"Hoje, este país deixou não sei quantos pais/mães com filhos como o meu sem um medicamento. Eu estava atrás de um senhor que veio de Portimão e que levou a última embalagem que havia no Algarve de Castilium 20 mg. Não há mais, acabou em todos os armazenistas e distribuidores, e ninguém sabe se tarda uma semana, um mês ou um ano." Tornou-se viral o desabafo de Leah Pimentel, mãe de António, de 34 anos, que sofre de uma síndrome epilética rara. Pôs gente de todo o país a tentar encontrar nas farmácias uma (ou mais) caixa(s) do medicamento em falta - um ansiolítico que o filho toma todos os dias, em quatro comprimidos. Cada blíster contém 30..Esta não foi a primeira vez que Leah Pimentel se deparou com a falta daquele medicamento. Entre os muitos que António precisa de tomar todos os dias, aquele já ameaçou faltar várias vezes. Mas nunca se concretizara, de facto, a falta. Em novembro passado, Leah percebeu que o assunto era sério. A meio do mês percorreu a distância habitual entre Moncarapacho (onde mora) e a farmácia de Albufeira, no Algarve, com o coração nas mãos. E percebeu a gravidade: não havia o medicamento em lado nenhum, em farmácia nenhuma, nem se sabia quando voltaria a ser reposto, de acordo com a informação do laboratório.."O problema é que estamos a falar de uma falha a nível nacional. E não há alternativa. Não há genérico. Quem não toma tem convulsões eventualmente fatais, passa pela síndrome de abstinência", disse ao DN Leah Pimentel, alguns dias depois do grito de alerta que deixou no Facebook. Entretanto, uma juíza de Lisboa (que viu a publicação) conseguiu-lhe uma caixa numa farmácia dos arredores da capital, e de Viana do Castelo chegou-lhe a boa nova de mais uma. Falamos do composto clobazam, que pertence à classe dos psicofármacos, comercializado como ansiolítico desde 1975 e como anticonvulsivo desde 1984.."Se o meu filho morrer, de quem é a culpa?", continua a perguntar-se Leah, que se recorda bem do último surto do filho, há alguns anos, quando esteve 48 horas em convulsão generalizada. Foi quando lhe aumentaram a dose de clobazam..Como não há genérico (nem alternativa), a mãe de António guarda para as crises o Victan 10. Entretanto, a publicação no Facebook começou a trazer-lhe retornos e perguntas alheias: por que razão não fazia o desmame daquele medicamento em falta e pedia outro ao médico? "Porque não pode ser assim. Porque para fazer o desmame teria de internar o meu filho no hospital. Isso não se pode fazer em casa com um doente como o António", explica ao DN..Os medicamentos que faltam.Nas farmácias portuguesas há nomes que se tornaram comuns na lista de falhas, nos últimos tempos: Ursofalk, Diplexil 500-R e Neupro estão à cabeça dessa lista. "São todos para doenças crónicas", disse ao DN Joana Santos, farmacêutica na região centro, habituada a ter de explicar aos doentes as falhas, a acompanhar a angústia de quem precisa de os tomar, o trabalho dos médicos que vão mudando o que podem na medicação, em função do que falta nos laboratórios..Ninguém sabe explicar ao certo a razão pela qual faltam esses medicamentos nos laboratórios - e nas farmácias. Esse é um retrato que cola com um outro, recente, quando se tornou público: 40% dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) indicam ter diariamente ruturas no fornecimento de medicamentos; 30% afirmam que as ruturas ocorrem semanalmente e outros 30% dizem que as ruturas são mensais . Os dados são de um estudo apresentado em meados de novembro pela Ordem dos Farmacêuticos, Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares e pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa..O documento foi feito com base em questionários que foram respondidos em outubro por metade das unidades do SNS. Os preços "excessivamente baixos dos medicamentos genéricos" são a principal causa identificada pelos hospitais para as ruturas de fornecimento. E essas são muitas vezes resolvidas com recurso à importação do medicamento, no caso dos hospitais. No que toca às farmácias, subsistem as falhas. Maria (uma farmacêutica de Leiria que prefere não ser identificada) acredita que as falhas começaram a notar-se há vários anos: "Quando os empresários portugueses começaram a levar medicamentos em larga quantidade para os países africanos, que depois eram vendidos em blíster e não à embalagem...".O DN questionou a Associação Nacional de Farmácias sobre essa constante falta de diversos medicamentos, mas a resposta não é conclusiva: "As farmácias e a indústria farmacêutica uniram-se para identificar as causas da falta de medicamentos, mas esse trabalho ainda está em curso", respondeu a ANF, remetendo para uma nota de imprensa de setembro último, alusiva ao tema.."Estamos a trabalhar com o Infarmed numa nova metodologia de recolha de dados, ainda sem resultados", adiantou ao DN fonte da associação. Porém, no verão passado, quando veio a público pela primeira vez a falta de medicamentos nas farmácias, os números da ANF apontavam para cerca de 47 milhões de embalagens em falta. Na ocasião, ficou claro que os laboratórios preferem vender no estrangeiro, onde os preços são mais altos. Joana Santos sublinha essa explicação: "Portugal é dos países onde os medicamentos são mais baratos." Na verdade, o Castilium custa pouco mais de quatro euros, à semelhança de outros medicamentos que a maioria dos portugueses tomam, diariamente.