Família

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Às vezes lembro-me do jantar que fizemos pelo Skype - eu e a Catarina, a Yara e o Julien. Tínhamos saudades dos nossos jantares no Bairro Alto e nas Amoreiras. Alguém se lembrou do Skype.

- Assim como assim, tu detestas falar ao telefone - recriminou--me um deles, e com razão.

Com outros amigos que conservamos há mais de 20 anos, fomos uma espécie de família escolhida durante a parte mais importante das nossas formações. Juntos, vivemos casamentos e divórcios, nascimentos e desempregos, depressões e até mortes. Hoje somos padrinhos dos filhos uns dos outros e continuamos vivos.

Marcámos para uma quinta--feira. Ainda faltavam horas e já eu e a Catarina andávamos pela cozinha. À hora combinada, o Julien pôs um charuto em cima da mesa e a Yara enroscou-se sob o braço dele, como se se protegesse do frio.

Sentíamo-nos um pouco ridículos, com o iPad aberto à frente, mas pusemo-nos a comer. A Yara perorou, o Julien perorou, a Catarina perorou, eu perorei. Fizeram-se alguns silêncios, mas de curta duração. O Julien acendeu o charuto. A Catarina perorou, eu perorei, a Yara perorou, o Julien perorou.

No dia seguinte, não nos lembrávamos de nada. Lembrávamo--nos de quantas vezes a ligação caíra. Do braço do Julien e daquele charuto. Não nos lembrávamos de uma palavra. Nem da comida nos lembrávamos.

Nunca mais tentámos. Hoje, telefonamo-nos nos anos e nas doenças, e eu sou sempre o primeiro a dizer: "Bem..." Mas, quando nos encontramos, é de facto como se nos tivéssemos visto no dia anterior. Repegamos conversas. Falamos com o olhar. Podíamos dizer: "Bom, tal como eu estava a dizer no ano passado...", e haveria uma verdade nisso.

Naquela noite, aprendemos uma lição: é preciso abraçar a distância. A distância tem uma sabedoria. A distância não reduz a intimidade: reforça-a.

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