta quem quer escrever a primeira frase, ninguém se mexeu. Deu-me o marcador, lá fui, nem me lembro do que escrevi, é um dos momentos marcantes", conta.
Destaquedestaque23 corpos recuperados
André quer representar todos as crianças e jovens daquela altura. "Há 20 anos, a infância de um rapaz não é a mesma que agora, estávamos muito ligados uns aos outros. Ficámos com uma sensação de insegurança, pensar que podemos ir num carro e morrer, era uma possibilidade que não existia nas nossas vidas até aí".
Recorda os mortos, os colegas de escola, a senhora que criou os doces regionais, o vizinho; também os amigos que perderam familiares. Entrou na adolescência ainda com "mais porquês?" Não lhe sai da cabeça a frase de um colega: "O Bruno é muito ágil, de certeza que está agarrado a um ramo de uma árvore à espera que o vamos buscar". Descreve o André: "É um sentimento de impotência que só passa com o tempo. Sentíamos que não podíamos ser demasiado livres porque estávamos a faltar ao respeito a quem morreu".
André Silva tinha duas opções. Odiar o rio e tudo o que dele saísse, como as pessoas que deixaram de comer o sável e a lampreia. Ou dar a volta e seguir em frente. Optou pela segunda opção. Estudou na área da restauração e abriu o Aquapura Terrace, uma concessão da praia fluvial de Pedorido. Mais uma coisa é certa: "Não atravesso a ponte, só em último caso".
Esta quinta-feira, Felicidade Moreira, 43 anos, agente da Polícia Municipal requisitada à PSP, lá estará nas comemorações dos 20 anos da tragédia, junto à nova ponte Entre-os-Rios. Missa às 10:00, transmitida online e na presença de poucas pessoas. Às 11:00 irão ser colocadas flores junto ao monumento, para que quem queira prestar homenagem às vítimas as atire ao rio ao longo do dia. Em anos anteriores, essa homenagem era prestada ao fim do dia.
A ponte de Entre-os-Rios une as margens do rio Douro e os seus afluentes. Há 20 anos ainda se pensou em recuperar os pilares da estrutura que caíra, mas estavam em tão mau estado que foi decidido construi-la de novo.
Destaquedestaque6 acusados absolvidos
Felicidade plantou árvores à volta do monumento, nos primeiros anos, foi ela que tomou conta do dinheiro das velas, para as pessoas acenderem e colocarem frente à foto do familiar que faleceu na queda da estrutura. Ela ainda esta terça-feira comprou duas, em memória da mãe e do irmão. Felicidade, estava em Lisboa, não se apercebeu imediatamente que a mãe e o irmão estavam no autocarro que caiu com a ponte. E caíram três automóveis.
Mulher pequena, ágil, resposta na ponta da língua e com sentido de humor, Felicidade, então com 23 anos, destoava dos outros rostos que surgiram nos dias seguintes à tragédia. "O momento não se ultrapassa, vivemos esse momento", diz para explicar a sua atitude e para justificar: "O sorriso é a minha forma de estar. Ninguém me via a chorar e nunca transmiti para os outros os meus sentimentos, parecia que era muito transparente, mas não era. Os meus sentimentos ficaram no meu travesseiro. A minha postura foi ter sempre uma palavra de coragem para quem tinha perdido os familiares, como eu".
Felicidade é irmã de Augusto, os irmãos recorreram ao apoio psicológico, como muitas outras famílias. Apesar de tanta atividade, de ambos estarem muito envolvidos na construção e projetos da associação.
O marido de Felicidade ficou a gerir o café do irmão Lino, era o mais velho e morreu no acidente com a mãe. Proximidade, física e emocional que não ajudam. "A melhor forma é homenagear quem morreu nesse dia é comemorar as suas vidas com novos projetos", diz.